quarta-feira, 21 de setembro de 2016

«Abre-te, Sésamo!»


Abre-te, Sésamo!
Uma tradição nos persegue há muito sobre a participação da fêmea portuguesa em momentos de crise especiais. Não me refiro, naturalmente, às figuras com certa aura sagrada, como a rainha D. Isabel, que, aliás, nos viera de Aragão, não pertencia ao solo pátrio, e se limitara a transformar o pão do regaço em rosas, ou a resolver questões domésticas, ou mesmo outras ilustres, como D. Filipa de Lencastre, também estrangeira mas criadora de uma “Ínclita Geração”, a virtuosa  D. Leonor de Lencastre, do solo nacional, ou artistas de vária ordem, como Paula Vicente, Luísa Sigeia, Luísa Todi, Josefa de Óbidos, duquesa de Alorna, para só falar das antigas, que deixaram rasto na evolução pátria. Refiro-me às de cepa popular, cheias de ânimo combatente tal a padeira de Aljubarrota ou a Maria da Fonte, que deram o seu contributo másculo para virar a corrente política. Como hoje. Não são as três Marias, que se limitaram a escrever cartas e a prosseguir, na viragem do credo feminino, mas estão lá, forcejando por mudar, com os seus novos poderes, os destinos da nação. Muitas, é certo, passaram pelo tablado da governança nacional, cada qual com o seu papel, depois do 25 de Abril, com uma representatividade mais ou menos acentuada e bem intencionada, segundo a sua ideologia política, ou tendência provocatória, como Odete Santos, a provar que a Mulher é perfeitamente capaz de assumir causas, empenhando-se em discursos decididos, e hoje, mais do que nunca, dada a actual posição de força que lhes permite usar a chantagem como meio de acelerar definitivamente a mudança para a ruína do país, a pretexto de salvar o povo mártir das desigualdades sociais consuetudinárias. Ouço-as e vejo-as, a saracotearem os seus discursos irónicos, os de Catarina Martins, sinistros na sua segurança pérfida, sem terem em conta os telhados de vidro próprios ou da família, os de Mariana Mortágua, nada incomodadas com a situação de desastre financeiro do país nem com a torpeza das suas propostas de atrevimento e ilicitude de buscarem dinheiro no filão do roubo, como o faziam os ladrões de Bagdad, e Ali Babá repetiu, na facilidade do seu abre-te Sésamo, sem mais aquelas. Que as fêmeas do bloco de esquerda, leram evidentemente e adaptaram a fórmula simples, em proveito próprio. No DN de 18/9, António Barreto e João Taborda da Gama esclarecem ponderadamente e exemplarmente o caso. Eu limito-me a soltar o “Livra!” da indignação.

As esquerdas e o dinheiro
António Barreto
Sempre se disse que as esquerdas têm um problema com o dinheiro. A começar pelo facto de não o terem. É natural. Tivessem dinheiro e talvez não fossem esquerdas. Com algumas excepções, as pessoas de esquerda não têm muito. Por isso, quando estão no governo, têm uma atitude ligeira com o dinheiro dos outros. Querem promover a educação, a saúde, a segurança social e as obras públicas, o que é excelente, só que para isso, que custa tão caro, faz falta o dinheiro. Mas, convencida de que a direita tirou aos pobres para dar aos ricos, a esquerda também quer reverter e devolver aos pobres... No entanto, dar é uma coisa. Crescer e distribuir é outra, bem diferente e mais difícil. Mas a verdade é que uma e outra, esquerda e direita, desde 2000, não conseguem investir nem crescer.
Nos bons tempos, gasta-se o que se tem. Nos anos difíceis, gasta-se o que não se tem. Depois, é necessário encontrar dinheiro. As soluções: fazê-lo, pedi-lo emprestado ou ir buscá-lo onde ele está. Portugal está a viver um período desses, dos maus. Só que não se pode fazer dinheiro, o Banco de Portugal e a Casa da Moeda já não servem para isso. Pedir emprestado, é o que se vai fazendo, mas está cada vez mais caro. E quem tem dinheiro ficou exigente: ou não empresta ou impõe condições proibitivas. O que se deve é tanto que só os juros levam os recursos para investimento. Foi aliás por causa de se ter pedido a mais que chegámos onde estamos.
Sobra, portanto, a última hipótese. Ir buscá-lo onde ele está. Em primeiro lugar, entre os capitalistas do mundo inteiro, para investir. Seria o ideal. Só que Portugal não oferece hoje, nem sequer nos últimos anos, boas condições. Não sabe criar incentivos nem atrair investimento. Se não há capitalistas lá fora, é preciso ir ter com os de cá de dentro. E levá-los a investir. Só que... Já não há! Ou quase não há! O capitalismo português acabou. Sobravam uns banqueiros, umas empresas e umas famílias: faliram, estão depenados, levaram o seu dinheiro para outros países ou não têm confiança no regime e no governo. O dinheiro dos bancos já não existe ou está preso pelo BCE. Os bancos já não têm que chegue e precisam dos contribuintes!
Há, evidentemente, o dinheiro dos turistas, mas não é suficiente. Há o dos emigrantes: é bom, apesar de já não ser o que era, mas também não chega para as encomendas. Há finalmente os dinheiros europeus, os famosos "fundos". Esses são excelentes, essenciais há mais de trinta anos, mas o montante já não é o que era. Além disso, estão sob controlo europeu cada vez mais apertado e presos na tenaz burocrática portuguesa. E também em risco de suspensão, dado o mau comportamento financeiro do governo e do país. Os fundos já não são a solução!
Se o que havia fugiu e se não se atrai o que está lá fora, só resta mesmo ir à receita miraculosa dos comunistas, do Bloco e dos socialistas mais nervosos: ir buscá-lo onde está! É há anos a receita infalível. Os dirigentes políticos dos novos aliados do PS sempre o disseram. Ir buscá-lo onde? Aos ricos. Às contas bancárias. Às empresas. Às casas.
O problema é que não há ricos. Ou antes, não há ricos que cheguem. Os que tinham dinheiro já o puseram a recato. E o dinheiro já não chega. Por conseguinte, vamos aos que se seguem, todos os que têm alguma coisa. Passam a ser todos ricos. Por exemplo, para já, aos que têm património de mais de 500 mil euros... Faz-se uma lei sem saber quantas pessoas, quantas casas, qual o rendimento... Não se faz a mínima ideia, o governo não define o que é um rico nem um pobre. É quem convém. E se não chega, arranjar-se-á mais, com os impostos indirectos, antes de se passar aos directos. E a tudo o que vive. Tudo o que tem ou ganha qualquer coisa. Até se chegar aos remediados. Até deixar de haver ricos. Mesmo que então já só haja pobres...

Os visons de Francisco Louçã
João Taborda da Gama
Desengane-se quem tiver começado a ler este texto sugestionado pelo título e augado para encontrar revelações sobre as preferências dos nossos políticos no vestir, fazendo concorrência a uma abjeção que parece que vai ser publicada por estes dias sobre a vida íntima de um conjunto de pessoas. O texto é sobre algo bem mais cinzento do que homens em casacos de peles, é sobre impostos.
Esta semana ficámos a saber que o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista vão propor a criação de um imposto sobre as fortunas. Tributar o património global das pessoas tem uma justificação política e uma justificação técnica, e ambas as justificações têm um nível de acerto e coerência mais do que suficiente para poderem e deverem ser discutidas de forma séria.
Para percebermos a fundamentação política da proposta do Bloco de Esquerda é preciso recuarmos ao ano de 1999. Francisco Louçã tinha acabado de fundar o Bloco e de ser eleito como deputado nas eleições legislativas de outubro desse ano. Na sua estreia parlamentar deixa bem clara a sua agenda também em matéria fiscal e ao segundo dia de debate anuncia: "queremos introduzir propostas que penalizem a propriedade que tem sido o resultado cumulativo do roubo, ou seja, da fraude geracional. Por isso, é preciso introduzir um imposto sobre as grandes fortunas, onde elas beneficiaram dessa fraude acumulada geracionalmente e isso supõe a única medida indispensável para combater este regime geral de fuga ao fisco que é alterar a protecção que o sigilo bancário dá nestas questões essenciais". A proposta foi apresentada e chumbada um ano mais tarde (o Partido Socialista rotulou a proposta de maximalista e sectária e passou à frente). A questão voltou em 2002, 2005, 2009 e 2011, e quando houve votações o PCP e o BE votaram em conjunto (em 2009 quatro deputados do PS juntaram-se a eles na votação).
Primeiro ponto: a tributação das fortunas faz parte do ADN do Bloco de Esquerda - a não ser que o Bloco tivesse deixado de ser o Bloco, nada pode espantar que o tema tenha voltado à baila. Mas se antes era possível ignorar a questão, hoje não. Precisando o PS do apoio dos parceiros de coligação há que dar-lhes vitórias, e esta pode ser mais uma das vitórias a dar ao Bloco. Até porque há uma constatação generalizada que em matéria fiscal, de transparência e justiça tributárias, o Bloco tem estado muitas vezes do lado certo da luta (sigilo bancário, off shores, troca de informações).
Depois há o facto de, do ponto de vista de política fiscal, fazer sentido tributar o património global das pessoas, sem ser preciso falar de fraude geracional: o princípio da capacidade contributiva manda que se contribua para a satisfação das necessidades coletivas tendo em conta a força económica relativa de cada um. Ora uma ideia de igualdade relativa que não é muito difícil de vislumbrar é o facto de quem tem mais património ser mais rico do que quem tem menos. E esse património acumulado representa algo substancialmente diferente do que os rendimentos que se foram recebendo e o permitiram. É isso que justifica, por exemplo, a tributação do rendimento e do património imobiliário, que é incontestada (tal como se justifica tributar um salário em IRS e o consumo permitido por esse mesmo salário em IVA). Quem tem mais património pode endividar-se, tem menor aversão ao risco, pode e deve contribuir algo mais.
Mas não há razão para atualmente se onerar a riqueza de quem tem um imóvel de um milhão de euros e não a riqueza de quem tem uma carteira de investimentos de um milhão de euros. Tributar apenas as casas é violar o princípio da igualdade em relação a quem prefere casas a títulos.
Em tese a ideia de tributar o património global é boa, é justa, mas quando passamos ao detalhe a coisa complica-se, e muito. Em primeiro lugar, apenas será justa uma tributação do património líquido, descontando os passivos (quem tem uma casa de um milhão de euros e deve cinco milhões é menos rico do que quem tem a mesma casa e nada deve). Em segundo lugar, o valor do património varia de ano para ano, e o imposto deve permitir que se compensem variações patrimoniais de ano para ano. Em terceiro lugar, é preciso que a tributação assente numa base tributária de valor de mercado (apenas se é rico na medida em que possa converter a riqueza em patacos). E em quinto lugar, é sobretudo preciso decidir que bens fazem parte desse património a tributar. O Bloco de Esquerda parece agora vir dizer que são apenas os bens imobiliários, tendo o PC ficado com a parte dos mobiliários (numa espécie de Tordesilhas gerigôncicas). Mas, admitindo que as propostas se juntam, qual o âmbito, para além das casas, dos carros, das contas, das ações? Quanto maior a abrangência, mais justo, mas também mais impraticável. As propostas anteriores do Bloco tributavam os cavalos, mas deixavam de fora antiguidades, coleções, joias de família e, segundo Francisco Louçã afirmou no Parlamento, os visons, que até eram tributados no imposto espanhol, mas não seriam tributados em Portugal.
E o problema reside precisamente na dificílima aplicabilidade prática deste tipo de impostos e na fraude massiva que potenciam e incentivam, gerando receitas diminutas. Uma discussão séria sobre a questão implicaria que se explicasse fundamentadamente qual a receita prevista (computando o planeamento fiscal que estas medidas já estão a gerar), quais os custos de preparação da máquina fiscal para a sua cobrança, que parte da receita será entregue às autarquias e às regiões autónomas, a sua aplicação ou não a residentes não-habituais, a consideração de património no estrangeiro, a sua aplicação a empresas e estruturas fiduciárias e a existência ou não de limites máximos de tributação.
E depois há a questão de saber a partir de que valor tributar. E quando entrarmos por aí se calhar vamos perceber que não há por cá muitos ricos e porventura, sem darmos por isso, se cumpriu aquela norma da Constituição de 1976 que, fazendo o pleno da modéstia salazarista e da utopia socialista, dizia que o "imposto sobre o rendimento pessoal (...) tenderá a limitar rendimentos a um máximo nacional, definido anualmente pela lei". A não ser que se incluam os visons - até porque o PAN e Os verdes a isso devem obrigar.



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