Foi o comentário escrito que, à minha
irmã, mereceu o artigo de Vasco Pulido Valente, saído no Público em.
16/7 – «A nossa
democracia» - antes de, fraternalmente, me passar os Públicos
que ela compra, dividindo comigo o prazer da leitura, preenchendo ela as
palavras cruzadas e os sudokus da sua distracção, que eu sempre tenho as Copas,
o FreeCell e o Solitário Spider da minha diversão diária.
De facto também achei o artigo de um
derrotismo aflitivo, provindo de um espírito cuja lucidez se deixa ofuscar, por
vezes, por uma má vontade de desprezo que lhe merece, dum modo geral, o povo
português. O mesmo desprezo superior – superioridade aristocrática e
intelectual - que há dias vagamente senti - porque o detectei de relance na RTP
- numa figura do tablado britânico, cuja identidade profissional não consegui
captar. Talvez fosse o detective chefe Andy Redwood, referenciado na
internet, provável continuador, nos trejeitos de investigação policial, do
subtil Sherlock Holmes – ao referir-se ao caso Maddie e a novas possíveis
provas de atribuição criminosa no seu rapto, com severo desprezo sobre “esse
mundo do sul” -submundo, portanto, o nosso - que, ao que parece, não facilitou
a descoberta do criminoso agora escolhido. Desprezo, de resto, próprio de todos
os apartheids dispersos pelo mundo, quer se trate dos do setentrião europeu, do
ocidente americano, ou do meridião africano, para só falar nos mais conhecidos,
pois que o mundo, afinal, está semeado de párias malquistos, que não cabem,
contudo, nas reclamações das lutas ordeiras dos Gandhis contra os racistas
britânicos, visto que os párias desprezíveis no segregacionismo das castas elitistas
do seu próprio povo não figuram nelas.
Evidentemente que a altivez malandra depreciativa
de Pulido Valente, que também o engloba a ele, quase se limita ao designativo
“indígena”, que somos nós, aborígenes de uma pátria para mais genuinamente
indigente, apesar das glórias de um esforço heróico de outrora, jamais
libertadoras de uma estranha injustiça a condicionar tão expressivas
desigualdades sociais internas.
E no entanto, o pensamento
“agoirento” de Pulido Valente parece certo, fruto de uma preocupação que resulta
de clareza da sua razão e conhecimento histórico sobre um povo sui generis,
que sempre viveu mais de truques de sobrevivência – pelo menos nas cidades – do
que de um esforço de construção em prol de uma comunidade harmónica e
solidária: no tempo do absolutismo as riquezas que esse povo ajudou a angariar
foram disseminadas em esbanjamentos glorificantes, indiferentes a uma elevação
material e espiritual menos elitista; o liberalismo libertador embateu nesses
condicionalismos de atraso e penúria, que os esforços de elevação cultural,
juntamente com a modernização trazida com o progresso da industrialização,
naturalmente pela via do financiamento exterior, tentaram dificilmente superar,
sempre em palpos de aranha para vencer os défices e o invencível atraso nacional.
Salazar foi dos que susteve o caos anterior, mas dentro das condicionantes do
costumado miserabilismo e desnível social injusto e vergonhoso, todavia apoiado
por louvável sentido patriótico respeitador do passado histórico, além de
resultante do reconhecimento interesseiro de um ultramar provedor de muita da
sobrevivência da nação. Desfeito o sonho imperialista e aplicados os princípios
da solidariedade social, foi à custa da herança da anterior poupança
salazarista, e posteriormente dos auxílios europeus, que se pôde desenvolver o
país em reestruturações mais concordantes com os mundos da previdência e da
riqueza estrangeiras. Só que tudo isso foi seguido de depauperamento dos
sectores económicos primários, sobretudo, com consequências graves sobre o
desemprego e sobre a crescente intemperança de comportamentos sociais relativos
a corrupção económica, favorecedores de desníveis económicos irreparáveis e
impeditivos de um recomeço sério, ao que se diz, de uma nação sempre madrasta.
Daí o discurso “agoirento” de Vasco
Pulido Valente. Só me parece que ele poderia apoiar mais um Governo que precisa
da tal austeridade e autoridade para impor a ordem nas contas e no crédito,
sabendo bem que o excesso de “democracia”, pela desordem criada com as noções
de direitos do estado social em que não encaixam bem os deveres do mesmo, é
factor de agravamento, criador da tal violência reivindicativa, que, a
continuar, mau grado as comportas com que o Governo pretende suspender a
torrente desastrosa, naturalmente nos levará à derrocada total.
Pulido Valente, com as suas análises
argutas, no fundo está a colaborar na mesma confusão e destruição que os 74 notáveis
de dentro, acrescidos, agora, dos 74 amigalhaços de fora, se propõem gerar,
indiferentes ao país - favorecidos, todavia, pelas pequenas conquistas desse
Governo que lhes vai mantendo os ordenados, apesar de mais reduzidos - roendo na
sombra a corda que vai sustendo o país, graças à determinação e coragem dos jovens
governantes que lhes fazem frente, embora lhes falte a doutorice reivindicada
por muitos dos tais notáveis, que tanto deram o seu contributo na ruína do mesmo,
com empréstimos descontrolados para cozinharem a democracia em proveito próprio
também.
Todos esses notáveis da economia e
das empresas, deviam, isso sim, colaborar com o Governo na consciência da
contenção e não do esbanjamento, e não pôr-se a brincar aos soldadinhos de
chumbo, a dois meses de uma solução – evidentemente não definitiva - sobre a
qual se fazem apostas, em vez de apoios, se dão tiros em vez de flores. Eles
sabem do buraco que eles próprios também cavaram, mas pretendem disfarçar, com uma
extemporânea reestruturação da dívida, para o bota-abaixo final. As flores vêm
aí, daqui a trinta e quatro dias. Para as suas demonstrações de amor pátrio, de
soldadinhos de chumbo em acção. No caos.
O artigode Vasco Pulido Valente:
A nossa democracia
Depois de, pelo menos, 30 anos de guerra civil (1821-1851),
Portugal conseguiu estabelecer um regime liberal, que durou à volta de 40 anos.
No fim do século XX, apesar de algumas tentativas autoritárias, Portugal também
conseguiu estabelecer uma democracia “à europeia”, com dinheiro emprestado. Não
admira que muita gente hoje se comece a preocupar com o futuro político do
país.
Será possível com os 20 ou
30 anos de “austeridade”, ou seja, de empobrecimento, que do alto da sua
sapiência o dr. Cavaco nos prometeu, conservar um regime apesar de tudo benigno
e tolerável? Ou, se uma tradição já velha prevalecer, virá agora um período de
violência e desordem, a que uma espécie qualquer de autoritarismo tarde ou cedo
acabará por pôr fim perante o alívio e o júbilo dos portugueses?
A dúvida é lógica e até prudente. Tanto mais que a “Europa” dos
fundadores, que foi a esperança e o sonho de três gerações de ingénuos,
manifestamente se desagrega e abandona os princípios que desde o começo tinham
sido os seus: os direitos do homem, o Estado Social e a supremacia da lei. Como
iremos nós, sem a “solidariedade” e o apoio de Bruxelas, resistir às forças que
de dentro e de fora promovem ou assanham o nosso descontentamento geral e cada
vez mais dividem o país? Não existem hábitos de tolerância e de compromisso,
não há instituições que inspirem o respeito da maioria da população, não há uma
classe dirigente respeitável e respeitada. Nem sequer há uma razão maior para
um patriotismo indiscutível e partilhado. Sem nenhum fundamento sólido,
Portugal anda de facto à mercê das circunstâncias.
Pior: os motivos para o caos, que são simultaneamente aos
motivos para a tirania, não param de aumentar. A corrupção cresce e a justiça
persiste na sua incompetência e lentidão. O Estado passa por couto privado do
privilégio e dos “negócios”. Os políticos ganharam uma fama (com frequência,
merecida) de carreirismo e desonestidade. A autoridade da “inteligência” desapareceu.
E a própria Igreja desistiu ruidosamente do século. Isto é um convite a um
aventureiro ou bando de aventureiros para se apoderarem e se entrincheirarem no
poder. Por enquanto, essa catástrofe ainda anda longe. Mas, com a rapidez da
mudança num mundo fluido e imprevisível, não admira que amanhã bata às portas
da cidade. O dr. Cavaco e o dr. Passos Coelho deviam pensar duas vezes no que
fazem.»
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