Foi o que me ocorreu a propósito do artigo de Vasco
Pulido Valente «Um fingidor», Público, 28/11, que logo me
dispus a parafrasear como uma espécie de “heteropsicografia”:
Este homem é um fingidor
Finge com tanta patranha
Que chega a fingir que é manha
A manha em que é maior.
E os que lêem o que sente
Na sua manha lêem bem
Não as várias com que mente
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira cheio de certezas
No combóio da sua
moda
A abarrotar de riquezas.
Eis o artigo de Pulido Valente:
Um fingidor
Nunca gostei da personagem política “José Sócrates”, desde a
campanha para secretário-geral do PS (em que ele prometeu não aumentar impostos
que, de facto, aumentou) até à sua ascensão a primeiro-ministro, muito ajudado
por Pedro Santana Lopes e pela reputação de autoritário que entretanto
adquirira.
Não tranquiliza particularmente ser governado por um
indivíduo que se descreve a si mesmo como um “animal feroz”, nem por um
indivíduo que prefere a força política e legal à persuasão e ao compromisso. Se
o tratam mal a ele agora, seria bom pensar na gente que ele tratou mal quando
podia: adversários, serventes, jornalistas, toda a gente que tinha de o aturar
por necessidade ou convicção. Sócrates florescia no meio do que foi a sufocação
do seu mandato.
O dr. António Costa quer hoje separar os sarilhos de um
alegado caso criminal do seu antigo mentor da política do Partido Socialista e
do seu plano para salvar a Pátria. O que seria razoável, se José Sócrates não
encarnasse em toda a sua pessoa o pior do PS: o ressentimento social, o
narcisismo, a mediocridade, o prazer de mandar. Claro que, como qualquer
arrivista, Sócrates se enganou sempre. Começou pelos brilhantíssimos fatos que
ostentava em público, sem jamais lhe ocorrer se as pessoas que se vestiam “bem”
se vestiam assim. Veio a seguir a “licenciatura” da Universidade Independente,
como se aquele papel valesse alguma coisa para alguém. E a casa da Rua
Braamcamp, que é o exacto contrário da discrição e do conforto e último sítio
em que um político transitoriamente reformado se iria meter.
Depois de sair do Governo e do partido, Sócrates mostrava a
cada passo a sua falsidade, não a dos negócios, que não interessam aqui, mas da
notabilidade pública, por que desejava que o tomassem. Resolveu estudar em
Paris, para se vingar da humilhação do Instituto de Engenharia e da
Universidade Independente, e resolveu fazer um mestrado em “Sciences Po”, sem
perceber que o mestrado é uma prova escolar de um estatuto irrisório. Em Paris,
viveu no “seizième”, o bairro “fino”, como ele achava que lhe competia, e, de
volta a Lisboa, correu para a RTP, onde perorava semanalmente para não o
esquecerem: duas decisões ridículas que só serviram para o prejudicar, embora
estivessem no seu carácter. Como o resto do país, não sei nem me cabe saber
se o prenderam justa e justificadamente. Sei – e, para mim, chega – que o homem
é um fingidor.
Na véspera, João Miguel Tavares tinha igualmente
escrito, com lógica, no Público
sobre a presunção de inocência de Sócrates:
sobre a presunção de inocência de Sócrates:
A presumível inocência
de Sócrates:
Da
mesma forma que os gatos têm sete vidas, eu acho excelente que um cidadão tenha
sete presunções de inocência. O problema de José Sócrates, tal como o de um
gato que falece, é que já as gastou. Sócrates foi presumível inocente na
construção de casas na Guarda, foi presumível inocente na licenciatura da
Independente, foi presumível inocente na Cova da Beira, foi presumível inocente
no Freeport, foi presumível inocente na casa da Braamcamp, foi presumível
inocente no assalto ao BCP, foi presumível inocente na tentativa de controlar a
TVI, foi presumível inocente no pequeno-almoço pago a Luís Figo. Mal começou a
ser escrutinado, a presunção de inocência tornou-se uma segunda pele.
Claro
que José Sócrates continua presumível inocente aos olhos da justiça, e assim
continuará até ao trânsito em julgado da sentença. Claro que a presunção de
inocência é pedra angular de uma democracia decente e de qualquer sistema
judicial digno. Mas eu não sou juiz, nem polícia. Sou um cidadão e um
colunista. E, enquanto tal, tenho todo o direito – repito: todo o direito – de
presumir, face ao que leio nos jornais, às minhas deduções, às minhas
convicções, à minha experiência, à minha memória e ao esgotamento de sete
presunções de inocência, que Sócrates é culpado daquilo que o acusam. E tenho
todo o direito de o escrever – pela simples razão de que as regras do espaço
público não são as regras de um tribunal.
Esta
insistência em confundir o plano mediático com o plano da justiça é absurda.
Levado ao extremo, faria com que só pudéssemos pronunciar-nos sobre a
honorabilidade de José Sócrates daqui a sete ou oito anos, quando todos os
recursos tivessem sido esgotados e a sua sentença transitado em julgado. Eu não
tenho o poder de um juiz. Não posso, felizmente, prender ninguém. E se não
tenho o seu poder, é óbvio que também não tenho as suas limitações. É por isso
que a minha liberdade de expressão é mais lata do que a do juiz Carlos Alexandre:
ele fala pouco porque pode muito; eu falo muito porque posso pouco. À justiça o
que é da justiça, aos jornais o que é dos jornais.
Existe
uma admirável coincidência entre os fazedores de opinião que estão a demonstrar
uma hiper-sensibilidade às falhas do segredo de justiça e uma notável abnegação
na defesa da presunção de inocência, e aqueles fazedores de opinião que durante
anos e anos defenderam José Sócrates contra os ataques ad hominem e o julgaram vítima de
infames conspirações. Quando vejo Miguel Sousa Tavares ou Clara Ferreira Alves
mais entretidos a discutir fugas de informação e timings de detenção do que a
possibilidade muito real de um ex-primeiro-ministro ser corrupto, eu sei que
eles estão menos a defender Sócrates do que a defenderem-se a si próprios, e
àquilo que andaram a escrever ao longo dos anos.
Ainda
ontem, no DN, Ferreira Fernandes dizia o seguinte: “Em 2009, escrevi:
‘Prendam-no ou calem-se.’ A turba, com muita gana mas sem prova, chegou
primeiro do que a opinião pública – e depois?” E depois, caro Ferreira
Fernandes, é que ali entre 2007 e 2011 boa parte da opinião pública preferiu
fechar os olhos ao elefante no meio da sala. Se não havia provas, havia
infindáveis indícios – e boa parte da opinião pública preferiu engolir as teses
surreais de Sócrates, mantendo-se impassível diante do sufoco evidente do poder
judicial às mãos do poder político. Viram, ouviram e leram. Mas preferiram
ignorar. É uma escolha, claro. Só que convém assumi-la, até para que ninguém
a esqueça.
Leiamos Fernando Pessoa, tão superior, até como poeta fingidor, nos
seus antagonismos de sensibilidade e razão:
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
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