domingo, 26 de abril de 2009

O cinismo no progresso

O mundo é velha cena ensanguentada / Coberta de remendos, picaresca / A vida é chula farsa assobiada, / ou selvagem tragédia romanesca.” Isto afirma Cesário a propósito de um casal de amantes, ele mais novo mas submisso, ela velha e perversa mas frequentando a missa aos domingos, com o missal que o amante “levava na tremente mão nervosa”. Os dezanove anos de Cesário assim assinalavam, precocemente, traços caricaturais evocativos de Daumier, em síntese atenta ao mundo, de uma sociedade defeituosa.
Hoje, cenas dessas também se verificam, outras de faca e alguidar, de brutalidades cada vez mais requintadas, e mais mediatizadas.
Mas as crianças, Senhor! / Porque lhes dais tanta dor? / Porque padecem assim?” Não, não se trata dos pezinhos descalços da criança pobre caminhando na neve, da balada de A.Gil, estimulante da nossa compaixão em oferta imediata de sapatos velhinhos para poder atravessar a neve mais confortavelmente. As crianças de que se fala são as deste nosso século.
A notícia vinha hoje no Diário de Notícias a respeito da viragem dos medos das crianças americanas, não mais do ogre, nem do lobo feroz ou da malvada bruxa dos ingénuos contos infantis. Que o mundo está cada vez mais transformado em “velha cena ensanguentada”, na monstruosidade dos raptos de crianças, ou de violações, de sismos, todo o tipo de actos de terror, que obrigam os pais a industriar os filhos precocemente sobre a maldade do mundo e a povoar as suas mentes de pesadelos inultrapassáveis, impondo medicação apropriada.
As próprias casas, sobretudo dos bairros elegantes de outros tempos, substituíram as sebes de plantas dos seus jardins, por muros altos ou tapumes que as transformam em masmorras isoladas do mundo, donde se sai e se entra de carro, com comando à distância, garante de tranquilidade.
Aconselha-se os pais, que trabalham fora, a proibirem o acesso dos filhos aos noticiários alarmantes, das catástrofes e dos actos de terror. Mas as cenas indecorosas, os filmes de violência, são largamente difundidos nos canais televisivos e, a par de alguns filmes encantadores para os mais pequenos, cedo se lhes fornecem histórias terríficas em filmes animados, de personagens feias, hediondas, com que se iniciam no terror do mundo e nos pesadelos dos seus sonos.
A democracia ajudou à desfiguração, ao desequilíbrio, à ruptura da ordem e dos valores morais, à libertinagem, à falta de gosto de tanta “literatura infantil”, responsável pela generalização do crime, na base, pois, dos terrores em que vivem os nossos filhos, desde cedo industriados neles.
Parece cinismo, pois, o aconselhamento moral ou médico, quando tais potências do mundo adulto, que os responsáveis pelo progresso aplicam escrupulosamente, se não coibem de interferir no universo infantil - pela televisão, pelo computador, pela droga, pelo álcool... - sem obstáculos nem sanções. A família torna-se cada vez mais impotente e as escolas sofrem impotentemente as consequências disso. Em toda a aldeia global, não apenas nos Estados Unidos.

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