Mais um artigo de João César das Neves (in “A Bem da
Nação”) que me parece extremamente ambíguo, incoerente e, afinal, de mensagem
pouco clara, Voltaire deslumbrado, desdenhando o “bom selvagem” dos sentimentos
primitivos puros, e reivindicando as vantajosas luzes da modernidade, incluindo
a médica. Mas com esta acusação aos que acusam às cegas, (segundo diz, sem
ideologia e sem olharem o futuro), creio que César das Neves se coloca no mesmo
plano crítico, pois nada nos diz que contrarie esse jeito, ele próprio acusador
acérrimo dos que, não satisfeitos com o Mal, o apontam, como fez Cristo aos
vendilhões do templo, e que, em todos os tempos, é motivo de sátira ou de
lamentação ou injúria.
Cabe aos vendilhões do templo recuar, ou, se o
entenderem, acirrarem-se mais nos seus propósitos egoístas ou anárquicos. Não
sei de que lado se coloca João César das Neves, mas suponho que a construção do
futuro não tem que passar pela destruição do presente, nem do passado (do que
dele resta), sendo que esta implica, certamente, a própria destruição (total)
daquele, o nosso presente, a que César das Neves igualmente pertence.
O QUE NÃO SE DIZ
Em tempos conturbados
florescem ideologias. O mundo hoje vive uma mudança acelerada, com
desenvolvimentos espantosos e possibilidades desconhecidas.
Chamamos
"crise" ao nascimento de um mundo novo. Infelizmente, as dores de
parto levam ao repúdio do inevitável.
A generalidade das
opiniões acerca da conjuntura não fala de futuro, mas de culpas.
Analisar a evolução,
compreender os problemas e determinar a abordagem é exigente, trabalhoso,
complexo. Muito mais fácil e gratificante é enunciar apreciações dogmáticas,
trocadilhos retóricos ou acusações morais, que parecem fundamentadas, mas
desviam e evitam a questão. Ignoram-se as novidades preferindo-se descrever
obsessivamente as supostas asneiras do Governo, Alemanha ou FMI e os vícios das
terríveis doutrinas neoliberais ou keynesianas.
Assim se omite a
realidade.
A atitude é como se
alguém, esquecendo os avanços da medicina, atribuísse todas as doenças a falhas
médicas e terapêuticas erradas.
Uma ideologia não é erro
ou capricho, mas algo indispensável, pois não podemos enfrentar o mundo sem
critérios. O mal está, não na doutrina, mas na sua absolutização, que leva a
esquecer a presença da realidade e a validade das alternativas. Ter um modelo
de pensamento é imprescindível, mas ele deve ser continuamente testado na
evolução da existência, única referência decisiva, sobretudo em alturas de
clivagem. Por outro lado nunca podemos esquecer que os adversários,
precisamente por o serem, têm sempre muito a ensinar-nos.
Tempos de transformação e
mudança afectam os interesses e hábitos estabelecidos. Por isso os movimentos
ideológicos ganham maior relevância, afogando a sabedoria e o conhecimento. Não
interessa o que acontece, mas os erros dos que lidam com o que acontece. Em vez
de debater progresso, tecnologias e novidades, denunciam-se corruptos e
especuladores, políticos e empresários. Troca-se a procura de novas
possibilidades e produtividades pela invocação de direitos adquiridos e
preconceitos caducos. Entretanto o mundo passa ao lado.
A cada momento ouvimos
vítimas da crise explicar o seu sofrimento pela maldade ou estupidez dos
dirigentes, sem procurar sequer entender o que realmente aconteceu. Pode ser
compreensível, mas é negativo e ocioso. Prefere-se a ignorância indignada ao
conhecimento da evolução. Não interessam as novas dinâmicas, só as antigas
queixas.
Nessas alturas uma
análise serena e ponderada dos acontecimentos é repudiada com violência e,
paradoxalmente, acusada de ideologia. Porque a forma mais simples de calar o
importuno é apelidá-lo de neoliberal, comunista, extremista, reaccionário ou
qualquer coisa que nos dispense de considerar com atenção os seus argumentos.
Apresentar um raciocínio, descrever um problema, formular uma conclusão dá
muito trabalho, obriga a pensar e procurar uma resposta substancial. É mais
barato descartar a elaboração rotulando o maçador. Em vez de um estudo
compõe-se uma epopeia; no lugar de fundamentos jorram rapsódias, até afogar a
discussão.
Implícita está a hipótese
de que nunca um neoliberal ou comunista podem dizer algo de valor, que é
impossível um extremista ou reaccionário ter razão. Claro que, se explicitada,
esta tese surgiria logo como a tolice evidente que é. Mas ela nunca chega à
conversa, ficando escondida atrás do floreado de comparações e exemplos,
condenações e juízos, todos aparentemente esmagadores, mas sempre desviados do
cerne da questão e dos termos concretos da realidade.
Outro elemento da
polémica bombástica é o fascínio de pôr o dedo na ferida, atirar pedradas ao
charco e acusar o rei nu. Isso até parece realista e há quem julgue salvar o
país só por o fazer, afastando-se mais um pouco das questões relevantes do
momento. Porque esse tipo de actividade só seria útil nos casos raríssimos de
cegueira colectiva, pois normalmente as chagas doem, os charcos vêem-se e um
nudista ressalta. Mas, como do alto da sua ideologia, o doutrinador se
considera genial perante um mundo de corruptos especuladores, não admira que
ache mesmo ser o único a descobrir a anomalia que julga denunciar. Também aqui
domina a preguiça e oportunismo, pois é muito mais simples pisar a úlcera do
que curá-la, apedrejar de longe do que drenar o pântano, acusar o cortejo do
que governar o reino. Pior, os dedos só infectam, as pedras bloqueiam, os
insultos irritam sem nada resolverem.
Vivemos um tempo
maravilhoso, que modificará o mundo para sempre. A evolução não pára e,
queiramos ou não, nela viveremos. Todos o sabem, mas não é disso que se fala.
João César das Neves,20
de Maio de 2015
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