sexta-feira, 12 de junho de 2015

Deslumbramentos



Mais um artigo de João César das Neves (in “A Bem da Nação”) que me parece extremamente ambíguo, incoerente e, afinal, de mensagem pouco clara, Voltaire deslumbrado, desdenhando o “bom selvagem” dos sentimentos primitivos puros, e reivindicando as vantajosas luzes da modernidade, incluindo a médica. Mas com esta acusação aos que acusam às cegas, (segundo diz, sem ideologia e sem olharem o futuro), creio que César das Neves se coloca no mesmo plano crítico, pois nada nos diz que contrarie esse jeito, ele próprio acusador acérrimo dos que, não satisfeitos com o Mal, o apontam, como fez Cristo aos vendilhões do templo, e que, em todos os tempos, é motivo de sátira ou de lamentação ou injúria.
Cabe aos vendilhões do templo recuar, ou, se o entenderem, acirrarem-se mais nos seus propósitos egoístas ou anárquicos. Não sei de que lado se coloca João César das Neves, mas suponho que a construção do futuro não tem que passar pela destruição do presente, nem do passado (do que dele resta), sendo que esta implica, certamente, a própria destruição (total) daquele, o nosso presente, a que César das Neves igualmente  pertence.

O QUE NÃO SE DIZ
Em tempos conturbados florescem ideologias. O mundo hoje vive uma mudança acelerada, com desenvolvimentos espantosos e possibilidades desconhecidas.
Chamamos "crise" ao nascimento de um mundo novo. Infelizmente, as dores de parto levam ao repúdio do inevitável.
A generalidade das opiniões acerca da conjuntura não fala de futuro, mas de culpas.
Analisar a evolução, compreender os problemas e determinar a abordagem é exigente, trabalhoso, complexo. Muito mais fácil e gratificante é enunciar apreciações dogmáticas, trocadilhos retóricos ou acusações morais, que parecem fundamentadas, mas desviam e evitam a questão. Ignoram-se as novidades preferindo-se descrever obsessivamente as supostas asneiras do Governo, Alemanha ou FMI e os vícios das terríveis doutrinas neoliberais ou keynesianas.
Assim se omite a realidade.
A atitude é como se alguém, esquecendo os avanços da medicina, atribuísse todas as doenças a falhas médicas e terapêuticas erradas.
Uma ideologia não é erro ou capricho, mas algo indispensável, pois não podemos enfrentar o mundo sem critérios. O mal está, não na doutrina, mas na sua absolutização, que leva a esquecer a presença da realidade e a validade das alternativas. Ter um modelo de pensamento é imprescindível, mas ele deve ser continuamente testado na evolução da existência, única referência decisiva, sobretudo em alturas de clivagem. Por outro lado nunca podemos esquecer que os adversários, precisamente por o serem, têm sempre muito a ensinar-nos.
Tempos de transformação e mudança afectam os interesses e hábitos estabelecidos. Por isso os movimentos ideológicos ganham maior relevância, afogando a sabedoria e o conhecimento. Não interessa o que acontece, mas os erros dos que lidam com o que acontece. Em vez de debater progresso, tecnologias e novidades, denunciam-se corruptos e especuladores, políticos e empresários. Troca-se a procura de novas possibilidades e produtividades pela invocação de direitos adquiridos e preconceitos caducos. Entretanto o mundo passa ao lado.
A cada momento ouvimos vítimas da crise explicar o seu sofrimento pela maldade ou estupidez dos dirigentes, sem procurar sequer entender o que realmente aconteceu. Pode ser compreensível, mas é negativo e ocioso. Prefere-se a ignorância indignada ao conhecimento da evolução. Não interessam as novas dinâmicas, só as antigas queixas.
Nessas alturas uma análise serena e ponderada dos acontecimentos é repudiada com violência e, paradoxalmente, acusada de ideologia. Porque a forma mais simples de calar o importuno é apelidá-lo de neoliberal, comunista, extremista, reaccionário ou qualquer coisa que nos dispense de considerar com atenção os seus argumentos. Apresentar um raciocínio, descrever um problema, formular uma conclusão dá muito trabalho, obriga a pensar e procurar uma resposta substancial. É mais barato descartar a elaboração rotulando o maçador. Em vez de um estudo compõe-se uma epopeia; no lugar de fundamentos jorram rapsódias, até afogar a discussão.
Implícita está a hipótese de que nunca um neoliberal ou comunista podem dizer algo de valor, que é impossível um extremista ou reaccionário ter razão. Claro que, se explicitada, esta tese surgiria logo como a tolice evidente que é. Mas ela nunca chega à conversa, ficando escondida atrás do floreado de comparações e exemplos, condenações e juízos, todos aparentemente esmagadores, mas sempre desviados do cerne da questão e dos termos concretos da realidade.
Outro elemento da polémica bombástica é o fascínio de pôr o dedo na ferida, atirar pedradas ao charco e acusar o rei nu. Isso até parece realista e há quem julgue salvar o país só por o fazer, afastando-se mais um pouco das questões relevantes do momento. Porque esse tipo de actividade só seria útil nos casos raríssimos de cegueira colectiva, pois normalmente as chagas doem, os charcos vêem-se e um nudista ressalta. Mas, como do alto da sua ideologia, o doutrinador se considera genial perante um mundo de corruptos especuladores, não admira que ache mesmo ser o único a descobrir a anomalia que julga denunciar. Também aqui domina a preguiça e oportunismo, pois é muito mais simples pisar a úlcera do que curá-la, apedrejar de longe do que drenar o pântano, acusar o cortejo do que governar o reino. Pior, os dedos só infectam, as pedras bloqueiam, os insultos irritam sem nada resolverem.
Vivemos um tempo maravilhoso, que modificará o mundo para sempre. A evolução não pára e, queiramos ou não, nela viveremos. Todos o sabem, mas não é disso que se fala.
João César das Neves,20 de Maio de 2015

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