Quando julgava que o
português já estava despachado, conjuntamente com territórios vários,
despachados primeiramente, e partes específicas do seu terreno a despachar
diariamente, já que não voltei a ouvir falar do desacordo com o Acordo e muito
menos as justificações que nos idiotizam, deparou-se-me este artigo de José Manuel Martins, do Público de15/11/2014, «Despachar o português: o dever de
recusa» com o apoio dos docentes da
Universidade de Évora, infracitados, que nos mostrou que ainda não feneceu o
ardor linguístico, prova de amor pátrio, como o são também as demonstrações
embandeiradas das medalhas olímpicas ou mesmo só europeias, além da satisfação
pátria e sobretudo regional nos ganhos
patrimoniais de canções folclóricas, terras ou antiguidades preservadas, que
outros países nos concedem para enriquecimento cultural da Humanidade.
Penaliza-me que estes professores da
Universidade de Évora, já que o governo se está nas tintas para a escrita da
sua língua, não submetam este seu protesto tão lógico a uma entidade idónea
estrangeira que proibisse tal maculação de uma
língua de origem igualmente universal como a dessa entidade – neste caso
do grego e do latim – impondo o tal “dever de recusa” em despachar a escrita portuguesa do universo.
«Apelamos aqui, não à "desobediência civil", mas
tão simplesmente a este português em que escrevemos.», afirma energicamente José Manuel Martins,
acompanhado por vários docentes da mesma Universidade, neste documento tão
pleno de sabedoria. E, naturalmente, de profundo sarcasmo. Infelizmente não
atinge os responsáveis, nem sequer os que governam ou virão a governar.
No gesto tão modernaço quanto burocraticamente hirto com que abusivamente se
procura dar por "oficializado" esse disparate técnico e essa inépcia
política designados "Acordo Ortográfico de 1990", uns, mais papistas
que o Papa, emitem despachos: e os subpapistas despacham-se a cumpri-los,
pelo facto de serem despachos.
Por decisão pessoal, declaro que não escrevo neste
português do AO.
«Despachar o português: o dever de recusa»
José Manuel Martins,
Anda por aí à solta uma epidemia da obediência
antecipada, um zelo narcísico em obedecer e uma pressa institucional em se
fazer obedecer, a bem dos brandos costumes. Por toda a parte onde se escreva e
não se questione: nas editoras, nas universidades, na escola, nos serviços
públicos, nas entidades privadas "esclarecidas".
No
gesto tão modernaço quanto burocraticamente hirto com que abusivamente se
procura dar por "oficializado" esse disparate técnico e essa inépcia
política designados "Acordo Ortográfico de 1990", uns, mais papistas
que o Papa, emitem despachos: e os subpapistas despacham-se a cumpri-los,
pelo facto de serem despachos. Nessa concha fechada do institucionalismo,
emitiriam e cumpririam também os despachos opostos, uns com a alegria maldosa
do álibi hierárquico, os outros com o prazer perverso ligado ao acto simbólico
do puro exercício formalista do poder. Ainda outros, entregues à tara
provinciana de serem os primeiros; quando não é o caso de terem na mira uma
oportunidade de negócio em letra impressa: "já" estarem do lado bom
das vendas.
Essa
admirável cultura da legalidade ignora viciosamente o vasto historial
argumentativo da resistência científica e, por isso, cívica que desde 1986
torna tudo menos "evidente" (e "de vosselências mui atento e
obrigado") o cumprimento de despachados despachos.
Ah,
admirável superstição de amanuenses dóceis, que nos vêm recordar, caso
estivéssemos esquecidos, que a Lei é a Lei, e que a tal ponto esta tautologia é
majestosa e em si mesma, que, dizem, submete por igual soberanos e súbditos,
enchendo-nos a todos de candura e paz! Talvez seja vício filosófico
perguntá-lo, mas, na fórmula mágica "igualdade perante a Lei",
perante que instância é que essa famosa "Lei" por sua vez
responde?
Um
caso a vários títulos eloquente, a este respeito, foi o de Vasco Graça Moura,
à frente do Centro Cultural de Belém, posto onde demonstrou sossegadamente a
absoluta irrelevância, quer da teologia da obediência, quer de algum esbracejante
anarquismo da desobediência (que ele jamais reconheceria, porém, como ingénua
"desobediência"): limitou-se com toda a tranquilidade a continuar a
escrever recusando-se à aplicação, não da Lei ou de temerosos despachos, mas da
rábula técnica e da mistificação diplomático-editorial que dá pelo nome de
"Acordo Ortográfico".
Ah
– e proclamando-o publicamente. Ponto importante, e pouco português, que nos
acusa: moles!, lassos! E coragem exemplar que nos
envergonha duplamente, não só por ele a ter tido, mas por nos ter assim
mostrado a todos que essa imaginária vigilância kafkiana a que a inércia, mais
que o temor, nos subordina, é um tigre de papel.
O
que deve, em tais circunstâncias, fazer um agente institucional médio à frente
de um serviço de Estado sob despacho? Pois, escrever tranquilamente o seu
português e lamentar a quantidade de gralhas persistentes que os revisores de
comboio forem, em seguida, capazes de descobrir todos lampeiros no sucinto
trajecto entre Carcavelos e a gare de Oeiras.
Esses
zelosos oficiais de pala bem podem então correr a levar ao senhor Chefe de
Estação os escandalosos bilhetes apreendidos, e ele que os faça passar, se lhe
aprouver, pelo olho de Lince do programa corretor, nosso patrono, restituindo a
Ordem das coisas e do seu estado, e repondo a moral pública e o aprumo no
sistema ferroviário nacional, expurgado de choques e atrasos. Desde que eu não
os assine pelo meu punho na sua nova versão aguada e ignara. Pois só se deve
assinar aquilo que se escreve.
Sem
sermos aqui demasiado kierkegaardianos, o que Graça Moura fez foi escolher a
escolha – e não a falsa alternativa entre obedecer e desobedecer. A liberdade
que ele exerceu não se mede contra o constrangimento de uma regra, mas
escolhendo o que liberta – a língua, que é do que se trata, e não a norma, cuja
forma – o ser-norma – é por definição alheia à língua, à qual trata como seu
objecto. Pode-se escolher como se vive: na língua – ou como funcionário.
Paradoxalmente,
o zelota é aquele que defende com tanto arreganho a ortografia anterior, como
qualquer uma que pretenda revogá-la: uma ortografia é correcta por obedecer à
lei, não à língua, e eis que a Lei é o melhor argumento linguístico que há,
senão o único: questão de regulamento interno por despacho de sua excelência.
Não
é aqui o lugar para mergulhar numa filosofia da linguagem ou numa teoria da
escrita. Limitemo-nos a apontar uma evidência que esvazia em cinco segundos
toda e qualquer pertinência de uma proposta de
"acordo ortográfico" baseada na alegação de que a unificação ortográfica produziria
uma unificação linguística suficiente: para todos os efeitos práticos,
um acordo ortográfico não serve absolutamente para nada,
porque é falso que unifique o português escrito e o brasileiro escrito,
nem sequer no plano ortográfico (onde se multiplicam casos de dupla
grafia, o "AO" auto-sabotando assim o seu próprio princípio
formal), quanto mais nos outros três dos quatro planos em jogo, insanavelmente
divergentes e livremente criativos. Com efeito, no dia em que nos fóruns internacionais
a lusofonia queira expressar-se a uma só voz (incluindo a Guiné Equatorial
do simpático falante Obiang) e num documento unificado, a versão que soar
terá ainda que escolher se dirá "ônibus",
"machimbombo" ou "autocarro" (são alternativas lexicais não
unificáveis); se formulará "policial" ou
"polícia" (são alternativas morfológicas não unificáveis);
se articulará "me deixa te dizer" / "deixa-me
dizer-te" (são alternativas sintácticas não unificáveis). A
multiplicar por mil.
A extensão
e a profundidade das diferenças lexicais, morfológicas e sintácticas
sobrepassam esmagadoramente as divergências ortográficas, epidérmicas em
relação àquelas – tornando o "acordo" impróprio para os
embaciados fins político-diplomáticos que foi sugerido esperarem-se dele. Apelamos,
pois, aqui, não à "desobediência civil", mas tão
simplesmente a este português em que escrevemos.
Com o apoio dos docentes da
Universidade de Évora:
Hélio Alves (Linguística
e Literaturas)
João Brigola (História)
João Eduardo Rabaça (Biologia)
João Paulo Fernandes (Ciências do Ambiente)
João Príncipe (Física)
Jorge Rivera (Filosofia)
Manuel Mota (Biologia)
Nuno Neves (Geografia)
Olga Gonçalves (Linguística)
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