Da velha mala do meu pai, onde os livros que não cabiam na sua estante tinham sido arrumados pela minha irmã, retirei um de que há muito ouvira falar, sem saber que existia tal preciosidade no espólio da minha família. Tratava-se de “Cartas da Zambézia” de Francisco Gavicho de Lacerda, avô do Rui e do Otto, bisavô de meus filhos Ricardo, Paula e João, filhos do Rui, de minhas sobrinhas Mirene e Madalena, filhas do Otto, Rui e Otto filhos de Luís, além de outros primos, filhos de um meio irmão do Rui e do Otto, Luís, de um primeiro casamento do pai, amigos dos meus filhos, mas com raras aproximações, que os vendavais do tempo foram disseminando pelo mundo. Mas outros filhos “Lacerda” teve o “avô Gavicho”, segundo designação dos manos Rui e Otto, e outras famílias se dispersaram no mundo, alguns bem simpáticos, no dizer da minha filha Paula, que conheceu uma tia, irmã de seu pai, no dia do funeral deste.
E deste jeito bíblico, embora com
mais modéstia na indicação das idades – largamente centenárias as dos
patriarcas do Génesis – se aponta a via paterna da família Lacerda, com assento
no “patriarca” ilustre e de brasão que, nas suas “Cartas da Zambézia”
forneceu tantos dados sobre a terra de que a minha amiga, nove décadas
depois - o livro foi publicado em 1923, em 2ª edição - fala sempre com emoção e entusiasmo –
os mesmos que impeliram o “avô Gavicho” da designação do seu neto Rui, a
defender essa terra, para onde foi “trocando a luzente fardeta de cavalaria
pela indumentária simples de colono”, “a moirejar sem descanso até que,
porfiando e lutando, conseguiu tornar-se arrendatário de um “prazo” que, ao
presente, lhe assegura um rendimento algumas vezes multiplicado pelo soldo que,
decerto, lhe caberia no posto de comandante de um batalhão, se tivesse seguido
a carreira militar.”
São estes dados colhidos do Prefácio
do livro, pelo seu amigo e ex-colega jornalista, escritor Affonso Gayo,
que, no penúltimo parágrafo, resume assim o conteúdo do livro de Gavicho de
Lacerda: “Da sua leitura conclui-se qual é o valor daquela rica possessão,
fica-se sabendo o que se tem feito e o que é necessário fazer para a tornar
mais valorizada. Estimulam, criam iniciativas e dão fé aos que pretendam
emigrar por aquelas paragens. Explicam-nos o modo como o emigrante aprende,
ali, a ter iniciativas, se habitua a proceder e a deliberar, a fim de vencer as
agruras do clima, a suportar com coragem as dificuldades da adaptação e a
reunir, pelo trabalho e estímulo individual, um somatório de energias com que
pode combater com a saudade dos entes caros e com a nostalgia do rincão onde
nasceu.”
Foi com curiosidade que o li, desde a
dedicatória à mocidade actual “por intermédio do “Ill.mo e
Ex.mo Sr. Ministro da Instrução Pública”: «Desde criança que ouvimos dizer – “O
futuro de Portugal está nos mares”. – Quando do “Ultimatum” de 1891, em que a
nação despertou pela vibrante e terrível chicotada de Jonh Bull, e que fez que
trocássemos a modesta farda de estudante militar pelo fato de caqui, foi lá, no
ultramar, que fomos ver e aprender o quanto havia de verdadeiro, naquelas
palavras…» dedicatória que conclui: « Na Zambézia trabalhámos, lutámos;
à Zambézia dedicamos o amor de segunda pátria. Se a mocidade tirar algum
proveito da leitura deste livro, consideraremos isso como justo galardão e
daremos por bem empregados perigos, trabalhos e desgostos que por lá passámos.»
Vária é a gama de assuntos e fotos –
entre as quais a do autor, garbosa figura, na foto inicial, mais jovem e
descontraída a de interior, rodeado de africanos e arvoredo, perto da
residência do Carungo – “O Autor, um ano depois de ter partido para a
Zambézia”.
Curioso volume de memórias sobre um
território, pois, que desbravou e amou, não poupando críticas a certas formas
de extorsão ou de desleixo das políticas portuguesas, que dificultavam e atrasaram
sempre o desenvolvimento da colónia,
pelo atraso das concessões de terrenos, da construção de vias e portos «Lá
fora somos conhecidos pelo vergonhoso epíteto de “empecilhos da civilização”»…
«Devemos considerar que, se continuamos a ser uma nação livre e independente,
unicamente o devemos ao nosso grande domínio colonial, por conseguinte têm as
colónias todo o direito a ser dotadas com os melhoramentos que a civilização e
o progresso indicam e as suas urgentes necessidades reclamam.»
Era um homem de fibra, o avô
Gavicho, mas inúteis são os seus conceitos hoje a que - embora insistindo-se
no “tal futuro marítimo português centrado no mar ”, não o além-mar
colonial, há muito morto em colapso, mas num mar de turismo ou carga que exige
dinheiro, também em colapso - se ficará indiferente perante dizeres para sempre
inúteis de valorização de propriedades, como no passo seguinte: “O Chuabo
Dembe é uma das primeiras propriedades agrícolas da Zambézia, causando inveja a
alguns arrendatários. É banhada pelo Rio dos Bons Sinais ou de Quelimane, e
separada da vila pela Avenida da Circunvalação. Cortam-na os canais Namarra e
Nhama e há meia dúzia de anos era mato espesso e impenetrável, sendo por isso
ainda mais admirávela sua transformação». E segue-se a eloquente descrição.
O horror das secas, a praga dos
gafanhotos que tudo devastam, a indolência manhosa da raça indígena, as
operações de infiltração pelo interior em colunas de que fez parte e que
descreve com dados de rigor, as missões católicas, o absurdo envio pela
Metrópole de degredados como colonos, os palmares de coqueiros que ele próprio
mandou plantar e o valor comercial da copra, assim como outras riquezas e anomalias
várias, tudo isso é descrito com vigor e desassombro, em páginas apaixonantes de
história pessoal e colonial, que bem poderiam inspirar os empresários
cinematográficos para um filme de tão diversa cenografia.
Deste livro que meu filho mais velho
encontrou um dia na Real Biblioteca Portuguesa do Rio de Janeiro, transcrevo
excertos da primeira carta, sobre o “Carungo”, onde os meus filhos também brincaram
na adolescência, na casa do avô Luís e da avó Irene, jogadora impenitente da
canasta com as suas amigas de Quelimane, carta que contém, entre outras, a foto
da casa, que reconheço por ter fotos idênticas.
Entretanto, a curiosidade levou-me a
procurar o livro na Internet, que encontrei bastamente exposto. Creio que a 1ª
edição foi de 1920, a 3ª de 1939, e, naturalmente, existe na Biblioteca Nacional.
Penso que merece o destaque e maior ainda poderia ter tido durante os tempos colonialistas,
em que poderia ter contribuído para sanar erros da administração de lá como de
cá. Passou. Mas o retrato do povo português lá está, com os defeitos e virtudes
de sempre. E entre esses, o retrato de Francisco Gavicho de Lacerda, homem de
coragem e de princípios, “da velha linha dos Cabrais”, diria o seu neto
Rui por brincadeira. Fico feliz por meu pai o ter lido, provavelmente comprou-o
quando foi transferido para Quelimane, por um daqueles motivos da governação
colonialista, de ostracismo tanta vez, e injustiça.
«Os Prazos da Zambézia»
Nota em rodapé: No prazo Carungo existem hoje 300 000
palmeiras sendo cerca de 100000, pertencentes ao arrendatário e o resto a vários
proprietários, filhos do país, e a colonos que ali encontraram campo propício
para a sua actividade, assegurando, também de alguma forma, o seu futuro.
Devido à sua pequena área, é dos poucos prazos que têm mais da terça parte
agricultada e plantada. As plantações estão divididas pelos três distritos de
Carungo, Nametange e S. Domingos, em que está dividido o prazo, o que
proporciona aos indígenas o trabalharem próximo das suas povoações, não havendo
necessidade de os deslocar para longe delas. Este prazo, como acontece com os
outros da Zambézia, está cortado por uma bela rede de estradas carreteiras,
tendo-se construído pontes sobre os cursos de água e aterros sobre os terrenos
pantanosos. Constroem-se nele embarcações de vária tonelagem; fabrica-se
tijolo, cria-se toda a espécie de gado e não há género no país que ali se não
cultive, quer para alimentação dos trabalhadores, quer dos animais. (…)»
««Perde-se na noite escura dos tempos
a origem da antiga e histórica instituição dos prazos da Zambézia, cujas raízes
fecundas, alastradas por esta tão vasta como rica região, têm resistido a todos
os golpes , como os de 6 de Novembro de 1838, 22 de dezembro de 1854, e 27 de
Outubro de 1880, lhes vibraram, a fim de extinguir tão benéfica como única e
profícua instituição.
Por mais esforços que tenhamos feito
e por mais trabalho que tenhamos empregado, ainda não conseguimos, até hoje,
descobrir a origem do sistema dos prazos, a que a Zambézia deve o estado de
riqueza e florescência a que chegou.
Mas parece que a divisão do
território em prazos é quase tão antiga como o nosso domínio, assim como também
datam dessa época as obrigações que regulavam o estabelecimento de portugueses
naquelas magníficas paragens. Mais tarde, António Enes quando Comissário Régio,
que a Moçambique dedicou excepcionais cuidados, viu, com olhos de ver, que o
verdadeiro caminho para a prosperidade e engrandecimento da Zambézia, era o
sistema dos prazos que ali estava enraizado há séculos, na índole dos seus
povos, educados por gerações sucessivas de portugueses que para a Zambézia iam
trabalhar, viver e morrer, e que da Zambézia faziam uma segunda pátria.
Aquelas vastíssimas extensões de
terreno, cobertas de florestas virgens, de pântanos mortíferos, estão hoje
transformadas em viçosos palmares de milhões de coqueiros, de plantações com
léguas de extensão, de cana sacarina, de algodão, de sisal, de tabaco, milho,
etc. (…………….)
O prazo Carungo, de que somos
arrendatário, é um dos mais pequenos da Zambézia, situado na margem esquerda do
Rio dos Bons Sinais, a umas dez milhas da Vila de Quelimane. Estende-se até à
foz do Rio Linde, ficando, por assim dizer, encravado entre os prazos
Inhassunje e Pepino..
Tem três estações agrícolas: Carungo,
Tumbuíne e S, Domingos, com cerca de 83 000 palmeiras, metade em produção e 20
000 em viveiro, para novas plantações. A natureza do terreno, que é muito
baixo, como todo o do grande delta do Zambeze, tem feito que hajam sido
infrutíferas todas as outras tentativas de diversas plantações que temos
experimentado, como café, borracha, sisal, etc.
Produz arroz em grande quantidade,
feijão, mandioca e hortaliças e tem lindos pomares de laranjeiras, tangerineiras,
ateiras, goiabeiras, papaieiras, etc
O seu arrendamento foi-nos dado por
mais 15 anos, olhando aos serviços que prestámos em diversas campanhas e ao
facto de termos agricultado mais de 1200 hectares de terreno a que, pelo primitivo
contrato, não éramos obrigados.
É um dos três prazos da Zambézia que
ainda não foi absorvido pelas grandes companhias e, apesar de termos pedido
autorização ao governo e esta ter sido concedida e há dois anos publicada no
Boletim Oficial da Província, para o trespassarmos para a sociedade do Madal, não
o fazemos, porém, por nos acharmos ainda com forças para trabalhar, não
obstante vinte anos de permanência nesta região, e por desejarmos que os nossos
filhos venham, mais tarde, a seguir as nossas pisadas e acabar a nossa obra
ideal de plantar todo o terreno susceptível de o ser. (…..)»»
Conclui a carta, após a referência à
hospitalidade das suas gentes, com a crítica à indiferença dos governos por
melhoramentos tão frequentemente pedidos e que “o seu desenvolvimento e a
sua riqueza reclamam”, e pelos quais ele continuará sempre a bater-se.
P.S.
O Dr
Salles da Fonseca colocou no seu blog “A Bem da Nação” o texto supra, semeado
de imagens que colheu na Internet, algumas acrescentadas de dados
biográficos de homenagem a Gavicho de Lacerda, que transcrevo com o auxílio
da lupa.
O
meu reconhecimento a Salles da Fonseca e simultaneamente aos familiares do “Avô
Gavicho” que colocaram tais “lápides” para a posteridade daquele. Na realidade,
tem sido uma surpresa contínua para mim: Descubro que Gavicho de Lacerda, tem
uma Fundação com o seu nome, aberta pela bisneta Maria Paula, filha
de Luís Lacerda, o tio Luís, também já
falecido. Eis os textos das imagens supra, extraídas da Fundação e mais
perceptíveis naquela:
1º ícone:
GAVICHO DE
LACERDA
23 de Julho de 1873 – 23 de Julho de 2013-11-24
Vamos celebrar os 140 ANOS Do
Nascimento do Proprietário Que
marcam o início da nova vida do Carungo
GAVICHO SALTER DE SOUSA DO PRADO DE LACERDA
Nasceu
em Aljubarrota em 23 de Julho de 1873 e veio para Quelimane em 1893. Foi
agraciado com as Medalhas Campanhas do Ultramar D. Amélia e com as Comendas de
Mérito Agrícola e da Ordem Militar de Cristo.
E
por sua vontade foi sepultado na Terra a que dedicou 30 anos de uma vida de
Amor e Trabalho e que o destino quis que fosse imortalizada como VILA GAVICHO,
perpetuando a sua passagem por este lugar especial onde sempre semeou a PAZ e a
PROSPERIDADE
23
Julho, 7 da manhã – colocação de coroa de flores na campa . 27 de Julho, 1 da
manhã, celebração da missa seguida de convívio.
Local: Capela de Nossa Senhora da Nazareth, Vila Gavicho, Carungo
2º
ícone. Encimando um palmeiral:
«O Carungo
é um dos três prazos da Zambézia que ainda não foi absorvido pelas grandes
companhias e, apesar de termos pedido autorização ao governo e esta ter sido
concedida e há dois anos publicada no Boletim Oficial da Província, para o
trespassarmos para a sociedade do Madal, não o fazemos, porém, por nos acharmos
ainda com forças para trabalhar, não obstante vinte anos de permanência nesta
região, e por desejarmos que os nossos filhos venham, mais tarde, a seguir
as nossas pisadas e acabar a nossa obra ideal de plantar todo o terreno
susceptível de o ser.»
In “Cartas
da Zambézia, 1923 - Gavicho de Lacerda - O último arrendatário dos extintos
prazos.
3º ícone, contendo o
emblema da Fundação ”Prazo Carungo”, “Lugar de Paz e Prosperidade desde 1897”,
e o nome da sua autora, Maria Paula Neves Sousa Prado de Lacerda.
Um comentário:
Boa noite!
Por acaso esta obra está autografada pelo autor?
Grata,
Idalina Nunes
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