sábado, 8 de março de 2014

Così fan tutti



Um artigo de João César das Neves saído no blog “A Bem da Nação” sobre a nem sempre irrelevante, porque intencionalmente desestabilizadora, discussão de temas trazidos à ribalta do nosso teatro habitual de fantoches, com que vamos entretendo a pretensa ingenuidade dos pacientes, para esconder o que não importa, por enquanto, saber, de tragédias sobre o destino de um povo falsamente erguido a um posicionamento construído sobre alicerces de lata que a desvergonha geral aceitou como merecido, cuidando-os de bronze eterno.
E assim se caçam gambozinos, ou se discute o sexo dos anjos, no adiamento contínuo, o Governo crente nos sintomas positivos das suas políticas de aperto, a Oposição sempre céptica a esse respeito, engalfinhando-se nas mútuas contestações de in/verdades, ou tentando erguer contínuas propostas irrealistas ou provocatórias do bom senso, para fingir que se faz ou fez ou se expor a chufas desordeiras, os que contestam julgando que as más criações lhes dão maior projecção na simpatia daqueles que cavilosamente defendem, para, na realidade, se outorgarem o direito de disparar dichotes, generalizando o papel do vale tudo, sem regras, tristes exemplos sociais, antipedagógicos, naturalmente.
O certo é que muitos dos gambozinos se fixaram entre nós, que assim vamos caçando e vivendo, de fantasia a mascarar torpezas reais. Não são, pois, inocentes nem inócuas as tais caçadas.

O texto de João César das Neves:

Gambozinos
Gambozinos são animais nocturnos, ariscos e fictícios, caçados em grupo nos bosques portugueses. Já há séculos que esta estimada actividade tem lugar de destaque na vida pública, onde o debate político-jornalístico anda cheio dessas caçadas.

Existem três tipos destes animais. Primeiro, nos temas razoáveis, duas variantes, as propostas ridículas e as ideias válidas mas pontualmente irrealistas. Depois os assuntos abstrusos. Alguns exemplos mostram a variedade e vastidão.

Uma das batidas mais recorrentes é a saída do euro. A tese é defensável em termos ideológicos, como a união ibérica, ditadura do proletariado, monarquia absolutista ou saída da União Europeia. Mas, por muito sustentáveis que sejam tais ideias e respeitáveis os seus proponentes, elas são realmente alheias ao conturbado panorama actual.

De facto isso constitui uma opção artificial, pois não existem forças económicas significativas - empresas, sindicatos ou movimentos sociais - que realmente defendam tal proposta. Os únicos potenciais beneficiários seriam os exportadores, se sobrevivessem à tempestade financeira inicial. Mas esse duvidoso benefício seria pesadamente pago por trabalhadores, consumidores e restante economia, suportando uma moeda instável e degradada, com incerteza de rendimentos e preços. Portanto esta opção é irreal na economia portuguesa, sendo alimentada apenas pela ânsia de vender papel. Insistir, para mais nas presentes dificuldades, é só caçar gambozinos.

Também a premência política na imediata subida do salário mínimo cai momentaneamente na mesma categoria. Governo e sindicatos falam muito do tema, apesar de ele lhes ser realmente alheio. O Estado não paga salários mínimos e os trabalhadores sindicalizados não os recebem, pois com tais montantes não se podem pagar quotas sindicais. De onde vem então esta ânsia? Dado o desemprego altíssimo, endividamento das empresas muito combalidas e descida generalizada de todos os salários, qualquer análise serena só pode concluir que subir agora custos de trabalho é suicida. Para mais quando os estudos do salário mínimo mostram que quem sofre a inevitável perda de empregos serão sempre os mais pobres e desfavorecidos. Só pode ser um gambozino.

A questão da co-adopção por homossexuais é outro caso evidente. Em Maio de 2010, com o País a cair numa das mais terríveis crises da história, o Parlamento arranjou tempo para aprovar a lei do casamento de pessoas do mesmo sexo, assim alterando em minutos o multissecular conceito natural de matrimónio. A sequência revelou a relevância da iniciativa: nos três primeiros anos foi realizado um total de 914 uniões, 0,8% dos casamentos do período. Seria mesmo uma necessidade relevante?

Agora, no meio dos escombros da recessão, à falta de novos gambozinos os parlamentares tiveram de voltar ao mesmo tema para se manterem ocupados. Desta vez discutem a co-adopção e adopção por casais do mesmo sexo, que na lei anterior tinham prometido não permitir. Não devem existir problemas mais prementes, pois decidiram acrescentar uma sumarenta confusão política, jurídica e constitucional à volta do diploma e eventual referendo. No meio dos dramas nacionais, os deputados sentem-se livres para caçar gambozinos.

A única conclusão é que Portugal gosta mesmo destas caçadas. Os exemplos são miríade, da regionalização ao TGV e novo aeroporto, passando por velhos favoritos, como o neoliberalismo, desígnio nacional e, acima de tudo, a sempre clássica reforma do Estado. A função típica deles, como nas tradicionais brincadeiras nocturnas, é ocupar espaço, simular iniciativa, criar diversão. Com a cerimónia e dignidade das verdadeiras campanhas, a sua vacuidade priva-as de efeitos reais.
Embora pareçam inocentes, por vezes há perigo. Em especial numa crise, estes truques ganham motivações inconfessáveis. Hoje as caças a gambozinos são uma peça central da enorme cortina de fumo e desinformação que oculta privilégios e a sua resistência à reforma. Nada como causas fictícias para garantir que nada muda. João César das Neves 2014.03.03

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