quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Uma alegre viuvez


Um artigo de um jornalista que não desiste de querer para o seu país uma consciência cívica que arrume com tanta penúria dela e esse facto é algo reconfortante para quem vai envelhecendo “olhando para trás de si” - olhando em torno de si - “e tendo pena”, mas sempre esperançada numa retoma de valores, que jovens e menos jovens vão revelando, tentando desassombradamente desemaranhar a vasta teia de desmandos a que na sua profissão ou nos seus estudos terão algum  acesso. É o caso deste «Sócrates e os seus viúvos», de João Miguel Tavares - um Sócrates que vai estrebuchando, nadando nas vastas águas indecisas da aceitação pública, que acaba sempre por lhe ser fiel, por conveniência própria dos comparsas, apesar das tentativas justiceiras de uma eterna desmistificação das suas embrulhadas soezes.
E retenho a frase de Sócrates, não o nosso mas o que viveu entre 470 – 399 a. C, numa Grécia pioneira, frase que encima propositadamente a mesma página do artigo referido, e que demonstra como os princípios são “escritos na pedra” para sua eternidade, para serem seguidos por uma Justiça isenta. «Três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente».  
A verdade é que os  nossos “super-juízes” que se pretendem isentos, não passam de  patéticas amostras de uma falsa manipulação dessa isenção, na indignação aparente  e vaidosa que esses casos lhes provocam, demonstrada no queixume irónico pueril de um seu representante, em entrevista longamente debatida. Não julgo, pois, que resultem, artigos como este de João Miguel Tavares, numa tessitura social tão extraordinariamente balofa:

Sócrates e os seus viúvos
17/09/2016 - 00:10
Neste país respira-se muito melhor do que em 2008 ou 2009, mas as contas dos anos Sócrates ainda estão por fazer.

Toda a gente pergunta como é possível a investigação a José Sócrates estar a demorar tanto tempo. É muito fácil de explicar. Em primeiro lugar, porque o poder político em Portugal nunca se mostrou realmente interessado em combater a corrupção. As leis que regulam o seu combate são péssimas para os polícias e excelentes para os ladrões. Em segundo lugar, porque aquilo que o Ministério Público está a investigar não é uma simples ocorrência, um acto de corrupção, mas sim um método de agir em inúmeros negócios, o que são coisas completamente diferentes. Estamos a falar na possibilidade de Sócrates ser o maior criminoso político da História da democracia portuguesa, coisa que não parece impressionar por aí além todos aqueles que acham mais graves as indirectas de Carlos Alexandre do que as explicações ridículas de José Sócrates sobre a origem do seu dinheiro.
Sócrates dá entrevistas e escreve depoimentos a queixar-se de que o Ministério Público primeiro andava a investigar o favorecimento do grupo Lena, depois o empreendimento de Vale do Lobo e que agora já está na PT. Que é como quem diz: o Ministério Público não encontrou nada e anda desesperado à pesca de qualquer coisa. Estranhamente, ou talvez não, nem José Sócrates nem os seus muitos amigos que continuam espalhados pela política, pelas empresas e pelos jornais admitem a hipótese de não ser “isto ou aquilo”, mas sim de ser “isto e aquilo”. Não se tratam de conjunções alternativas, mas de conjunções copulativas: é o grupo Lena, é Vale do Lobo e é a PT. Como antigamente era a Cova da Beira, era o Freeport e era o Face Oculta. Não há aqui nenhuma novidade. Há muito que muita gente alertava para o percurso, para a postura e para as tentações de José Sócrates. Esta investigação é apenas a confirmação de um infindável rol de suspeitas em relação às quais ele sempre se justificou com os mesmos adjectivos canalhas que continua a utilizar. 
É verdade que o Ministério Público podia ter optado por avançar com uma acusação de fraude fiscal e branqueamento de capitais, para a qual já deve ter prova suficiente. Os investigadores quiseram ser mais ambiciosos e não deixar cair a corrupção – que é obviamente o que está em causa, mas que, se fosse fácil de provar, há muito que dezenas de políticos estariam presos. Não é. A lei portuguesa faz distinções obscenas, como a corrupção para acto lícito e para acto ilícito, apenas para facilitar a prescrição dos processos, e de cada vez que se fala na hipótese da delação premiada, sem a qual jamais haveria operação Lava-Jato, ou na criminalização do enriquecimento ilícito, há mil vestes que se rasgam – as mesmas que depois se queixam dos “casos” e dos “negócios” que morrem nos tribunais.
Neste país respira-se muito melhor do que em 2008 ou 2009, mas as contas dos anos Sócrates ainda estão por fazer. Na política e nos jornais, os seus viúvos continuam por aí, e o número de textos que escrevem a criticar o Ministério Público é proporcional ao número de textos que não escrevem criticando o comportamento de Sócrates ou os anos que levaram a apoiá-lo. Em nome de belos princípios, limitam-se a defender os seus almoços e as suas opiniões entre 2005 e 2011, fazendo todos os dias figas para que a investigação falhe redondamente. A derrota do Ministério Público seria para eles a vitória dos seis anos de mediocridade e autoritarismo que nunca se cansaram de patrocinar. O destino de Sócrates apenas lhes interessa porque é também o seu.

               

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