Nunca me adaptei ao status que
em Coimbra impunha o uso da capa preta sobre o tailleur preto das raparigas, ou
sobre a batina dos rapazes, já por indiferença pelo trajar, já por ser
rebarbativa a uma convenção que distinguia as formações superiores pelo aparato
do vestuário implicativo de distinção interpelativa irrisória entre o doutor e
o leigo, já por achar que uma capa seria um estorvo a transportar. Aceitava,
todavia, de boamente e até com a ternura admirativa das populações
provincianas, o espectáculo de uma Coimbra trajada de festiva capa sombria,
que, aliás, também eu própria usava para as fotografias. Emprestada.
Como pessoa pouco propensa a
alienações, passei por Coimbra sentindo-lhe o encanto que eu própria fui
construindo para mim, nas amizades, na admiração pelas suas belezas naturais e
de fabricação humana, no mundo de liberdade de algumas opções de estudo
inusitadas – como o hebraico – e sobretudo nas bibliotecas, especialmente a do
Instituto Francês da Faculdade de Letras, a par da formação que aí fui
adquirindo. As praxes passaram-me ao lado, naturalmente discordando delas,
porque sempre as vi como formas de humilhação inútil e idiota, embora as veja
definidas hoje, nos meios mediáticos, pelos saudosistas, como escola de
solidariedade para adaptação a uma nova forma de vivência para os iniciados,
longe das suas famílias, os pobrezinhos.
O artigo do
advogado Domingos Lopes, saído no Público em 9/3, «Que fazer a esta praxe?», revela bem a preocupação por um
fenómeno social, que tendo ultrapassado as fronteiras da velha cidade das
tricanas, alastrou por outras onde as universidades foram surgindo, na onda de
uma prosperidade de empréstimo, mas duma forma tão pouco comedida de violência e
libertinagem que acabou descambando em sevícias do foro criminal. É assustador,
e Domingo Lopes revela a sua preocupação, a par de uma análise bem
expressiva do fenómeno nacional, que a nossa saloiice democrática não se atreve
a dissolver, na mesma linha de inferioridade
que não se dispõe a lançar um Acordo Ortográfico às urtigas:
«Não deixa de ser curioso
constatar que a cidade onde a praxe nasceu e se desenvolveu, Coimbra, à sombra
da vetusta Universidade, tenha sido a cidade a dar-lhe uma machadada tão grande
que a fez desaparecer em 1969 com o desencadear da crise académica que levou os
estudantes a fazerem greve às aulas e aos exames. Ironia das ironias: foi já no
período da revolução de Abril que a praxe ressuscitou em Coimbra.
Nos anos sessenta o Conselho das
Republicas utilizava a praxe para se movimentar melhor na luta por eleições
livres na AAC e pelos direitos essenciais que a ditadura negava, reprimindo-os.
Diga-se para mostrar as
contradições dos tempos que os estudantes e os dirigentes estudantis de Lisboa,
com um certo preconceito, não encaravam bem o uso da capa e batina pelos
colegas de Coimbra, sobretudo em reuniões do movimento associativo. Olhavam a
capa e a batina como símbolo de um certo provincianismo.
Porém, quer no processo eleitoral
para AAC em 1968, dominada pela Comissão Administrativa imposta pelo governo,
quer na crise de 1969 a capa valia como um símbolo de união contra a ditadura.
Quem não se lembra das capas e batinas na final da Taça de Portugal entre a
Académica e o Benfica?
A vida, porém, prega partidas
mesmo aos mais afoitos nos fenómenos de perscrutar o futuro.
Por Lisboa entre as nossas ruas e
avenidas há uns anos bons que todos começámos a dar conta da existência de um
movimento de capas e batinas que crescia como cogumelos.
E à medida que crescia víamo-lo
arregimentado estudantes, caloiros, em atitudes e comportamentos absolutamente
degradantes.
Junto aos semáforos, em torno da
cidade Universitária os “veterano” e os que não eram caloiros como que tinham
adquirido um “direito de punição” sobre os caloiros que constituía uma afronta
grosseira aos direitos de qualquer cidadão,
Esta praxe renascida com uma
viragem civilizacional para o individualismo e a feroz concorrência mundial é
uma amostra da alienação tarada que varre hoje uma parte da juventude, em que a
praxe se confunde com violência extrema.
A praxe ressuscitou em Coimbra e
noutras cidades sob a forma de uma cópia grosseira do passado com maiores ou
menores abencerragens.
Pode hoje dizer-se perante o
sucedido no Meco que a Academia de Lisboa e os estudantes são falados sobretudo
devido a essas mortes que a todos chocaram.
Que ouvimos sobre a Reforma do
Ensino? Nada! Que ouvimos sobre a emigração da juventude, incluindo a
licenciada? Nada! Que ouvimos sobre atividades culturais? Nada! Que ouvimos
sobre os destinos dos pais? Nada!
Circulam vídeos com rituais de
praxe que são, para além de violência gratuita, absolutamente estupidificantes,
sem o menor sinal de uma identidade de liberdade e responsabilidade juvenil.
Um certo provincianismo Coimbrão,
tão a gosto dos Cerejeiras, Bissaias Barretos e Salazar, deu origem a uma
encarnação de capas e batinas daquela cidade do centro para a capital do país.
Os sinais desta praxe de
violências são múltiplos. Uns mais violentos que outros.
Mas todos eles assentam na
humilhação brutal por parte de uns tantos sobre os res nulius, os caloiros, que
são de quem os apanhar, como era a caça depois da Revolução francesa.
Claro que os que hoje são
humilhados muito provavelmente amanhã humilharão.
O Código Penal bastaria se não
houvesse o pavor de enfrentar o poder académico de que está por detrás da praxe
e que é uma verdadeira alienação.
O que os diversos responsáveis
têm de fazer é criar todas as condições para que os estudantes do primeiro ano,
os caloiros, possam ser livres e rejeitar o que quiserem rejeitar sem medo de
represálias.
Alguém disponível para violentar
alguém é sempre um ser humano que contém dentro de si um lado monstruoso. Esse
lado da praxe pode levar ao seu fim.»
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