A época
que Vasco Pulido Valente descreve no seu artigo do Público de 9/8 «O
empobrecimento», reportada aos 40 anos sepulcrais da ditadura salazarista,
é de um cinzento bem carregado, que nos deixa a alma arrepiada, numa espécie de
“frisson d’horreur” como, por motivos mais artísticos, provocavam, nas
sensíveis almas românticas de um século antes, o belo horrível das paisagens sombrias
e revoltas ou os caracteres tenebrosos de tantas figuras literárias dessas
épocas dos Javerts radicais, como ainda os há, ou de condenados às galés por
razões mesquinhas, ou de Jangadas da Medusa que hoje, todavia, são
acontecimento banal, ou de ambientes sinistros dos Poes de imaginação doentia. Mas
o mesmo sentimos ainda, com os filmes a preto e branco desses anos em que
Salazar imperou entre nós, agora que os filmes a cor nos desvendam as
maravilhas da natureza ou as belezas da criatividade humana, embora também os
excessos do despudor libertino que talvez um dia constituam modelos sombrios e
risíveis da nossa época democrática.
A época
de Salazar vive na minha lembrança sob alguns aspectos de sordidez, sim, quando
a via retratada na nossa pobreza física e espiritual, confrontada com os países
de que ouvia maravilhas, países onde a guerra causara sofrimento e deixara
vestígios de ruínas mas que a força dos homens conseguira, apesar das marcas de
horror vividas, fazer erguer dos destroços, com bastante presteza. Claro que me
limitei a estudar e a brincar, numa infância cumpridora, numa família de compreensão
um tanto rígida mas de carinho incontestável. Numa África de espaços mais
abertos, quando vim estudar para cá, um dos sintomas de limitação, relativamente
à fartura africana era, para mim, a falta da coca-cola, que o Estado Novo
proibia na metrópole. Muitas outras notei, mas quando, em 55 uma Bolsa de
férias na Sorbonne me possibilitou a viagem até França, ao passar a fronteira em
Vilar Formoso, com estranheza notei que umas crianças espanholas também andavam
descalças e mal vestidas, como acontecia por cá. Desligada da política, apenas
no meu sétimo ano do liceu, em Moçambique, ficara muito impressionada quando
uns colegas foram interrogados pela Pide e alguns foram presos, porque liam
livros proibidos, o que, naturalmente me chocou, livre que sempre me senti,
amante da pátria também, num percurso escolar disciplinado. Mas já em Coimbra,
António José Saraiva fora proibido e isso chocara-me, porque sempre o admirei, e,
como pessoa livre, não fora isso obstáculo para as minhas ânsias de saber.
O artigo
de Vasco Pulido Valente é taxativo sobre essas misérias nos tais 40 anos antes dos
quarenta posteriores, apontando as melhorias que a democracia nos trouxe. Liberdade
acima de tudo, e uma aparência de progresso e bem-estar sob vários ângulos. Mas
essa evolução foi proporcionada por uma integração europeia que, injectando
dinheiros sucessivos no nosso país, melhorou estruturas mas não desenvolveu
produção industrial, destruindo agricultura e pescas. A hora de pagar chegando,
exigiu o apearmo-nos do falso esplendor megalómano que enchera bolsas, e
facilitara a corrupção.
O Governo
que tentou iniciar uma conduta de resgate de dívida é, naturalmente contestado,
nos sacrifícios que tinha que impor a cada um, e que também Vasco Pulido
Valente condena, sem querer ver o óbvio, que é a necessidade de partir de cabeça
erguida à conquista do nosso lugar, por modesto que seja, mas mais credível. Enfeitarmo-nos
com penas de pavão não nos vai bem.
Mas
porque não acreditar nos sinais positivos que vão surgindo, até na diminuição
do desemprego? Porque não confiar num Governo de trabalho e mais seriedade?
E voltamos
ao ponto de partida: o ver tudo de cores sombrias lembra o “spleen” do tempo
das Flores do Mal, responsável por temáticas de escândalo pessimista, como a
doença, a morte, a podridão…
Mas o
nosso spleen requintado é menos abstracto e mais directo e insultuoso. Para
todos os efeitos, vivemos em democracia.
«O
empobrecimento»
O primeiro-ministro anunciou que Portugal não voltará tão cedo,
se voltar, à relativa prosperidade de 2011. Outras personagens que o apoiam e
o aprovam prevêem tranquilamente o empobrecimento progressivo do país. Nenhuma
delas parece ter vivido os tempos de fome e desespero que duraram muito mais de
40 anos, durante a República, Salazar e Caetano.
Com 30 anos no “25 de Abril”, não me esqueci
depressa do que era a vida nessa altura. Não falo da esquálida miséria do
campo, que numa região rica a uns quilómetros de Lisboa, em que as pessoas
trabalhavam o dia inteiro, envelheciam depressa e morriam de qualquer maneira, sem diagnóstico e sem assistência. Como não
falo da província – do Minho ao Algarve – onde o horror se tinha tornado a
normalidade. Na falta de uma experiência directa, seria um impudor.
Mas não me importo de falar da classe média (de resto
privilegiada) em que nasci: e posso dizer que a pobreza contaminava tudo. O que
se vestia, o que se comia, o que se fazia, o que se pensava. Mais do que na
gente que mandava no Estado e no cidadão comum, a tirania estava, como dizia o
outro, na necessidade de poupar, na privação perpétua da frivolidade e do
prazer, no mundo imóvel e sem saída, que pouco a pouco se tornava numa prisão a
céu aberto. As dores de crescimento num liceu de crianças caladas, que muito
manifestamente esperavam o pior e, a seguir, numa Faculdade, que se destinava a
premiar os filhos de família e a submissão, não levavam a uma descoberta ou
sequer a uma aprendizagem, no seu melhor levavam a uma espécie de punição que
moía e predispunha à desistência e ao cansaço.
O Portugal de hoje não conseguiria nunca perceber o Portugal de
1950 ou de 1960. Agora, até se glorifica o crescimento da economia e a
estabilidade financeira do regime. O primeiro-ministro com certeza nunca se deu
ao trabalho de imaginar aquilo a que a pobreza haveria condenado um rapazinho
de Trás-os-Montes com uma mediana boa voz. Nem lhe descreveram o deserto que
foi Lisboa nessa época de chumbo, onde ir ao café ou a um cinema de “reposição”
tomavam as proporções de um acontecimento. Os sinais de que o país começa a
voltar atrás são claros. Verdade que a civilização que entretanto se criou não
vai desaparecer. Mas nada disso consola se imitações substituírem o que existia
antes e acabarmos na mediocridade e na tristeza de uma simples sobrevivência
sem destino.
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