As polémicas entre os humanos
na questão dos conceitos de arte já são antigas, veja-se, na França do séc.
XVII, a “Querelle des Anciens et des Modernes”, entre os clássicos
seguidores de regras e os inovadores com outras concepções de arte que, cá por
casa, só dois séculos mais tarde é que tomaria idênticos foros conflituosos com
a questão entre Antero e Castilho e respectivos acólitos - “Bom Senso e Bom
Gosto” ou “Questão Coimbrã” - o primeiro nome resultante da Carta de
Antero a Castilho, que melhor esclareceu a problemática da independência de um
novo modelo literário, face a um retoricismo romântico de inspiração
sentimental e desligado do progresso. Outros conflitos houve, posteriormente,
no primeiro Modernismo anti convencional, tanto nas temáticas como ao nível
formal.
Mas tudo isso se passava entre
as elites intelectuais, como propriedade privada, que não contemplava, assim, as
populações menos literatas, as quais, por isso, não causavam dano nessas
esferas de superioridade espiritual imbatível.
Mas hoje o povo desceu à rua,
com a Internet a facilitar. E as esferas galardoadas, que se publicam em papel
não reciclado, em edições próprias, ou das editoras confiantes no êxito,
sentem-se atingidas na nobre arte que elas elevaram ao Olimpo dos favorecidos
da eternidade na glória. E, naturalmente inconformadas, elas destroem, pela ironia da erudição e
da escrita, todos esses cuja escrita ocupa espaço visual desnecessário, ainda que reservado mais aos amigos.
É pouco mais ou menos, embora com
mais erudição e estilo, o tema do artigo de António Jacinto Pascoal a propósito
de um artigo de Clara Ferreira Alves sobre o culto de si próprio escarrapachado
no facebook dos nossos tempos, como processo quase patológico actual de “dar
nas vistas”, de chamar a atenção, de
estar presente a todo o custo, de merecer apoio e o devolver, designado por Cult of Likability na expressão alheia.
E António Jacinto Pascoal parte daí para
desmascarar a própria auto estrada psicológica de Clara Ferreira Alves de uma
auto estima que se revê em plenitude, porque consciente do valor próprio, e por
isso sem caridade para com a multiplicidade infinita das outras auto estimas, objecto do seu desfavor pouco democrático.
Eu penso apenas que os antagonismos
literários de antanho se faziam entre pares, e que esta luta solitária de Clara
Ferreira Alves não tem razão de ser, numa época de liberalismos e compreensão
para com a diversidade.
Mas recebi ontem também um email – texto a
seguir ao de A.J. Pascoal - que responde tragicamente à questão da autopromoção
actual, objecto do mal-estar de CFA, pois fará multiplicar em termos
exponenciais o número dos facebooks da
nossa autopromoção - ou da nossa solidão, ou da nossa vivacidade participativa no mundo - com o desemprego a multiplicar-se
ainda mais, graças ao fenómeno da robotização que tornará o homem escravo da
máquina e por ela vencido.
O
culto do “gosto”
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL
Público,
5/9/16
05/09/2016
O
Facebook controla os nossos comportamentos e emoções, chega às nossas memórias
e diz-se genuinamente “preocupado” connosco.
Há tempos, Clara Ferreira Alves
referia-se ao “Cult of Likability”, expressão glosada de Easton Ellis, sobre
aquilo que começa a ter contornos de patologia. Dizia ela na sua crónica: “Hoje,
toda a gente quer dar nas vistas. E toda a gente está disposta a fazer
tudo, incluindo vender-se e vender a família, para dar nas vistas. E ter
um like. (…) Hoje impera a cultura do like, a likability,
como escreveu Bret Easton Ellis. Todos somos obrigados
a que gostem de nós”. O autor citado, para se ser mais exacto, tinha este alcance: “And it
was this burgeoning of the likability cult and the dreaded notion of
“relatability” that ultimately reduced everyone to a kind of neutered clockwork
orange, enslaved to the corporate status quo. To be accepted we have to follow
an upbeat morality code where everything must be liked and everybody’s voice
respected, and any person who has a negative opinion — a dislike — will be shut
out of the conversation”. Ou seja,
castrados e reduzidos à neutralidade de uma laranja mecânica, única imaginação
humana possível, num mundo em que, para se ser aceite, ela permanece enquanto
consentimento de um código de irreprimível validação e como criada de servir da
única verdade absoluta: a genialidade pessoal. Matéria trágica pela qual o
“espelho humano” nos devolve a face que busca o crânio onde repouse e se
suporte a angústia do mundo. E, pior, matéria de câmbio, onde a validação do
“gosto” obedece ao deve-e-haver, sob pena de ressentimento.
Não é de negar a oportunidade do que aí se
diz: o Facebook controla os nossos comportamentos e emoções, chega às
nossas memórias (há quem se assuste de tão recônditas) e diz-se genuinamente
“preocupado” connosco e com a matéria íntima, é verdade. E sujeita-nos a
constrangimentos levados da breca. E ainda há aquela coisa dos “números de
Dunbar”, desmistificadores da grande ilusão dos amigalhaços.
Mas seria pobre legitimar a censura àqueles
que procuram consolo. Afinal, se Clara Ferreira Alves não contabiliza “likes”,
não será certamente indiferente às referências abonatórias (sobretudo estas),
em relação aos seus livros – o mais recente Pai Nosso, por exemplo –, ao
volume de vendas da sua ficção, às repercussões das suas crónicas ou à espuma
retórica em volta das máximas debitadas no “Eixo do Mal”, à plêiade, ao grémio
intelectual da cultura e jornalismo, à tribo. Vaidade das vaidades, tudo é
vaidade. O jardim cujos caminhos bifurcam entre os aderentes à rede social e os
outros reside em estes serem mais sofisticados a camuflar o instinto de
exibição, supondo iludir-se em falsas capas négligé e outros
artifícios de modéstia. Não acredito numa Clara Ferreira Alves impassível face
ao eco das suas palavras. Nem ela mesma acredita – perguntamo-nos apenas qual o
seu preço, quanto está disposta a pagar pela sua humana segurança. O sueco Stig
Dagerman falara disto tudo nos anos 50 e a
editora Fenda presenteou-nos com esse pequeno tesouro, numa
lindíssima edição de 1992: A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de
Satisfazer. Aqueles que venham apregoar o contrário não passam de vendilhões de
um templo que não existe.
Eu gosto de Clara porque, ao mesmo tempo que
enverga máscaras sublimes, desmascara-se numa lucidez capaz de nos provocar e
de, como Dagerman, nos provar que o talento não passa de uma forma de alguém se
consolar da solidão, e que tudo se resume a “um duelo entre falsas e
verdadeiras formas de consolo”. Tem o ímpeto da convicção e melhor máscara não
há.
Admirável mundo novo F. Sobral
«Foi em 1932 que Aldous Huxley lançou um dos mais
perturbadores livros do século XX, "Admirável Mundo Novo". O
mundo do futuro viveria, segundo Huxley, num "fordismo"
extremo.
Os seres humanos veriam satisfeitos todos os desejos,
através de uma droga milagrosa. No fundo transformavam-se em máquinas de
consumo e já não de trabalho. Há dias, num texto no New York Times,
dissecava-se a opinião de Silicon Valley (o epicentro da revolução tecnológica
americana e global). Ali se dizia que se alguns pensavam que a emigração, a
globalização e o comércio estavam a contribuir para a revolta política e social
era melhor esperarem para ver o resultado da robotização que iria mesmo
substituir muitos empregos "intelectuais".
Sabe-se que se assiste já uma deslocalização da Ásia dos
salários baixos para a Europa e EUA. Mas ela não vai criar novos empregos. Os
trabalhadores estão a ser substituídos por robôs. (…)
Em 1967, antes da Internet ter sido construída, Edmund
Leach deu uma conferência na BBC em que dizia que: "os homens
transformaram-se quase em deuses". Desde então a nossa civilização
tornou-se refém da ciência e da sua evolução. E sobretudo da revolução das
tecnologias de informação e das ligadas à saúde. (…)
Segundo alguns, aproximamo-nos de um outro momento
culminante, depois da hegemonia da democracia liberal como forma de poder
depois do colapso do regime soviético. Mas a grande ameaça à democracia
parece agora vir da revolução das tecnologias de informação e das
biociências.
A robotização acelerada é apenas o facto já visível desta
mutação. Parece cada vez mais claro que os centros das nossas sociedades
(individualismo, comércio livre, democracia, direitos humanos) estão a ser
colocados em causa pelos "progressos" da ciência e da tecnologia. As
escolhas de cada um são cada vez mais determinadas noutras esferas. Os algoritmos de empresas como a Google ou o Facebook
conseguem muitas vezes determinar e impulsionar os desejos de cada ser humano
antes dele se dar conta. Uma lógica de "vigilância" é já hoje comum
neste nosso mundo de mobilidade extrema, onde os telemóveis se tornaram o
centro de tudo.
Com todo este aparato tecnológico à nossa volta os seres
humanos estão a ser dispensáveis como trabalhadores (e num futuro próximo como
militares ou consumidores). Como se conseguirá manter contratos sociais assim?
Num mundo de fluxos de "data" que interessará o valor da democracia
ou da liberdade individual? Vivemos tempos de mutação. Sonhados em Silicon
Valley, esquecidos nesta Europa caduca. Resta saber como aguentará a pressão a
panela onde a maioria dos seres se acumulam.»
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