A Adolfo
Casais Monteiro, que lhe pedira, entre outras referências biográficas, a
génese das suas diferentes personalidades poéticas, escreveu Fernando Pessoa na
sua extensa carta de 13 de Janeiro de 1935, entre outros dados que incluíam o
motivo da escolha da Mensagem como primeira obra publicada em volume –
de resto a única, visto que Pessoa morreria nesse ano (30/11) -o seguinte:
«…A
origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim.
….Seja
como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica
e constante para a despersonalização e para a simulação.
…..Desde
criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me
cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se
realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em
todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a
que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos,
carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e
minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real.
….Vou
entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer
saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu
à luz).
Aí
por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns
poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro
de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso.
Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa
que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo
Reis).
Ano
e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao
Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e
apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei
uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente
desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta,
e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E
escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não
conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e
nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos.
E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o
nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em
mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que,
escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro
papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua,
de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de
Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor,
foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido
Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e
subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo
o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque
nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo
Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de
escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos
— a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
….
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor
mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de
Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não
me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está
presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915;
nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão
nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15
de Outubro de 1890 (à 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade,
pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é
engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade.
Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu
tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas
muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m
de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara
rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno
mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo,
porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não
teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo
o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos.
Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de
jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou
espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um
semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar
de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro
mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou
o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como
escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem
saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma
deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando
sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu
semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com
Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que
tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela
prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a
personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação
dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o
raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente
igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos
razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo»,
etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O
difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A
simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).»
Os muitos estudiosos
de Pessoa pegaram na expressão “dia triunfal” referente ao nascimento
de Alberto Caeiro, e por ele empregue na carta a Adolfo Casais Monteiro, (sobre
o ficcionismo “sério” das suas criações onomásticas e poéticas) para, entre
outras iniciativas, organizarem um Colóquio de três dias na Fundação
Calouste Gulbenkian, promovido pelo “Projecto Estranhar Pessoa”,
assinalando o dia 8 de Março de 1914, dessa efeméride.
No seu artigo do
Público de 8 de Março - O "dia triunfal" de Pessoa:
uma ficção verdadeira” - Luís Miguel Queirós começa por contestar a afirmação de Pessoa com a frase
seguinte: “Alberto Caeiro não
terá surgido do nada no dia 8 de Março de 1914, como Pessoa pretendeu, mas a
obra pessoana exigia mesmo um “dia triunfal”, defende António M. Feijó.”
Seguidamente, refere
as circunstâncias narradas por Fernando Pessoa na sua carta a Casais Monteiro:
“Nessa
carta escrita já no final da sua vida, em Janeiro de 1935, Pessoa explica que
tivera a ideia de criar um poeta bucólico para “fazer uma partida” a
Mário de Sá-Carneiro, mas que já desistira do projecto quando, no dia 8 de
Março de 1914, se acercou de uma cómoda alta e escreveu, sob o título O Guardador de Rebanhos, “trinta
e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase”. E acrescenta: “aparecera em mim
o meu mestre”. Ao qual, diz, chamou de imediato Alberto Caeiro.
Já
não seria pouco para qualquer poeta, mas o seu “dia triunfal” não se
teria ficado por aí. Pessoa diz que a seguir escreveu de rajada os seis
poemas de Chuva Oblíqua,
numa “reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto
Caeiro”, e que tratou logo de “descobrir — instintiva e subconscientemente — uns
“discípulos” de Caeiro: um “Ricardo Reis latente”, que arrancou ao
seu “falso paganismo” e, “em derivação oposta”, Álvaro de Campos, que
veio com a “Ode Triunfal”,
escrita “sem interrupção nem emenda”.
Luís Miguel Queirós
refere seguidamente a contestação feita por António M. Feijó baseado
nas investigações de Ivo Castro intuitivamente
contestadas por Luciana Stegagno Picchio:
«No
texto com que abriu, na quinta-feira, o primeiro dia do colóquio “A
necessidade do dia triunfal” — e cujo argumento central resumiu ao PÚBLICO
—, o professor e ensaísta António M. Feijó lembrou que o investigador Ivo
Castro, coordenador da equipa responsável pela edição crítica de Pessoa, “demonstrou
que os poemas de O
Guardador de Rebanhos foram escritos entre 4 de
Março e 10 de Maio de 1914” e que não há nenhuma
indicação, nos manuscritos, de que algum poema tenha sido escrito no dia 8 de
Março. A investigação de Ivo Castro sugere ainda que, ao contrário do
que Pessoa dirá em 1935, o título do livro e o nome de Caeiro só teriam surgido
depois da escrita dos poemas.
Observando
que estes dados parecem reduzir o suposto dia triunfal a “uma fábula
de Pessoa”, Feijó recorda depois a reacção da desaparecida
lusitanista italiana Luciana Stegagno Picchio, que reconheceu a solidez
das provas apresentadas por Ivo Castro, mas, mesmo assim, afirmou
continuar a “acreditar na existência de um dia triunfal, em nome da
poesia”.
O
argumento de Feijó passa por admitir que Ivo Castro tem razão,
mas, ao mesmo tempo, defender que “a intuição de Stegagno Picchio foi
certeira”, ainda que esta não a tenha sustentado com as necessárias provas
textuais.
E surge a tese
defendida por António M. Feijó que Luís Miguel Queirós
referencia:
«E o que Feijó
se propôs foi justamente fornecer essa fundamentação, recorrendo a um numeroso
conjunto de textos que, no seu conjunto, demonstrariam que “a obra de
Pessoa é um sistema, e que esse sistema tem de ter um dia triunfal, decisivo”.
E Pessoa escolheu “o dia em que lhe aparece esta figura quase divina que
é Alberto Caeiro, musa que inspira todo o conjunto de heterónimos e que é,
ao mesmo tempo, o seu mestre”. E decidiu posteriormente que esse “dia triunfal”
ocorrera a 8 de Março, depois de — nota ainda Feijó — “ter chegado a hesitar
entre 8 e 13 de Março”.
Novos
desenvolvimentos de apoio à tese de Ivo Castro são fornecidos por Richard
Zenith, prémio Pessoa em 2012:
«No prefácio que
escreveu para a antologia de Caeiro publicada na colecção Pessoa Breve da
Assírio & Alvim, que dirige com Fernando Cabral Martins, o pessoano Richard
Zenith, prémio Pessoa em 2012, apresenta dados filológicos que coincidem
com os de Ivo Castro, mas recorda que nessa Primavera de 1914, Caeiro
começou por ser o autor não apenas de O
Guardador de Rebanhos, mas também de odes futuristas depois atribuídas a Álvaro de
Campos, e dos poemas interseccionistas de Chuva
Oblíqua, que transitariam para o ortónimo. E em meados desse ano,
poucos dias depois de Álvaro de Campos, surgiria Ricardo Reis e algumas das
suas primeiras odes. Ou seja, Caeiro teria começado por ser, nota Zenith, “um
poeta modernista multifacetado”.
Do início de Março a
meados de Junho de 1914, surgem Caeiro, Campos e Reis, e Pessoa escreve poemas
“de” cada um deles. Ou seja, o centro nevrálgico da sua obra, a que ele
próprio chamará heteronímia, define-se de modo decisivo neste breve período.
E são “esses três meses de criação poética extraordinária”, diz Zenith, que
“foram celebrados por Pessoa como sendo o seu ‘dia triunfal”.
E
Luís Miguel Queirós
conclui a sua excelente síntese com as provas enunciadas por Zenith na
comunicação deste, a que teve acesso, que apontam para o carácter
mistificatório de um génio carregado de multiplicidade de génios dentro de si:
«Na comunicação que
este sábado apresentará na Gulbenkian, intitulada “Reis triunfal”, Zenith
irá defender que antes da “cisão entre Caeiro e Campos”, comprovada
pela transição para o segundo das odes futuristas que Pessoa começara por
atribuir ao primeiro, existira já uma cisão entre Caeiro e Reis. Ambos
descenderiam, defende Zenith com argumentos que não será possível adiantar
aqui, de um “poeta do paganismo concebido por Pessoa já em 1910”. Mais
do que isso, Pessoa terá chegado a “contemplar”, a benefício de Ricardo
Reis, um “momento triunfal” muito semelhante ao que ficcionou para Caeiro.
“E tinha boas razões
poéticas para isso”, defende Zenith, observando que em três dias -— 12, 16 e 19
de Junho de 1914 —, Pessoa “escreveu e datou” 14 odes de Reis. “Não parece que
a produção caeiriana, na sua primeira semana, tenha sido mais abundante”, conclui.
É neste contexto que
se insere o trabalho de Joanna Cameira Gomes «Fernando Pessoa e a Grande
Brincadeira», cujo texto
de apresentação, no livrete da Gulbenkian que referencia os vários autores e
estudos, transcrevo, por me parecer uma síntese elegante e expressiva não só
dos objectivos do Colóquio, mas dos objectivos do seu estudo.
Já em
tempos (1/7/2011) fiz para o meu blog uma breve análise da sua dissertação de
mestrado “Mémoire de Master I” - “La mise en scène, l’Ironie, Le Jeu dans “Le
Livre de l’Intranquilité” de Fernando Pessoa”, dissertação excelentemente arrumada segundo as
facetas da dimensão literária do semi-heterónimo Bernardo Soares, um
autor que tanto admira.
A sua “Mémoire de Master 2”,
de 2012, com que finalizou o 2º ano, e lhe valeu a classificação de 18 valores
– “Les
faces multiples du génie – génese d’une conception d’art et d’artiste et le
passage à l’oeuvre.», contém em epígrafe a síntese do seu programa: “Étude sur
la pensée et l’oeuvre de Fernando Pessoa, et de son laboratoire d’alchimie”
que envolve a relação entre o génio e a loucura, o génio como manifestação
patológica, em que Álvaro de Campos foi a personagem escolhida para o
seu estudo, passando “aussi brièvement par la chambre de Bernardo Soares,
autre citadin, cette fois-ci, d’apparence plus normale que celle de Campos”.
Eis, pois, no
livrete da Gulbenkian, entre outras sínteses de estudos específicos de
interesse acerca de Pessoa e autobiografias, a auto-apresentação de Joanna,
minha segunda sobrinha, nascida no mesmo dia da sua bisavó materna, a oitenta
anos de distância temporal:
Joana Cameiro Gomes, Universidade Nova de Lisboa
«Fernando Pessoa e a
Grande Brincadeira »
«Análise do humor no
Livro do Desassossego, bastidores do «drama em gente»
«A dimensão
cómica da obra de Fernando Pessoa parece ressoar no próprio motivo que
convoca este colóquio: a comemoração dos 100 anos do “dia triunfal” da
ficção pessoana, ele próprio ficcionado, em que surgem através da escrita as personagens
principais e as bases da encenação do drama-comédia dos heterónimos. (Este que
nasce também de um dia se ter lembrado “de fazer uma partida ao Sá Carneiro”).
Pretendemos demonstrar que, além da missão civilizadora da literatura reclamada
por Pessoa, a sua criação, assente numa despersonalização contínua, no jogo
dialógico de dissonâncias de estilos e formas literárias que dissolve a ideia
de uma verdade ou visão única, tem como motor e propósito um gozo superior ou
uma Grande Brincadeira, implicada igualmente na forma como concebe o fingimento
poético. Percorrendo algumas das referências ao humor na obra de Pessoa
pelos seus comentadores, e seguindo as várias pistas deixadas pelo autor, analisaremos
não a poesia mas a prosa em alguns aspectos do humor no Livro do Desassossego,
considerando-o uma espécie de bastidores do teatro pessoano, concentrado
na figura literária de Bernardo Soares, e na sua moderna consciência do “trágico
da ausência de trágico”.
Acrescento a Nota
biográfica inserida na mesma página:
Joanna Gomes (1987),
colaboradora no projecto Estranhar Pessoa, concluiu o mestrado na
Universidade Paris-Diderot (Paris 7) em 2012, com uma dissertação sobre a obra
literária e o pensamento de Fernando Pessoa intitulada «Les faces multiples
du génie – La genèse d’une conception d’art et d’artiste et le passage à
l’oeuvre.» Organizou e posfaciou uma antologia bilingue (francês e
português) bilustrada de poemas do autor para o público juvenil, a publicar
este
ano. No cruzamento da ficção com a realidade tem-se interessado
particularmente pela literatura moderna em sentido lato, pelas relações desta
com a vida urbana e pelo humor em geral.
E o seu trabalho para a efeméride, que soube
apresentar com à vontade expressiva, aliando à leitura a prática da dissertação
oral:
«Fernando Pessoa e a
Grande Brincadeira »
«Análise do humor no
Livro do Desassossego, bastidores do «drama em gente»
«Quem não ri, ou pelo menos sorri, lendo alguns dos
textos do nosso querido autor? Imaginando-o a manejar os seus seres ficcionais
tal como uma criança manipula os seus bonecos articulados, atribuindo-lhes
caracteres, falas, inventando-lhes uma vida e relações entre elas. Nesta imagem
da brincadeira, em que assistimos aos encontros e desencontros destas
personagens de papel (no entanto fora do texto propriamente dramático), que se
admiram, ora se entendem ora se zangam, escrevem uns para os outros e lêem-se entre
si, cada um com um pensamento que corresponde a um estilo literário
consistente, parece existir algo que escapa à seriedade da invenção de uma obra
megalómana, e que decorre de uma dimensão humorística, que pertence à esfera da
brincadeira. Neste teatro de si próprio em que o autor fictício funciona já
como obra, e se dá «como espectáculo ao homem». Não haverá um propósito
cómico maior na obra de Pessoa, não terá o drama em gente uma dimensão
humorística relevante? Um «humorista de tom glacial» como o define Octávio
Paz, EDUARDO LOURENÇO O sentido de humor na sua obra não é acaso nem ocasional.
Neste curto ensaio seguiremos algumas pistas para considerar Pessoa como Grande
Arquitecto de uma Grande Brincadeira (em referência à expressão utilizada
na carta sobre o Dia Triunfal), e o modo como essa visão do mundo concorre à da
criação de uma obra. Centrar-nos-emos em algumas passagens do Livro do
Desassossego, por ser «a obra que mais obriga a uma leitura intertextual
dentro do universo pessoano» (Jorge de Sena), e pelo seu carácter mais íntimo e
experimental que funciona como uma antecâmara da criação poética, no qual a
escrita é a forma soberana através da qual Bernardo Soares se faz existir.
O autor-personagem do Livro do Desassossego é o
primeiro a referir, em vários dos trechos do Livro a falta de seriedade com que
considera as coisas sérias da vida. Com o seu estilo próprio, que inverte e
baralha os lugares-comuns, o sentido habitual das palavras, exercendo o seu
gosto pelo paradoxo dissolvendo o pensamento recto, ortodoxo, Bernardo Soares
diz: Toda a vida fui fútil metafisicamente, sério a brincar. Nada fiz a sério
por mais que quisesse. Divertiu-se em mim comigo um destino malin (L do D,
p. 159.). Encara gravemente, metafisicamente o banal o frívolo (“a
banalidade é uma inteligência” / “o quotidiano é materno”) ou brinca com o que
é suposto ser sério… Sugerindo a imagem dum divertimento conjunto, em que uma
circunstância maior que escapa ao seu controlo e participa desta falta de
seriedade, personificada na expressão destino malin (malandro), se diverte nele
e com ele.
São de facto várias as passagens desta Autobiografia
sem factos em que nestes mesmos termos o autor nos vai sugerindo aqui e lá que
não concebe a sua vida nem a sua obra com seriedade mas antes como uma
brincadeira, um jogo ou uma distracção que o ajuda a atravessar o “infinito do
serão”:
«(…) Nestas
impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha
autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões,
e, se nelas nada digo é que nada tenho que dizer. (…) Minha tia velha fazia
paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são
paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o
destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente
valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de
cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças
para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete.
Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.» (Idem, p.60-61)
Neste conhecido
trecho encontramos novamente alguns dos mesmos temas, nas palavras que vão
aparecendo em pares antitéticos ou paradoxais, tão frequentes na prosa de
Bernardo Soares: a ironia com que se apropria do título da primeira
autobiografia moderna, “são as minhas” “Confissões” (Rousseau), e inverte o
grande desígnio de Rousseau de expor em toda a sinceridade e verdade os
movimentos da sua alma ao longo da sua vida. Para Bernardo Soares este
princípio da sinceridade não é alcançável nem desejável na medida em que
«Exprimir é sempre errar. (Pois noutro texto escreve: A mais vil de todas as
necessidades − a da confidência, a da confissão. É a necessidade da alma de ser
exterior. Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. P. 327.) e é
essa noção que lhe permite ir-se transformando a si e ao mundo enquanto escreve,
à imagem da «meada multicolor» que enquanto se desenrola vai revelando outras
cores. Tal como as cartas de jogar que a sua tia vai dispondo para se entreter
ao longo do serão, que por serem jogo não podem ter nenhum sentido certo, BS
escreve, inventando e desenrolando a fábula de si próprio. Estas suas
confissões são assim análogas a um entretenimento − o jogo de cartas, ou o
crochet (imagem com que termina o trecho «Sim, croché») − ou a uma
brincadeira de crianças (as figurinhas de cordel) em que encontramos
também a ideia de multiplicidade e mudança da forma («Depois viro a mão e a
imagem fica diferente»), que nos remete precisamente para o espaço dos
bastidores do dispositivo dos heterónimos.
A tentativa de redescobrir as brincadeiras infantis
através da criação poética, ou a aproximação que estabelece entre a arte e a
infância, tomando como exemplo os jogos que imitam a vida introduzindo um
elemento de desafio lúdico e ficcional, tal como a manipulação de bonecos, o
jogo do fingir (“e agora eu era…”), constitui uma fonte de inspiração, pelo
mistério que representa esse reino da “imaginação-realidade”. Funciona
também como uma perspectiva que lhe permite lidar com afectos e emoções
desagradáveis, extraindo-lhes a gravidade, evadindo-se do sofrimento,
transformando-os no prazer do humor ou do riso − pois nas sensações alegres
subsiste algo de infantil.
Freud, num curto ensaio de 1927 sobre o
humor, fala na “vitória do princípio do prazer”, e do “triunfo da
invulnerabilidade do ego, resistindo à crueldade das circunstâncias reais”,
aproximando a faculdade do humor à brincadeira de crianças: «Vejam! Este mundo que parece tão perigoso. Não é
nada senão uma brincadeira de crianças – sobre a qual só vale a pena fazer uma
piada.» Bernardo Soares, dentro do seu humor sombrio e melancólico,
parece criar ou viver gozando desse poder da imaginação advindo da infância,
«reconhecendo a realidade como uma forma de ilusão, e a ilusão como uma forma
de realidade». E é também na referência à infância perdida, à sua por vezes
inaptidão para brincar, que revela a miséria da sua existência: «Afinal
quem sou eu quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das
Sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus
da Tristeza e comer o pão dado pela Fantasia.» (L. do D. p.123); «Deus
criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a
Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio,
amarrotado com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas?»(L.
do D. p. 371). Pois a visão do mundo como brincadeira que restaura a infância
constata simultaneamente a impossibilidade de dela se reapoderar completamente;
o humor do homem é diferente do riso inocente da criança, contendo em si o
«sinal de uma grandeza infinita e de uma miséria infinita» (Baudelaire).
Miséria infinita de um mundo sem crença em Deus nem na Humanidade, e a grandeza
infinita do espaço de liberdade que essa ausência inaugura, no qual «Os Deuses são
uma função do estilo.» ( L. do D. po.122)
Esta ambivalência pontua em permanência o discurso de
Soares: desde o seu próprio programa estético enunciado na ideia paradoxal de
“confissões fingidas”, às imagens muito concretas e triviais da
meada multicolor e das figurinhas de cordel para sugerir a ideia de identidade
múltipla e de despersonalização. Neste discurso apercebemo-nos que Bernardo
Soares se encena a si próprio na escrita do desassossego, funcionando como
seu primeiro espectador e leitor, ou vendo-se escrever reflectido num espelho −
«espectador irónico de mim mesmo» (L. do D. p. 205). Torna-se assim uma
personagem da sua obra, um tipo de habitante do mundo moderno, desprovido
de heroísmo, urbano, solitário, quotidiano, que trabalha e vive na mesma rua da
Baixa, que se assiste a si próprio, melancólico no seu quarto a escrever uma
espécie de diário íntimo onde ultrapassa toda essa banalidade da vida através
do sonho e da escrita. Esta perspectiva vertiginosa revela não só o intervalo,
tão presente nas criaturas pessoanas, entre o ideal de vida e estético a que
aspiram e o que realmente são, mas também, a evidência da enunciação de um
discurso distanciado, que permite tecer relações múltiplas com a realidade e
com a verdade, que compreende portanto o humor, sobretudo, e no caso de
Bernardo Soares, na sua forma de ironia: «A ironia é o primeiro indício de
que a consciência se tornou consciente.» (
L do D, p. 171.)
Daqui podemos reter duas ideias: que a encenação, a
ironia, a brincadeira, pressupõe a existência de um “público” com o qual se
estabelece uma «cumplicidade com outros que riem, reais ou imaginários»
(Bergson); neste sentido o Livro do Desassossego parece desenrolar-se
sobre um diálogo cúmplice com os outros heterónimos, com o «nós - o moço de
fretes da esquina, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o barbeiro das
anedotas, o mestre-escola John Milton, o marçano da tenda, o vadio Dante
Alighieri,» (L do D, p. 274.) no gozo estético de «Viver é ser outro» (
L do D, p. 129. ).
A outra ideia é que é nessa distância da consciência
consciente de si própria, na constante análise das sensações, na indiferença e
falta de empatia que o torna alheio ou estranho à vida (ideia
presente em expressões como “a secura humana do meu coração”, “o desdobramento
da consciência”, “pudor de existir”, “a minha dissidência da vida”),
finalmente, na oposição entre pensar e viver, que se desenvolve o sentido
humor específico de BS. Deste modo, o processo operado pelo nosso
personagem parece corresponder exactamente ao que descreve Bergson no seu livro
sobre o riso: «Despersonalizai-vos agora e presenciai a vida como espectador
indiferente: quantos dramas passarão a comédia!»
Analisemos duas passagens nas quais se opera ou onde se
constata esta inversão ou confusão:
«Vi ali grandes movimentos de ternura, que me pareceram
revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimentos não
duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz − quantas vezes
o notei com a sagacidade dos silenciosos − na analogia de qualquer coisa com o
piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no
vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relação sistematizada entre os
humanitarismos e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que
sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.» (L.do D., p.275).
Mais uma vez, o nosso irónico observador e analisador da
vida transforma a profundidade ou a gravidade no seu contrário, referindo-se à
empatia, aquilo que nos torna humanos e sensíveis ao sofrimento ou alegria de
outro − precisamente sensíveis ao trágico da vida. No que deveria ser um
movimento da alma, a expressão de afecto entre pessoas, Soares vê antes
movimento banal do corpo, seguindo o decurso habitual das conversas e dos copos
bebidos. Assim, não é a “alma infinitamente maleável” (Bergson) que anima o
corpo, mas apenas este dita os sentimentos exprimidos, numa espécie de vida
de inconsciência ou de superficialidade, na qual o corpo age sob o efeito de
circunstâncias exteriores dando a impressão da existência de vida interior: é
apenas enquanto são proferidas as palavras que o dizem, que o sentimento
existe, rapidamente trocado por outro, por outras palavras mais novas; do mesmo
modo, a expressão tão enfática dos humanitarismos é directamente proporcional à
quantidade do vinho e da aguardente de bagaço ingerida. Além da imagem
cómica da cena bastante comum e quase mecânica do crescendo dos afectos com o
calor do discurso e do álcool, os efeitos de humor deste texto advêm do estilo
obtido através da sobreposição dos termos mais discrepantes, num discurso em
que se processa também uma certa confusão entre vida e a literatura (pois é ela
que permite adoptar o ponto de vista da distância, da brincadeira, do humor): a
metafísica dos humanitarismos numa relação matemática com a física da
aguardente de bagaço; os grandes gestos supérfluos que sofrem os efeitos do
copo e do “pleonasmo da sede”. BS comprova com gozo a sua teoria do
fingimento, da insinceridade, do teatro da vida. A inconsciência na qual vive a
generalidade das pessoas dissolve a consciência trágica.
A segunda passagem que merece um comentário, ainda que
breve:
«Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo,
por um bilhete para Rua dos Douradores.» ( L
do D, p. 64.).
Na
primeira parte da frase reconhecemos o homem banal que sonha com o poder que
não tem, imaginando o que faria se pudesse dispor de todas as opções possíveis
de vida; logo a seguir inverte o que disse, tomando o poder de pensar que, se
tivesse tudo ao seu alcance, escolheria (e atenção ao “estou certo” da frase)
aquilo que já tem, a sua vida na Rua dos Douradores, a prosa do seu quotidiano.
Nesta frase revela-se novamente a ambivalência de Soares, simultaneamente
soberano e impotente: pode sonhar com “ter o mundo na mão”, mas esse sonho é
inútil pois reconhece que não pode sair da sua condição material de mero
sonhador na rua dos Douradores. Há algo de fatal ou de trágico e de
contentamento nesta curta frase: afinal “também há universo na Rua dos
Douradores” e nela se “pode pensar no infinito. Um infinito com armazéns em
baixo, é certo, mas com estrelas ao fim…”
Para
terminar:
A reversibilidade entre a seriedade e a brincadeira,
entre a arte a vida e o jogo / a brincadeira, entre o peso e a leveza, o banal
do quotidiano e a grandeza do sonho, não só perturba e altera os significados
das palavras criando um estilo, como origina uma indistinção entre verdade e
mentira, entre a ficção e a realidade. Voltamos ao ponto onde começámos: a
brincadeira, a renúncia à gravidade de que tudo se poderia revestir, é uma
questão séria pois, tal como nos diz Bernardo Soares em vários trechos deste
Livro, funciona também como uma forma de sabedoria perante a vida:
«Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na
vida do universo, mas na da nossa mesma alma, é o princípio da sabedoria.
Considerar isto em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira.» ( L do D, p. 384). A faculdade de
recuperar uma certa sensação da infância é também a capacidade do indivíduo de
inventar, a partir de si próprio o mundo no qual vive: representa a vitória da
imaginação e da liberdade, portanto da arte.»
Joana Cameira Gomes
Sem ter
assistido ao Colóquio da Gulbenkian, parece-me de muito interesse
todo este Projecto organizado em torno de um “génio” de
mistificação e inteligência superiores, que tem atrás de si estudos e escritos
que lhe firmaram esse génio da sua criatividade múltipla, tal o “bateau ivre”
de Rimbaud lançado nas fortes ondas da sua poderosa fantasia mistificatória,
tal o Dorian Gray de Wilde, no seu próprio desdobramento retrato/eu por não
aceitação do precário existencial, tal um Fausto na ânsia do saber
infinito, tal em suma, Shakespeare ou Camões, génios de múltiplas
facetas – de muitos demónios – que já Édipo queria entender, e cuja
aventura genial o próprio slogan socratiano “conhece-te a ti mesmo”
parece dignificar na sua extraordinária dimensão; que Fernando Pessoa
resume no seu “Emissário de um rei desconhecido, / Eu cumpro informes
instruções de além…” e o
próprio Garrett, na sua “Advertência” a “Folhas Caídas”,
e em referência a esse “Ignoto Deo” da sua musa, apela, orgulhosamente,
à “gente do mundo”, oca e materialista: “Deixai-o passar,
porque ele vai onde vós não ides; vai, ainda que zombeis dele, que o calunieis,
que o assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois matéria.”
Foi do “Préface” de René Char a
“Arthur Rimbaud - «Poésies. Une
Saison en Enfer. Illuminations» - (Édition établie et annotée par Louis Forestier, Collection
Folio Classique) da
Gallimard, que extraí a frase do título «Je est un autre», que não só separa o génio da pessoa física
e moral e mortal a que ele pertenceu, como justifica os fenómenos de desdobramento
do eu - em Pessoa, em virtude do próprio significado do seu nome,
derivado do latim “persona” significando “máscara”, mais
acentuados ainda do que em todos os outros, por fenómenos de histeria, de
esoterismo, de ironia, de “diabrura” brincalhona (no rasto da tese de Joanna
Gomes):
«Rimbaud le Poète, cela suffit, cela est infini. Le
bien décisif et à jamais inconnu de la poésie, croyons-nous, est son
invulnérabilité», escreve René Char. «Celle-ci est si
accomplie, si forte, que le poète, homme du quotidien, est le bénéficiaire
après coup de cette qualité dont il n’a été que le porteur irresponsable».
Lugar pois,
aos génios, lugar a Fernando Pessoa, no «je», nos “autres”, todos
eles, afinal, na posição de “poeta fingidor” do discurso de paradoxo
de Pessoa - Poeta invulnerável. Imortal. Divino.
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