terça-feira, 6 de setembro de 2016

E assim os “bons” se revoltam, “não havia necessidade”


As polémicas entre os humanos na questão dos conceitos de arte já são antigas, veja-se, na França do séc. XVII, a “Querelle des Anciens et des Modernes”, entre os clássicos seguidores de regras e os inovadores com outras concepções de arte que, cá por casa, só dois séculos mais tarde é que tomaria idênticos foros conflituosos com a questão entre Antero e Castilho e respectivos acólitos - “Bom Senso e Bom Gosto” ou “Questão Coimbrã” - o primeiro nome resultante da Carta de Antero a Castilho, que melhor esclareceu a problemática da independência de um novo modelo literário, face a um retoricismo romântico de inspiração sentimental e desligado do progresso. Outros conflitos houve, posteriormente, no primeiro Modernismo anti convencional, tanto nas temáticas como ao nível formal.
Mas tudo isso se passava entre as elites intelectuais, como propriedade privada, que não contemplava, assim, as populações menos literatas, as quais, por isso, não causavam dano nessas esferas de superioridade espiritual imbatível.
Mas hoje o povo desceu à rua, com a Internet a facilitar. E as esferas galardoadas, que se publicam em papel não reciclado, em edições próprias, ou das editoras confiantes no êxito, sentem-se atingidas na nobre arte que elas elevaram ao Olimpo dos favorecidos da eternidade na glória. E, naturalmente inconformadas, elas destroem, pela ironia da erudição e da escrita, todos esses cuja escrita ocupa espaço visual desnecessário, ainda que reservado mais aos amigos.
É pouco mais ou menos, embora com mais erudição e estilo, o tema do artigo de António Jacinto Pascoal a propósito de um artigo de Clara Ferreira Alves sobre o culto de si próprio escarrapachado no facebook dos nossos tempos, como processo quase patológico actual de “dar nas vistas”, de chamar a  atenção, de estar presente a todo o custo, de merecer apoio e o devolver, designado por Cult of Likability na expressão alheia.
E António Jacinto Pascoal parte daí para desmascarar a própria auto estrada psicológica de Clara Ferreira Alves de uma auto estima que se revê em plenitude, porque consciente do valor próprio, e por isso sem caridade para com a multiplicidade infinita das outras auto estimas, objecto do seu desfavor pouco democrático.
Eu penso apenas que os antagonismos literários de antanho se faziam entre pares, e que esta luta solitária de Clara Ferreira Alves não tem razão de ser, numa época de liberalismos e compreensão para com a diversidade.
Mas recebi ontem também um email – texto a seguir ao de A.J. Pascoal - que responde tragicamente à questão da autopromoção actual, objecto do mal-estar de CFA, pois fará multiplicar em termos exponenciais o número dos facebooks  da nossa autopromoção - ou da nossa solidão, ou da nossa vivacidade participativa no mundo - com o desemprego a multiplicar-se ainda mais, graças ao fenómeno da robotização que tornará o homem escravo da máquina e por ela vencido.

O culto do “gosto”
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL 
Público, 5/9/16
05/09/2016
O Facebook controla os nossos comportamentos e emoções, chega às nossas memórias e diz-se genuinamente “preocupado” connosco.

Há tempos, Clara Ferreira Alves referia-se ao “Cult of Likability”, expressão glosada de Easton Ellis, sobre aquilo que começa a ter contornos de patologia. Dizia ela na sua crónica: “Hoje, toda a gente quer dar nas vistas. E toda a gente está disposta a fazer tudo, incluindo vender-se e vender a família, para dar nas vistas. E ter um like. (…) Hoje impera a cultura do like, a likability, como escreveu Bret Easton Ellis. Todos somos obrigados a que gostem de nós”. O autor citado, para se ser mais exacto, tinha este alcance: “And it was this burgeoning of the likability cult and the dreaded notion of “relatability” that ultimately reduced everyone to a kind of neutered clockwork orange, enslaved to the corporate status quo. To be accepted we have to follow an upbeat morality code where everything must be liked and everybody’s voice respected, and any person who has a negative opinion — a dislike — will be shut out of the conversation”. Ou seja, castrados e reduzidos à neutralidade de uma laranja mecânica, única imaginação humana possível, num mundo em que, para se ser aceite, ela permanece enquanto consentimento de um código de irreprimível validação e como criada de servir da única verdade absoluta: a genialidade pessoal. Matéria trágica pela qual o “espelho humano” nos devolve a face que busca o crânio onde repouse e se suporte a angústia do mundo. E, pior, matéria de câmbio, onde a validação do “gosto” obedece ao deve-e-haver, sob pena de ressentimento.
Não é de negar a oportunidade do que aí se diz: o Facebook controla os nossos comportamentos e emoções, chega às nossas memórias (há quem se assuste de tão recônditas) e diz-se genuinamente “preocupado” connosco e com a matéria íntima, é verdade. E sujeita-nos a constrangimentos levados da breca. E ainda há aquela coisa dos “números de Dunbar”, desmistificadores da grande ilusão dos amigalhaços.
Mas seria pobre legitimar a censura àqueles que procuram consolo. Afinal, se Clara Ferreira Alves não contabiliza “likes”, não será certamente indiferente às referências abonatórias (sobretudo estas), em relação aos seus livros – o mais recente Pai Nosso, por exemplo –, ao volume de vendas da sua ficção, às repercussões das suas crónicas ou à espuma retórica em volta das máximas debitadas no “Eixo do Mal”, à plêiade, ao grémio intelectual da cultura e jornalismo, à tribo. Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. O jardim cujos caminhos bifurcam entre os aderentes à rede social e os outros reside em estes serem mais sofisticados a camuflar o instinto de exibição, supondo iludir-se em falsas capas négligé e outros artifícios de modéstia. Não acredito numa Clara Ferreira Alves impassível face ao eco das suas palavras. Nem ela mesma acredita – perguntamo-nos apenas qual o seu preço, quanto está disposta a pagar pela sua humana segurança. O sueco Stig Dagerman falara disto tudo nos anos 50 e a editora Fenda presenteou-nos com esse pequeno tesouro, numa lindíssima edição de 1992: A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer. Aqueles que venham apregoar o contrário não passam de vendilhões de um templo que não existe.
Eu gosto de Clara porque, ao mesmo tempo que enverga máscaras sublimes, desmascara-se numa lucidez capaz de nos provocar e de, como Dagerman, nos provar que o talento não passa de uma forma de alguém se consolar da solidão, e que tudo se resume a “um duelo entre falsas e verdadeiras formas de consolo”. Tem o ímpeto da convicção e melhor máscara não há.

Admirável mundo novo F. Sobral
«Foi em 1932 que Aldous Huxley lançou um dos mais perturbadores livros do século XX, "Admirável Mundo Novo". O mundo do futuro viveria, segundo Huxley, num "fordismo" extremo. 
Os seres humanos veriam satisfeitos todos os desejos, através de uma droga milagrosa. No fundo transformavam-se em máquinas de consumo e já não de trabalho. Há dias, num texto no New York Times, dissecava-se a opinião de Silicon Valley (o epicentro da revolução tecnológica americana e global). Ali se dizia que se alguns pensavam que a emigração, a globalização e o comércio estavam a contribuir para a revolta política e social era melhor esperarem para ver o resultado da robotização que iria mesmo substituir muitos empregos "intelectuais". 
Sabe-se que se assiste já uma deslocalização da Ásia dos salários baixos para a Europa e EUA. Mas ela não vai criar novos empregos. Os trabalhadores estão a ser substituídos por robôs. (…)
Em 1967, antes da Internet ter sido construída, Edmund Leach deu uma conferência na BBC em que dizia que: "os homens transformaram-se quase em deuses". Desde então a nossa civilização tornou-se refém da ciência e da sua evolução. E sobretudo da revolução das tecnologias de informação e das ligadas à saúde. (…) 
Segundo alguns, aproximamo-nos de um outro momento culminante, depois da hegemonia da democracia liberal como forma de poder depois do colapso do regime soviético. Mas a grande ameaça à democracia parece agora vir da revolução das tecnologias de informação e das biociências. 
A robotização acelerada é apenas o facto já visível desta mutação. Parece cada vez mais claro que os centros das nossas sociedades (individualismo, comércio livre, democracia, direitos humanos) estão a ser colocados em causa pelos "progressos" da ciência e da tecnologia. As escolhas de cada um são cada vez mais determinadas noutras esferas. Os algoritmos de empresas como a Google ou o Facebook conseguem muitas vezes determinar e impulsionar os desejos de cada ser humano antes dele se dar conta. Uma lógica de "vigilância" é já hoje comum neste nosso mundo de mobilidade extrema, onde os telemóveis se tornaram o centro de tudo. 
Com todo este aparato tecnológico à nossa volta os seres humanos estão a ser dispensáveis como trabalhadores (e num futuro próximo como militares ou consumidores). Como se conseguirá manter contratos sociais assim? Num mundo de fluxos de "data" que interessará o valor da democracia ou da liberdade individual? Vivemos tempos de mutação. Sonhados em Silicon Valley, esquecidos nesta Europa caduca. Resta saber como aguentará a pressão a panela onde a maioria dos seres se acumulam.» 

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