quarta-feira, 12 de março de 2014

A relatividade e o fascínio



Diz-se que quem conta um conto lhe acrescenta um ponto, por isso os responsáveis pela tecnologia, a cada ponto acrescentado dos respectivos contos – as suas invenções – acrescentam-lhe o empolamento e o custo, que os seres das aparências, sempre insatisfeitos, logo adquirem para mostrarem ao vizinho. E assim surge o consumismo e o encarecimento contínuo dos produtos, por conta dos aproveitadores da nossa parolice basbaque, que nos leva a preferir o que é detectável aos sentidos, à procura, em esferas mais formativas, do real sentido dos valores criados – na sua contingência os físicos, na sua intemporalidade os espirituais. E é por isso que os museus estão cheios de artefactos – canhestros para as civilizações seguintes - enquanto os pensamentos dos génios, nos seus escritos, músicas ou pinturas perduram, nas nossas casas, para uso pessoal, insubstituíveis e eternos.
Mas também é certo que essas invenções perecíveis nos permitem ir vivendo cada vez com mais facilidade e conforto, favorecedoras da nossa preguiça e comodismo, embora sejam paralelamente dados relativos, pois cada invenção projecta o homem para novos trabalhos, galgando espaços e tempos, em paranóia ascensional arrepiante, de consequências imprevisíveis.
É este um comentário ao artigo de João César Monteiro, publicado no “A Bem da Nação”,

«FASCÍNIO TECNOLÓGICO»:

«A nossa era tem um amor apaixonado pela tecnologia. Andamos mesmo cativados com aquilo que as nossas máquinas conseguem fazer. A cada passo vemos alguém embevecido mostrando feitos do seu telefone ou computador, como se tivesse mérito nisso. São indiscutíveis os avanços e benefícios da informática e comunicação nos últimos tempos, mas a atitude de benevolência babada que daí resulta pode ter efeitos negativos, colocando os instrumentos acima das finalidades.

Dada a alucinante evolução, aquilo que hoje nos maravilha será muito em breve irremediavelmente obsoleto e ridículo. É muito difícil compreender a admiração dos nossos pais pelas calculadoras a cartões ou cassetes ronceiras. Por isso deveríamos relativizar a última moda tecnológica, que para mais só vigorará meses até à próxima. Afinal os nossos aparelhos, tão novos, são ainda realmente primitivos.

O facto é tão evidente que as próprias empresas manifestam despudoradamente a sua má qualidade. Agora, ao ligar um computador, é habitual ser importunado com a solicitação de actualizações de programas. Em qualquer outro electrodoméstico um incómodo destes seria intolerável, praguejando-se contra o fabricante defeituoso. Mas na informática esta evidente admissão de falha é considerada sinal de progresso e suportada com bonomia. Como diz o povo, "mais vale cair em graça que ser engraçado".

Pior, isso em geral implica a espera de longos minutos até descarregar o programa (download no jargão), seguido de instalação e encerramento da máquina para "reinicializar". Em certos casos, numa arrogância inacreditável, o próprio computador parece tomar a decisão de se autodesligar e religar, como se ele, e não o utilizador, fosse a finalidade última. A operação do dono que espere, enquanto o mestre mecânico faz a toilette.

A coisa é ainda mais insólita porquanto, em geral, acaba por não se conseguir detectar quais foram, afinal, os benefícios das recorrentes e impostas actualizações. Para a esmagadora maioria dos utilizadores, que apenas pretende escrever, calcular ou comunicar, esses caprichos técnicos só complicam e atrasam. Assim, o computador hoje é mais avançado e poderoso que nunca, mas realmente mais lento.

O fascínio pela tecnologia manifesta-se em múltiplas outras áreas. Recentemente os transportes públicos lisboetas acrescentaram um dispositivo às suas estações, indicando o tempo até ao próximo veículo. Nos autocarros da Carris, se a informação for correta, é relevante pois, existindo várias carreiras em cada paragem, permite decisões fundamentadas.

Nos comboios do Metropolitano, porém, como não há escolha, saber o tempo de espera é mero conforto ocioso. A não ser que a informação fosse apresentada nas portas de superfície da estação, o que permitiria acelerar ou acalmar o passo. É espantoso como o deslumbramento tecnológico traz a empresa orgulhosa da proeza, sem notar que colocou o visor no único local onde é irrelevante, o cais.

Um dos sinais mais divertidos deste enlevo pela tecnologia é ver os velhos meios de comunicação social -jornais, rádio e televisão - falar das redes sociais. Hoje essas entidades virtuais ganharam estatuto de oráculo infalível. A ideia é ridícula porque, se esses instrumentos fossem aquilo que se alega, não seria possível nem necessário informar do que pensam. Não seria possível porque, reflectindo realmente as ideias de milhões, ninguém resumiria tal complexidade em poucas linhas. Não seria necessário pois, alegadamente universais, tornariam a imprensa redundante.

Esta invocação das redes sociais é apenas a renovação do velho mito da "opinião pública", que há séculos jornalistas e comentadores usam para mascarar os seus próprios palpites. Só que hoje a mística tecnológica acrescenta-lhe uma certeza infalível. O que as redes sociais dizem (depreendido pelo repórter de um punhado de consultas) é indiscutível e soberano.

A paixão é sempre ridícula. Por isso o futuro rirá com surpresa do nosso encantamento ingénuo pela nossa tecnologia ainda tão rudimentar.»

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