sexta-feira, 24 de abril de 2009

As bichas do nosso desconforto

Quando vim de África, juntamente com as levas de famílias que de lá vieram também, nos aviões solidários dos TAP, que sucessivamente nos iam despejando cá, na debandada provocada pelo momento feliz que estamos todos a festejar pela trigésima quinta vez com o mesmo cravo rubro na botoeira, habituei-me às bichas da documentação necessária para as transferências dos adultos e das crianças – primeiro lá e depois aqui. Bichas longas, entediantes, morosas, vividas na surpresa do caos que sobre nós desabara com a descolonização.
Muitos são os heróis que promoveram essa surpresa, bem galardoados pelos seus feitos heróicos em promoções, bons ganhos e perpetuidade na glória.
Passado tempo, ultrapassadas as bichas da papelada para reorganização material da vida cá, outras bichas surgiram, mais longas e entediantes ainda, pois duravam o dia inteiro, com continuação, por vezes no seguinte, para se receber o vencimento, reduzido a metade, na situação de funcionários adidos. Eram as bichas no B. N. Ultramarino, ao Rossio, inicialmente, posteriormente transpostas para a FIL, com as avalanches em acréscimo imparável.
Mas, enfim, a Pátria estendera-nos a mão, restava-nos cumprir e adaptar-nos. O sentimento envergonhado de equiparação com outras levas – de animais ou de desterrados Judeus - não ousávamos manifestá-lo, reconhecendo-nos numa posição infinitamente superior à daqueles, mimados nós outros no confronto.
Adaptámo-nos. As bichas pararam, excepto as das greves aos produtos. Outras vidas se ergueram, na pretensa estabilidade trazida pela ajuda europeia. Mas a democracia por que os bem intencionados ou os fala-baratos lutaram, ruíra, no outro caos dos laxismos, que generalizaram a indisciplina moral e mental, levando à nossa miséria.
Outras bichas se formaram e estas estão para se manter. Jovens sem futuro, velhos sem arrimo, os telejornais os mostram, maltrajados, infelizes, tristes, os filhos do nosso amor, que a Pátria, esgotada de recursos, porque houve quem os sugasse, não pode mais obter, desde que a prevaricação se institucionalizou. Custa olhar!

Nenhum comentário: