Ouvi muitas vezes o meu pai dizer, o que costumo repetir também – fruto
talvez de leituras, de observações, dos nadas de que se compõe a vida – que as
ideologias são sempre criações de nobre preocupação do ideólogo, tendentes a aplanar
as discrepâncias sociais entre os direitos das diferentes classes. Surge o
desgaste, seguidamente, pelo uso imoderado dos conceitos reivindicativos em
favor próprio, pelos beneficiários desses conceitos, que podem abranger os seus
próprios criadores ou difusores. Deu-se com o liberalismo da Revolução
Francesa, nos seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade que
descambaram no Terror. Na República de Platão apenas as elites pensantes – os
cidadãos - estavam abrangidos pelos nobres conceitos de Justiça e de Belo,
trabalhadores e escravos não tinham acesso a tais dialécticas, provedores que
eram do sustento e das comodidades das elites, de pensamento generoso
unilateral. O conceito de propriedade, a exploração do trabalho pelo capital,
geraram as filosofias revolucionárias socialistas e marxistas do século XIX e
XX, a que se acrescentaram também tendências anarquistas, contrárias à disciplina
autoritária do poder.
Hoje, no nosso país, não nos podemos afastar do conceito de democracia,
governo do povo, pelo povo e para o povo, e o povo habituou-se a reivindicar e
a gritar os seus direitos, manipulado pelos seus orientadores na reivindicação,
ainda que balbuciante, do ponto de vista ideológico. E o povo convence-se do
seu poder, porque faz barulho e invade as escadas da assembleia e insulta, indiferente
aos dados da razão e do pudor. Os que governam sabem dos condicionalismos e vão
tentando coser os rasgões criados pelos revolucionários defensores das
igualdades, que não deixaram de se deslumbrar com os poderes que lhes couberam,
mergulhando avidamente no celeiro da abastança anterior, em proveito próprio,
primeiro, mas com palmadas amigáveis no dorso dos da vila morena.
Isto será por cá. Noutros países mais disciplinados a democracia está
arreigada há mais tempo – nos hábitos e nas instituições. É um termo bonito,
democracia, desde que haja sentido de responsabilidade em cada consciência. Mas
as responsabilidades divergem e as consciências também. E os que defendem os princípios
gostariam de saborear igualmente o sustentável (?) peso dos poderes. Como o não
conseguem - o comunismo tendo um carisma de apropriação de propriedade e de
autoritarismo que não quadra à nossa maioria - lá vão desgastando o sistema que
os outros impõem por necessidade de compromissos, mas fingindo – ou não – que
os escutam, porque também são democratas.
Mas falta-nos petróleo, como tinha Chávez, o que lhe dava muita força
expressiva. Falhou com a sua morte, e o texto de Alexandre Homem Cristo - «A
TRAGÉDIA DO SOCIALISMO DO SÉCULO XXI» -
mostra os porquês do falhanço, considerando que “em
Portugal e na Europa, o fracasso da "revolução bolivariana" na
Venezuela é uma boa forma de recordar que o socialismo utópico do século XXI é tão
nefasto para as populações quanto o do século XX.
Mas o que faz falhar, quanto a mim, é a erosão, o desgaste, o tempo que
se escoa, e o não podermos fazer como a “minuciosa formiga que leva a sua palhinha
azinha, azinha”, porque as palhinhas já foram levadas há muito pelos
encarregados de as distribuir e de as fazer multiplicar.
Cigarras de preferência, o que nos “deita a perder”, quando o
inverno chegou fomos pedir à formiga, que emprestou reclamando. Precisamos de nos
converter em “minuciosas formigas”, de preferência a deixar-nos
embalar pelo canto das sereias. Ou das cigarras preguiçosas.
O artigo de Alexandre
Homem Cristo, publicado no “A Bem
da Nação”:
«A TRAGÉDIA DO SOCIALISMO
DO SÉCULO XXI»
O fracasso
da "revolução bolivariana" é uma boa forma de recordar que o
socialismo utópico do século XXI é tão nefasto quanto o do século XX
O regime nascido da
revolução bolivariana faliu. Algum dia tinha de acontecer. Até porque, como se
costuma dizer, a história é repetição. Na Venezuela repetiu-se mesmo. Assim, o
ano de 2014 marca o fim das ilusões. As dos venezuelanos, que durante mais de
uma década se deixaram governar pelo populismo de Chávez. E as dos socialistas
europeus, que viram no regime venezuelano um oásis de resistência contra a
economia de mercado. Com fome nas ruas, com escassez de bens de primeira
necessidade nas mercearias, com falta de medicamentos e com falhas sucessivas
na rede eléctrica, o povo saiu à rua. E disse basta.
Associar a falência do regime
venezuelano à substituição de Hugo Chávez por Nicolás Maduro, nomeadamente pela
falta de carisma do segundo, é um erro grave. Subestima a degradação social e
política dos últimos anos. É que, embora tenha morrido com o estatuto de herói
popular, foi Chávez quem trilhou o caminho para a ruína. Atropelou as regras
institucionais do regime, tornando-o dependente na sua pessoa. Estrangulou a
iniciativa privada. E apostou cegamente num modelo de investimento público
insustentável, suspenso numa produção petrolífera em declínio. Quando chegou a
sua vez, Maduro deu continuidade ao delírio. E fê-lo com uma obstinação
invejável.
Mal assumiu a presidência,
em substituição de Chávez, Maduro ordenou ao banco central a impressão de mais
dinheiro, para com ele financiar novos programas de investimento público. Entre
outros, o da atribuição de um tablet a cada aluno venezuelano. A inflação
atingiu os 56%.
Entretanto, acabou com a
liberdade política, impondo uma forma de ditadura (suspensão da Constituição):
o parlamento concedeu-lhe poderes executivos especiais para alterar leis sem
fiscalização política. Acabou com a (pouca) liberdade económica: promulgou uma
lei que define os preços dos produtos e limita o lucro das empresas, prendendo
os comerciantes que resistissem. E acabou com a liberdade individual, através
de uma crescente repressão policial e militar, que provocou dezenas de mortes,
para assim travar aqueles que "querem destruir a nação".
É claro que, perante este
descalabro político e social na Venezuela, podemos fechar os olhos. Ou
acreditar que a resistência nas ruas não é de origem popular, mas sim de
"grupos de cariz neofascista". Ou achar que essas manifestações são
operações "apoiadas pelo imperialismo norte-americano". Ou ainda
alegar que o governo venezuelano está a ser alvo de uma "guerra económica
que visa destabilizar o país". No fundo, podemos subscrever o incrível
comunicado do PCP (14/02/2014) e, através dele, negar a realidade. Mas a
realidade é o que é. E a história, que se repete, já mostrou que negá-la não a
altera.
A distante Venezuela está a
ferro e fogo. E isso interessa-nos a nós, portugueses? Sim, interessa. Num
momento em que tanto se discutem alternativas políticas, em Portugal e na
Europa, o fracasso da "revolução bolivariana" na Venezuela é uma
boa forma de recordar que o socialismo utópico do século XXI é tão nefasto para
as populações quanto o do século XX.
Confiar que é nessa doutrina
ideológica, partilhada em Portugal por PCP e BE, que está o futuro não é,
portanto, mais do que condenar-nos ao passado.»
3 de Março de 2014 Alexandre Homem Cristo
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