A nossa alma branda e temerosa da morte, ficou-nos
marcada desde os primórdios da literatura, em que D. Sancho I, como eu aprendi,
(ou Afonso X, segundo leio na Internet) escreveu sobre as ânsias da donzelinha
cujo amigo lhe tarda na Guarda, provavelmente a defender as fronteiras de uma
nação ainda não totalmente demarcada:
Ai eu, coitada, como vivo en gran cuidado
por meu amigo, que hei alongado!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ai eu, coitada, como vivo en gran desejo
por meu amigo, que tarda e non vejo!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
por meu amigo, que hei alongado!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ai eu, coitada, como vivo en gran desejo
por meu amigo, que tarda e non vejo!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Até
mesmo um poema épico como «Os Lusíadas» mostra a nossa enternecedora
sensibilidade, ao definir o sinal da “trombeta castelhana” com uma série
de adjectivos – “Horrendo, fero, ingente e temeroso” que assusta os
nossos principais rios e faz que as mães amantes aconcheguem mais os filhos,
com receio, como todos nos lembramos, mas que me dá gosto repetir:
"Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso;
Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães, que o som terríbil escutaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram.
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso;
Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães, que o som terríbil escutaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram.
Muitos
mais autores nossos definiram os malefícios da guerra, como Vieira, Nicolau
Tolentino, que não viveram, contudo, nestes tempos de muita luta e de horrores
bem conhecidos, noutras terras e com outras gentes, até mesmo os nossos
vizinhos do lado, valentes e aguerridos, como os inveja Miguel Torga numa das
suas autobiografias de “A Criação do Mundo”. Para além da permissividade de posse de armas lá
pelas Américas, que faz que eles, os americanos, sejam altos e poderosos, como
os vemos nos filmes, pelo menos nos mais antigos, que metiam muita luta e
cavalgadas brilhantes e corajosas. Mas a sátira “A Guerra”, de Tolentino, vem mais
ao encontro, na sua mordacidade, das mágoas de António Lobo Antunes, de
quem muito se fala e a quem o Expresso de 3/9, através da revista E, dedica
ampla reportagem para justificar o filme que se constrói – Ivo M. Ferreira
constrói - a partir das “Cartas da Guerra” de Lobo Antunes à
esposa, que as suas filhas amorosamente puderam publicar. Eis um passo de “A
Guerra” de Tolentino:
….. Se a paz, em dias
felizes,
à cara pátria os conduz,
dizes que estes infelizes
mostram, rindo, os peitos nus,
cortados de cicatrizes;
Que este reconta aos parentes
como em perigoso passo,
zunindo balas ardentes,
uma lhe quebrou um braço;
outra lhe levou os dentes;
Que outro, da perna cortada
abençoa a horrível chaga,
porque ao peito, pendurada,
trará algum dia, em paga,
inútil fita encarnada.
Dizes que entre os animais
proíbe guerras o instinto;
e que, surdo a tristes ais,
vês com horror o homem tinto
no sangue dos seus iguais. …..
à cara pátria os conduz,
dizes que estes infelizes
mostram, rindo, os peitos nus,
cortados de cicatrizes;
Que este reconta aos parentes
como em perigoso passo,
zunindo balas ardentes,
uma lhe quebrou um braço;
outra lhe levou os dentes;
Que outro, da perna cortada
abençoa a horrível chaga,
porque ao peito, pendurada,
trará algum dia, em paga,
inútil fita encarnada.
Dizes que entre os animais
proíbe guerras o instinto;
e que, surdo a tristes ais,
vês com horror o homem tinto
no sangue dos seus iguais. …..
Sempre
se disse que Portugal é um país de brandos costumes e é também por esse motivo
que o final da “Mensagem” de Fernando Pessoa nos descreve na nossa
abulia, apatia e pasmaceira (tão bem traduzidas na “mesmice” queirosiana) de um
“Portugal a entristecer”, justificativas da existência actual, de cada
vez mais Lobos Antunes da nossa penúria, actores de palco, mexendo
carinhosamente no lóbulo da sua orelha pensante, como este faz, enquanto debita
mansamente e educadamente os seus conceitos ou as suas referências pessoais, em
linguagem bem menos escatológica que aquela que aplica nas suas prosas de uma
psicanálise em moda, ligada ao berço materno que lhe embalou as vaidades de
rapaz garboso, tal como o mostra a capa da E, ou as sensibilidades de rapaz com
a doçura virada mais para uma fotogenia acompanhada da gente africana do seu
amor, que a E também reproduz, retratos bonitos, do glorioso álbum de família:
NEVOEIRO
Nem
rei nem lei, nem paz nem guerra
Define
com perfil e ser
Este
fulgor baço da terra
Que
é Portugal a entristecer –
Brilho
sem luz e sem arder,
Como
o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém
sabe que coisa quer.
Ninguém
conhece que alma tem,
Nem
o que é mal nem o que é bem.
(Que
ânsia distante perto chora?)
Tudo
é incerto e derradeiro.
Tudo
é disperso, nada é inteiro.
Ó
Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
(Fernando Pessoa)
(Fernando Pessoa)
Não importa comentar as razões destes heróis
trazidos modernamente à ribalta da glória, que para mim serão sempre de
pacotilha, levados por reflexões de convenientes filosofias alheias, que lhes
justificaram a cobardia, ou a revolta, sabendo que também essas filosofias geraram
bastos horrores e guerras nesses mesmos países que foram pátria de humanitários
marxismos e outros idealismos, no interesse próprio. Esses nossos heróis de
pacotilha só viram o negro explorado, dos seus afectos unilaterais, nunca o
branco, que trabalhou e engrandeceu a seu modo as terras da anterior conquista,
nem o enriquecimento cultural que tantos desses soldados, que vieram ajudar a
defender a pátria distante, puderam obter, estudando à noite, trabalhando,
constituindo família, obreiros de pátrias bem mais estruturadas do que estão
agora, e tudo isso se sabe e se finge ignorar, novos heróis de um palco onde a
palavra chave, embora escondida, é cobardia, sob a capa da bondade unilateral.
Daí que o poema de Reinaldo Ferreira «Receita para fazer um herói»
da mesma linha da dos revolucionários hippies - “make love not war” que os nossos
revolucionários também imitaram, devesse
ser alterado, no seu remate para:
«Depois, para maior glória / dê-se-lhe a cruz
de Cristo, / a torre de Espada, / uma medalha de ouro / ou mesmo só um lugar / à
disposição / na televisão // Serve-se agora / vivo, a saltar / como a sardinha da canasta /
outrora…»
Receita para fazer um herói
Tome-se
um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto. Reinaldo Ferreira. Um Voo Cego a Nada (1960)
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto. Reinaldo Ferreira. Um Voo Cego a Nada (1960)
Julgo que muitos soldados há que
estiveram no ultramar a defender a “pátria”, como se dizia, e que não se
envergonham de o terem feito. Para esses, a gratidão dos que realmente a amam,
na sua história, nos seus artistas, no seu espaço, na sua gente. Mas estes filmes ou reportagens que querem escarrapachar o colonialismo definindo-o puramente como escravatura e opressão, parecem-me bem miseráveis no despudor e no facciosismo, além de que um mau exemplo de cobardia e desprezo pátrio para os vindoiros.
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