Diz-se que quem conta um conto lhe acrescenta um ponto, por
isso os responsáveis pela tecnologia, a cada ponto acrescentado dos respectivos
contos – as suas invenções – acrescentam-lhe o empolamento e o custo, que os
seres das aparências, sempre insatisfeitos, logo adquirem para mostrarem ao
vizinho. E assim surge o consumismo e o encarecimento contínuo dos produtos,
por conta dos aproveitadores da nossa parolice basbaque, que nos leva a
preferir o que é detectável aos sentidos, à procura, em esferas mais formativas,
do real sentido dos valores criados – na sua contingência os físicos, na sua
intemporalidade os espirituais. E é por isso que os museus estão cheios de
artefactos – canhestros para as civilizações seguintes - enquanto os
pensamentos dos génios, nos seus escritos, músicas ou pinturas perduram, nas
nossas casas, para uso pessoal, insubstituíveis e eternos.
Mas também é certo que essas invenções perecíveis nos
permitem ir vivendo cada vez com mais facilidade e conforto, favorecedoras da nossa
preguiça e comodismo, embora sejam paralelamente dados relativos, pois cada
invenção projecta o homem para novos trabalhos, galgando espaços e tempos, em paranóia
ascensional arrepiante, de consequências imprevisíveis.
É este um comentário ao artigo de João César Monteiro,
publicado no “A Bem da Nação”,
«FASCÍNIO TECNOLÓGICO»:
«A nossa era tem um amor apaixonado pela tecnologia.
Andamos mesmo cativados com aquilo que as nossas máquinas conseguem fazer. A
cada passo vemos alguém embevecido mostrando feitos do seu telefone ou
computador, como se tivesse mérito nisso. São indiscutíveis os avanços e
benefícios da informática e comunicação nos últimos tempos, mas a atitude de
benevolência babada que daí resulta pode ter efeitos negativos, colocando os
instrumentos acima das finalidades.
Dada a alucinante evolução, aquilo que hoje nos
maravilha será muito em breve irremediavelmente obsoleto e ridículo. É muito
difícil compreender a admiração dos nossos pais pelas calculadoras a cartões ou
cassetes ronceiras. Por isso deveríamos relativizar a última moda tecnológica,
que para mais só vigorará meses até à próxima. Afinal os nossos aparelhos, tão
novos, são ainda realmente primitivos.
O facto é tão evidente que as próprias empresas
manifestam despudoradamente a sua má qualidade. Agora, ao ligar um computador, é
habitual ser importunado com a solicitação de actualizações de programas. Em
qualquer outro electrodoméstico um incómodo destes seria intolerável,
praguejando-se contra o fabricante defeituoso. Mas na informática esta evidente
admissão de falha é considerada sinal de progresso e suportada com bonomia.
Como diz o povo, "mais vale cair em graça que ser engraçado".
Pior, isso em geral implica a espera de longos minutos
até descarregar o programa (download no jargão), seguido de instalação e
encerramento da máquina para "reinicializar". Em certos casos, numa
arrogância inacreditável, o próprio computador parece tomar a decisão de se
autodesligar e religar, como se ele, e não o utilizador, fosse a finalidade
última. A operação do dono que espere, enquanto o mestre mecânico faz a
toilette.
A coisa é ainda mais insólita porquanto, em geral,
acaba por não se conseguir detectar quais foram, afinal, os benefícios das
recorrentes e impostas actualizações. Para a esmagadora maioria dos
utilizadores, que apenas pretende escrever, calcular ou comunicar, esses
caprichos técnicos só complicam e atrasam. Assim, o computador hoje é mais
avançado e poderoso que nunca, mas realmente mais lento.
O fascínio pela tecnologia manifesta-se em múltiplas
outras áreas. Recentemente os transportes públicos lisboetas acrescentaram um
dispositivo às suas estações, indicando o tempo até ao próximo veículo. Nos
autocarros da Carris, se a informação for correta, é relevante pois, existindo
várias carreiras em cada paragem, permite decisões fundamentadas.
Nos comboios do Metropolitano, porém, como não há
escolha, saber o tempo de espera é mero conforto ocioso. A não ser que a
informação fosse apresentada nas portas de superfície da estação, o que
permitiria acelerar ou acalmar o passo. É espantoso como o deslumbramento
tecnológico traz a empresa orgulhosa da proeza, sem notar que colocou o visor
no único local onde é irrelevante, o cais.
Um dos sinais mais divertidos deste enlevo pela
tecnologia é ver os velhos meios de comunicação social -jornais, rádio e
televisão - falar das redes sociais. Hoje essas entidades virtuais ganharam
estatuto de oráculo infalível. A ideia é ridícula porque, se esses instrumentos
fossem aquilo que se alega, não seria possível nem necessário informar do que pensam.
Não seria possível porque, reflectindo realmente as ideias de milhões, ninguém
resumiria tal complexidade em poucas linhas. Não seria necessário pois,
alegadamente universais, tornariam a imprensa redundante.
Esta invocação das redes sociais é apenas a renovação
do velho mito da "opinião pública", que há séculos jornalistas e
comentadores usam para mascarar os seus próprios palpites. Só que hoje a
mística tecnológica acrescenta-lhe uma certeza infalível. O que as redes
sociais dizem (depreendido pelo repórter de um punhado de consultas) é
indiscutível e soberano.
A paixão é sempre ridícula. Por isso o futuro rirá com
surpresa do nosso encantamento ingénuo pela nossa tecnologia ainda tão
rudimentar.»
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