sábado, 20 de junho de 2015

Previsões



«Todos os homens têm os seus lamentos secretos que o mundo desconhece; e muitas vezes dizemos que ele é frio quando é apenas triste», lê-se em epígrafe, na última página do Público, frase do poeta estadunidense Henry Wadsworth Longfellow (18071882), que bem regista os desesperos solitários das almas, resultantes da incompreensão, da dúvida, do medo, do remorso, da cobardia, do sentir-se injustiçado, que o mundo secreto de cada um traz à tona em momentos de solidão e confronto isolado  com os porquês sem resposta. Momentos que por vezes desabam em textos traduzindo esses estados de alma, quer em discursos líricos ou em prosa mordaz, quando não de uma serenidade  esclarecedora.  Victor Hugo, melhor que ninguém traduziu o amarfanhamento maior do homem, numa aparente submissão que não é mais que incapacidade de contrariar o destino. A morte – por afogamento - da sua filha Léopoldine, mereceu-lhe versos de uma expressão trágica, de aparente resignação que para sempre restarão como expressão da maior dor humana, de que ”À Villequier”, (recitado no YouTube), constitui exemplo que ninguém pode ler serenamente.
Maintenant, ô mon Dieu ! que j'ai ce calme sombre
De pouvoir désormais
Voir de mes yeux la pierre où je sais que dans l'ombre
Elle dort pour jamais ;

Maintenant qu'attendri par ces divins spectacles,
Plaines, forêts, rochers, vallons, fleuve argenté,
Voyant ma petitesse et voyant vos miracles,
Je reprends ma raison devant l'immensité ;

Je viens à vous, Seigneur, père auquel il faut croire ;
Je vous porte, apaisé,
Les morceaux de ce cœur tout plein de votre gloire
Que vous avez brisé ;

Je viens à vous, Seigneur ! confessant que vous êtes
Bon, clément, indulgent et doux, ô Dieu vivant !
Je conviens que vous seul savez ce que vous faites,
Et que l'homme n'est rien qu'un jonc qui tremble au vent ;
Je sais que vous avez bien autre chose à faire
Que de nous plaindre tous,
Et qu'un enfant qui meurt, désespoir de sa mère,
Ne vous fait rien, à vous !
Voyez-vous, nos enfants nous sont bien nécessaires,
Seigneur ; quand on a vu dans sa vie, un matin,
Au milieu des ennuis, des peines, des misères,
Et de l'ombre que fait sur nous notre destin,

Apparaître un enfant, tête chère et sacrée,
Petit être joyeux,
Si beau, qu'on a cru voir s'ouvrir à son entrée
Une porte des cieux ;

Quand on a vu, seize ans, de cet autre soi-même
Croître la grâce aimable et la douce raison,
Lorsqu'on a reconnu que cet enfant qu'on aime
Fait le jour dans notre âme et dans notre maison,

Que c'est la seule joie ici-bas qui persiste
De tout ce qu'on rêva,
Considérez que c'est une chose bien triste
De le voir qui s'en va !
(in « LES CONTEMPLATIONS»)
Traduzo, embora ciente da desvalorização rítmica:
(Agora, ó meu Deus! Que tenho esta calma sombria
De poder de hoje em diante
Olhar com os meus próprios olhos a pedra a cuja sombra
Sei  que ela dorme para sempre;
Agora que enternecido por estes divinos espectáculos,
Planícies, florestas, rochedos, vales, rio prateado,
Olhando a minha pequenez e vendo os vossos milagres
Retomo a racionalidade perante a imensidão;
Venho junto de vós, Senhor, pai em quem se deve crer;
Trago-vos, apaziguado,
Os pedaços deste coração cheio da vossa glória
Que vós haveis quebrado;
Venho junto de vós, Senhor! Confessando que vós sois
Bom, clemente, indulgente e doce, ó Deus vivo!
Convenho que só vós sabeis o que fazeis,
E que o homem não é mais que um junco que treme ao vento;
Sei que vós tendes mais para fazer
Do que a todos lamentar
E que uma criança que morre, desespero da sua mãe,
Para vós nada pode querer dizer!
Olhai, os nossos filhos são-nos bem necessários,
Senhor; quando se teve na vida, uma manhã,
No meio dos males, das tristezas, das misérias
E da sombra que sobre nós faz o destino
Aparecer um filho, cabeça estremecida e sagrada,
Pequenino ser alegre,
Tão belo que se julgou entrever à sua entrada
Uma porta dos céus;
Quando se viu, dezasseis anos, desse outro nós-mesmos
Crescer a graça amável e a doce razão,
Quando se reconheceu que essa criança que se ama
É a luz da nossa alma e da nossa casa,
Que é a única alegria na Terra que persiste
De tudo o que se sonhou,
Considerai que é uma coisa bem triste,
Vê-la que partiu!” )

Tratava-se de uma dor pessoal, a dor que já Job exprimiu, a dor do ser humano, secreta, que ninguém pode desvanecer, salvo o tempo, no seu rolar, e o despojamento humilde dos egoísmos próprios, pelo confronto com os males alheios.
Mas também nesse sentido trágico, embora global, aponta o artigo de João Miguel Tavares, publicado na mesma página - “Prosperidade sem crescimento” - parafraseando o livro de Tim Jackson com esse título, pondo a tónica sobre a frase assustadora aí citada «num mundo de recursos finitos, constrangido por limites ambientais rígidos ainda caracterizado por ilhas de prosperidade no meio de oceanos de pobreza, será legítimo que o crescimento perpétuo dos rendimentos daqueles que já são ricos sirva de apoio às nossas esperanças e expectativas?» Tal tese condena um mundo em que os recursos do planeta, que são finitos - a continuar a agir-se como se o não fossem, o capitalismo gerando uma riqueza cada vez mais em desproporção com os “oceanos de pobreza”, e contribuindo cada vez mais para a degradação do ambiente - só a catástrofe ecológica têm por horizonte, a não se arrepiar caminho, delimitando ecologicamente as actividades  económicas.
Tal introito de João Miguel Tavares serve para apontar severamente a inverdade dos cenários macroeconómicos optimistas propostos pelo PS, no documento “Uma década para Portugal” feitos num objectivo eleitoral que, a acontecerem, levarão o país definitivamente ao descalabro da bancarrota. Para mais, os crescimentos económicos prometidos não podem nem devem ser verdadeiros, os objectivos primordiais na nova disciplina económica devendo ser comedidos para evitar o desastre ecológico. Um texto para se reflectir no significado de genocídio que se pratica nos países industrializados:

Prosperidade sem crescimento
João Miguel Tavares
Público, 26/5/15
O título desta crónica não é meu, mas de um livro de Tim Jackson, lançado pela editora Tinta da China há dois anos. Jackson é professor de Desenvolvimento Sustentável e o seu livro parte de uma tese que convém começarmos a levar a sério — a de que o crescimento não pode continuar a ser uma obsessão das sociedades ricas: “Num mundo de recursos finitos, constrangido por limites ambientais rígidos, ainda caracterizado por ilhas de prosperidade no meio de oceanos de pobreza, será legítimo que o crescimento perpétuo dos rendimentos daqueles que já são ricos sirva de apoio às nossas esperanças e expectativas?”
Aquele “será legítimo” coloca a questão no domínio moral — é como se “crescer” ou “não crescer” fossem duas opções possíveis, e estivesse nas nossas mãos escolher uma delas. Contudo, essa dimensão moral interessa já muito pouco em 2015, por uma razão simples: a gigantesca crise em que estamos mergulhados está a tratar de impor uma travagem no crescimento nos países do Primeiro Mundo, quer os seus povos e os seus governos a queiram, quer não. Os furiosos opositores do TINA (“There Is No Alternative”) têm aqui mais um motivo para rasgar as vestes: “prosperidade sem crescimento” pode estar a deixar de ser uma de entre várias opções, para passar a ser a única opção possível.
Há no livro de Jackson uma frase do economista Kenneth Boulding que resume muito bem aquilo que está em causa: “Alguém que acredite que o crescimento exponencial pode continuar infinitamente num mundo finito ou é louco ou é economista.” Na verdade, há uma terceira hipótese: pode ser louco, pode ser economista ou pode ser um autor de cenários macroeconómicos do Partido Socialista. Recordem-se os números pressupostos pelo grupo de Mário Centeno no seu documento Uma década para Portugal: crescimento de 2,4% em 2016 e de 3,1% em 2017 (ano em que Bruxelas prevê um crescimento de 1,7% do PIB); desemprego a baixar em 2016 para 12,2%, até chegar aos 7,4% em 2019. Os números do Governo são muito mais modestos e — temo bem — mais realistas: 11,1% de desemprego em 2019 e crescimentos nunca acima de 2,4% (ainda assim, bem mais generosos do que as projecções da Comissão Europeia). Ou seja, é graças a estes números espantosamente optimistas que o PS arranja folga para voltar a aumentar a despesa do Estado nas áreas que considera estratégicas.
Copo meio cheio: que bom que é estarmos a discutir estratégias e programas a quatro meses das eleições. Copo meio vazio: que mau que é continuarmos a discutir estratégias e programas a partir de cenários irrealistas, só para fingir que o país pode voltar ao que já foi. Não pode. Como escrevia recentemente José Carlos Fernandes num ensaio para o Observador sobre o capitalismo, “entre a Antiguidade e a Idade Média, estima-se que as taxas de crescimento tivessem rondado 0,05 a 0,1% ao ano. Durante milénios, o destino mais provável de cada novo ser humano vindo ao mundo seria viver exactamente como viveram os seus pais.” O desenvolvimento do comércio e a revolução industrial vieram mudar tudo isto, e o progresso tecnológico, felizmente, continua. Mas os crescimentos hercúleos no Primeiro Mundo já eram. Dêem-me programas de governo com crescimentos anémicos e as contas a baterem certo, se faz favor: não quero que metade das promessas eleitorais tenha de ir borda fora assim que a realidade começar a desmentir o optimismo destes números. Porque vai desmentir. E toda a gente o sabe.

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