Dois documentos históricos, duas interpretações - são os
artigos do Público: de 21/3
o de Vasco Pulido Valente, “A balança, de 23/3,
“Desta vez é
diferente”, de Teresa de Sousa .
“A balança”, por Vasco
Pulido Valente:
Como império continental, o império russo sempre teve o problema
de estabelecer para si, e sob seu domínio, uma saída para o mar. Pedro, o
Grande, construiu Petersburgo, julgando que ficava mais perto da Europa. Mas só
parcialmente conseguiu o que queria; durante muitos meses por ano o Báltico
oriental gelava e não permitia qualquer espécie de navegação. O verdadeiro
ministro dos Negócios Estrangeiros do império, por exemplo, acabava por ser o
embaixador em Londres. Catarina, a Grande, resolveu parcialmente o problema
quando conquistou a Crimeia e construiu Sebastopol. Agora, sim, adquirira um
porto de águas quentes, que estava aberto o ano inteiro e, por isso mesmo, se
tornou a via principal da influência russa no Ocidente. Militar e
comercialmente, era insubstituível.
Não foi por acaso que a única invasão triunfante da Rússia
nos tempos modernos (1853-1856), pela Inglaterra e a França de Napoleão III, se
pôs como objectivo principal conquistar a Crimeia. Toda a gente sabia que, sem
Sebastopol, a Rússia voltaria ao seu isolamento e pouco a pouco perderia o seu peso
na Europa. Como não foi por acaso que na I Guerra a Alemanha trouxe a Turquia
para o seu lado e na II Hitler aturou (com dificuldade) a sua neutralidade e
tomou Sebastopol logo que pôde (von Manstein). A ajuda aliada veio pelo
Pacífico, com o prejuízo que implicava transportar o material para a frente de
combate, e pelo mar Branco, transitável poucas semanas por ano e sujeito ao
ataque dos submarinos da Alemanha. Sem Sebastopol, o império enfraquecia.
Claro que com o advento do comboio, e a seguir do avião de
carga, as coisas mudaram. Sucede que tanto o comboio como o avião custavam
muito mais do que o navio de mercadorias. E, além disso, a Rússia continuava
impedida de construir no Ocidente uma marinha de guerra, capaz de agir a
qualquer momento (supondo que a Turquia a deixava passar para o Mediterrâneo).
Não admira que Sebastopol se tornasse num emblema do nacionalismo russo e da
sua “porta aberta” para a Europa e para o Atlântico. A UE e a América não
perceberam a tempo que o renascimento do império, com Putin ou sem ele, iria
levar ao programa primário de recuperar a Crimeia. E encorajaram a Ucrânia, a
que a Crimeia pertencia por uma extravagância de Khrutchov, a criar uma
dependência, se não uma “aliança”, com a Europa. O que devia suceder, sucedeu:
não o regresso à guerra fria, o regresso à velha balança das potências do
século XIX.
“Desta vez é diferente” por Teresa de Sousa
1. Estamos tão
habituados a criticar a eterna indecisão da União Europeia quando se trata de
questões de segurança internacional que, por vezes, não conseguimos detectar a
mudança. Podemos talvez agradecer a Vladimir Putin o facto de, desta vez, as
coisas não serem assim.
Podemos dizer que a União Europeia não prestou a devida atenção
à sua estratégia brutal para regressar ao estatuto de grande potência a quem os
EUA têm de fazer a devida vénia. É verdade. Imagina-se facilmente que, durante
as negociações do Acordo de Associação com a Ucrânia, a eurocracia não deve ter
prestado a mínima atenção à realidade política envolvente. Os líderes europeus
andam há tanto tempo mergulhados na crise do euro, que pouca atenção devem ter
prestado à “parceria oriental”, uma daquelas coisas que a Europa faz quase
automaticamente e que já pouco tem a ver com a realidade europeia. Em Dezembro,
Putin forçou o “seu” Presidente ucraniano a não assinar o acordo. No dia
seguinte, foi o que se viu em Kiev. A velocidade dos acontecimentos deve ter
surpreendido tanto a Europa como o próprio Presidente russo. A surpresa não o
impediu de reagir aos acontecimentos de forma a ocupar a Crimeia e a demonstrar
aos países europeus que fazem fronteira com a Rússia que mais vale portarem-se
bem.
Putin calculou mal alguns aspectos da sua estratégia. Ocupou a
Crimeia e integrou-a na Rússia em menos de oito dias, com um referendo que foi
uma farsa e que, até agora, ninguém reconheceu como legítimo. Continua a
ameaçar o território oriental da Ucrânia, alegando a protecção da minoria
russa. Como escrevia Jim Hoagland, colunista do Washington
Post, cometeu o erro de proclamar a sua nova doutrina: “Moscovo
intervirá para proteger os russos étnicos noutros países contra perigos
imaginários”. Esta doutrina não é apenas um desafio à União Europeia e à NATO,
é também a mensagem errada para obrigar as antigas repúblicas soviéticas a
integrar-se na sua União Euroasiática. Tudo isto já é conhecido. Mas Putin
falhou na avaliação que fez da resposta europeia, cuja fraqueza olha com um
enorme desprezo, contando com a suas eternas divisões, muitas delas ditadas
pelos negócios, incluindo a energia.
Para que a sua avaliação tivesse sido correta, era preciso que a
Europa não tivesse percebido o óbvio: que a ocupação da Ucrânia e a ameaça a
outros países foi aquilo que em língua inglesa se chama de “game changer”. Por
mais distraída que viva em relação ao mundo que a cerca, há coisas que não pode
ignorar. Foi o que aconteceu. “A conduta da Rússia é interpretada erradamente
como o início de nova guerra fria com a América”, escreve a Economist. “Coloca uma ameaça
mais ampla porque Putin conduziu um carro de combate contra a ordem existente”.
Para Obama é um momento fundamental: “tem de liderar, não apenas cooperar”.
Para a Europa, o reforço da NATO e o fim da dependência energética passam a ser
cruciais.
2. A grande novidade é
a Alemanha. Enquanto David Cameron ainda lia memorandos sobre como preservar a
City do eventual congelamento dos bens dos oligarcas e a França se punha a
fazer contas aos “Mirages” que queria vender à Rússia, Angela Merkel já tentava
coordenar a sua resposta com Obama. Em todas as suas declarações, no Bundestag
ou fora dele, a chanceler deixou claro que esta não era uma crise como as
outras e que a resposta não poderia ser a mesma de sempre. Com o seu peso
político, contribuiu decisivamente para que a Europa não se dividisse. Foi a
principal interlocutora de Obama, mostrando que a Alemanha não se preocupa
apenas com a economia. A partir daqui, o caminho vai ser mais difícil. No
Conselho Europeu da semana passada, Cameron e Hollande já tinham deixado para
trás a City e os Mirages, defendendo a quase inevitável “fase três” das sanções
económicas, enquanto Merkel se mantinha mais prudente (não tanto sobre a sua
inevitabilidade, mas quanto ao ritmo a que devem ser anunciadas). As relações
económicas entre a Alemanha e a Rússia são enormes. Pode dizer-se que as
sanções políticas aplicadas pelos EUA são muito mais duras do que as europeias.
O comércio entre a União e a Rússia é 10 vezes maior do que o dos Estados
Unidos e a dependência energética necessita de uma forma qualquer de encontrar
alternativas.
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