Um artigo de João César das Neves saído no blog
“A Bem da Nação” sobre a nem sempre irrelevante, porque intencionalmente desestabilizadora,
discussão de temas trazidos à ribalta do nosso teatro habitual de fantoches,
com que vamos entretendo a pretensa ingenuidade dos pacientes, para esconder o
que não importa, por enquanto, saber, de tragédias sobre o destino de um povo falsamente
erguido a um posicionamento construído sobre alicerces de lata que a desvergonha
geral aceitou como merecido, cuidando-os de bronze eterno.
E assim se caçam gambozinos, ou se discute o sexo dos
anjos, no adiamento contínuo, o Governo crente nos sintomas positivos das suas
políticas de aperto, a Oposição sempre céptica a esse respeito,
engalfinhando-se nas mútuas contestações de in/verdades, ou tentando erguer
contínuas propostas irrealistas ou provocatórias do bom senso, para fingir que se
faz ou fez ou se expor a chufas desordeiras, os que contestam julgando que as
más criações lhes dão maior projecção na simpatia daqueles que cavilosamente
defendem, para, na realidade, se outorgarem o direito de disparar dichotes,
generalizando o papel do vale tudo, sem regras, tristes exemplos sociais,
antipedagógicos, naturalmente.
O certo é que muitos dos gambozinos se fixaram entre
nós, que assim vamos caçando e vivendo, de fantasia a mascarar torpezas reais.
Não são, pois, inocentes nem inócuas as tais caçadas.
O texto de João César das Neves:
Gambozinos
Gambozinos são animais nocturnos, ariscos e fictícios,
caçados em grupo nos bosques portugueses. Já há séculos que esta estimada
actividade tem lugar de destaque na vida pública, onde o debate
político-jornalístico anda cheio dessas caçadas.
Existem três tipos destes animais. Primeiro, nos temas
razoáveis, duas variantes, as propostas ridículas e as ideias válidas mas
pontualmente irrealistas. Depois os assuntos abstrusos. Alguns exemplos mostram
a variedade e vastidão.
Uma das batidas mais recorrentes é a saída do euro. A
tese é defensável em termos ideológicos, como a união ibérica, ditadura do
proletariado, monarquia absolutista ou saída da União Europeia. Mas, por muito
sustentáveis que sejam tais ideias e respeitáveis os seus proponentes, elas são
realmente alheias ao conturbado panorama actual.
De facto isso constitui uma opção artificial, pois não
existem forças económicas significativas - empresas, sindicatos ou movimentos
sociais - que realmente defendam tal proposta. Os únicos potenciais beneficiários
seriam os exportadores, se sobrevivessem à tempestade financeira inicial. Mas
esse duvidoso benefício seria pesadamente pago por trabalhadores, consumidores
e restante economia, suportando uma moeda instável e degradada, com incerteza
de rendimentos e preços. Portanto esta opção é irreal na economia portuguesa,
sendo alimentada apenas pela ânsia de vender papel. Insistir, para mais nas
presentes dificuldades, é só caçar gambozinos.
Também a premência política na imediata subida do
salário mínimo cai momentaneamente na mesma categoria. Governo e sindicatos
falam muito do tema, apesar de ele lhes ser realmente alheio. O Estado não paga
salários mínimos e os trabalhadores sindicalizados não os recebem, pois com
tais montantes não se podem pagar quotas sindicais. De onde vem então esta
ânsia? Dado o desemprego altíssimo, endividamento das empresas muito combalidas
e descida generalizada de todos os salários, qualquer análise serena só pode
concluir que subir agora custos de trabalho é suicida. Para mais quando os
estudos do salário mínimo mostram que quem sofre a inevitável perda de empregos
serão sempre os mais pobres e desfavorecidos. Só pode ser um gambozino.
A questão da co-adopção por homossexuais é outro caso
evidente. Em Maio de 2010, com o País a cair numa das mais terríveis crises da
história, o Parlamento arranjou tempo para aprovar a lei do casamento de
pessoas do mesmo sexo, assim alterando em minutos o multissecular conceito
natural de matrimónio. A sequência revelou a relevância da iniciativa: nos três
primeiros anos foi realizado um total de 914 uniões, 0,8% dos casamentos do
período. Seria mesmo uma necessidade relevante?
Agora, no meio dos escombros da recessão, à falta de
novos gambozinos os parlamentares tiveram de voltar ao mesmo tema para se
manterem ocupados. Desta vez discutem a co-adopção e adopção por casais do
mesmo sexo, que na lei anterior tinham prometido não permitir. Não devem
existir problemas mais prementes, pois decidiram acrescentar uma sumarenta
confusão política, jurídica e constitucional à volta do diploma e eventual
referendo. No meio dos dramas nacionais, os deputados sentem-se livres para
caçar gambozinos.
A única conclusão é que Portugal gosta mesmo destas
caçadas. Os exemplos são miríade, da regionalização ao TGV e novo aeroporto,
passando por velhos favoritos, como o neoliberalismo, desígnio nacional e,
acima de tudo, a sempre clássica reforma do Estado. A função típica deles, como
nas tradicionais brincadeiras nocturnas, é ocupar espaço, simular iniciativa,
criar diversão. Com a cerimónia e dignidade das verdadeiras campanhas, a sua
vacuidade priva-as de efeitos reais.
Embora pareçam inocentes, por vezes há perigo. Em
especial numa crise, estes truques ganham motivações inconfessáveis. Hoje as
caças a gambozinos são uma peça central da enorme cortina de fumo e
desinformação que oculta privilégios e a sua resistência à reforma. Nada como
causas fictícias para garantir que nada muda. João César das Neves 2014.03.03
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