É a propósito dos governos da nossa miséria, para
referir nas campanhas eleitorais, que Vasco Pulido Valente se passeia
até aos tempos de Salazar, da “pesada herança”. É certo. A Simone de Beauvoir bem
o disse, com sanha de prosélita defensora da linha marxista, tendo-o descoberto
no seu passeio a Espanha e a Portugal - onde se locupletou e beneficiou de
roupas e calçado e bons almoços, que faltavam no seu país há pouco liberto - o ar penoso e esfomeado do povo, as crianças descalças
cobertas de parasitas, o sol e a luz iluminando os quadros da miséria crassa. Tem
razão. Mas também não é justo quedar-se por aí, por Salazar. Há referências de estrangeiros a pormenores
desses, de contrastes entre as classes, de vaidades e arrogâncias anedóticas já
desde os tempos medievais, os escritores mais comedidos, na elevação dos seus
temas, o século XIX despenhando-se, esse sim, em referências de pormenores mais
acerbamente sórdidos e realistas, ou mais dulcificadamente românticos, ou mesmo
simbolistas do nosso agrado e sensibilidade. É claro que os escritores neo
realistas não perderam pitada do que por cá se passava no tempo de Salazar,
este estava-lhes atravessado, e não perderam tempo, só que com menos arte que
os do século XIX.
Vejamos:
(Cesário Verde):
(“Em Petiz”)
Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros, Ou que a poeira no
suor mascarra, Chegam das feiras a tocar guitarra, Rolam os olhos como dois
escarros!
E os pobres metem medo! Os de marmita, Para forrar, por ano,
alguns patacos, Entrapam-se nas mantas com buracos, Choramingando, a voz
rachada, aflita.
Outros pedincham pelas cinco chagas; E no poial, tirando as
ligaduras, Mostram as pernas pútridas, maduras, Com que se arrastam pelas
azinhagas!
Querem viver! E picam-se nos cardos; Correm as vilas; sobem
os outeiros; E às horas de calor, nos esterqueiros, De roda deles zumbem os
moscardos.
Aos sábados, os monstros, que eu lamento, Batiam ao portão
com seus cajados; E um aleijado, com os pés quadrados, Pedia-nos de cima de um
jumento.
O resmungão! Que barbas! Que sacolas! Cheirava a migas, a
bafio, a arrotos; Dormia as noutes por telhados rotos, E sustentava o burro a
pão de esmolas………
Guerra Junqueiro («Os Simples»)
Pobres de pobres são
pobrezinhos, Almas sem lares, aves sem
ninho..
Passam em bandos, em
alcateias, Pelas herdades, pelas aldeias.
É em Novembro, rugem
procelas... Deus nos acuda, nos livre
delas!
Vêm por desertos, por
estevais, Mantas aos ombros, grandes
bornais.
Como farrapos, coisas
sombrias, Trapos levados nas
ventanias...
Filhos de Cristo, filhos de
Adão, Buscam no mundo côdeas de pão!
Há-os ceguinhos, em treva
densa, D’olhos fechados desde
nascença
Há-os com feridas esburacadas,
Roxas de lírios, já gangrenadas.
Uns de voz rouca, grandes
bordões, Quem sabe lá se serão
ladrões!...
Outros humildes, riso magoado,
Lembram Jesus que ande disfarçado...
Enjeitadinhos, rotos, sem pão, Tremem maleitas d’olhos no chão...
Campos e vinhas!... hortas com
flores!... Ai, que ditosos os lavradores!
Olha, fumegam tectos e
lares... Fumo tão lindo!... branco nos
ares!...
Batem às portas, erguem-se as
mães, Choram meninos, ladram os
cães...
Rezam e cantam, levam a
esmola, Vinho no bucho, pão na sacola.
Fruto da horta, caldo ou
toucinho, Dão sempre os pobres a um
pobrezinho.
Um que tem chagas, velho
coitado, Quer ligaduras ou mel-rosado.
Outro, promessa feita a Maria,
Deitam-lhe azeite na almotolia.
Pelos alpendres, pelos
currais, Dormem deitados como animais.
Em caravanas, em alcateias,
Vão por herdades, vão por aldeias...
Sabem cantigas, oraçõezinhas,
Contos d’estrelas, rei e rainhas....
Choram cantando, penam
rezando, Ai, só a morte sabe até
quando!
Mas no outro mundo Deus lhes
prepara Leito o mais alvo, ceia a mais
rara...
Os pés doridos lhos lavarão
Santos e santas, com devoção!
Para lavá-los perfumaria
Em gomil d’ouro, d’ouro a bacia,
E embalsamados,
transfigurados, Túnicas brancas, como em
noivados,
Viverão sempre na eterna luz
Pobres benditos, amem, Jesus!...
António Nobre («Só»):
À porta dum casal. um tísico na cama, Olha
tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo, E uma netinha com um ramo de loureiro
Enxota as moscas do moribundo. Dança de roda moças o coveiro. Clama um
ceguinho: «Não há maior desgraça nesta vida, que ser ceguinho!» Outro moreno,
mostra uma perna partida! Mas fede tanto, coitadinho... Este, sem braços, diz
«que os deixou na pedreira...» E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira, Que o sol atiça e que a gangrena apaga, Ó
Georges, vê! que excepcional cravina...
Que
lindos cravos para pôr na botoeira! Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires! Cães! Dálias de pus!
Olhos-fechados! Reumáticos! Anões! Delíriums-tremens! Quistos! Monstros,
fenómenos, aflitos, aleijados, Talvez lá dentro com perfeitos corações: Todos,
à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam «uma esmolinha pelas alminhas Das suas obrigações!» Pelo nariz
corre-lhes pus, gangrena, ranho! E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar...
Que é dos Pintores do meu país estranho, Onde estão eles que não me vêm pintar?
Augusto Gil
(Balada da neve):
…
Fico olhando esses sinais da pobre gente que avança, e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais duns pezitos de criança...
E
descalcinhos, doridos... a neve deixa inda vê-los, primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos, porque não podia erguê-los!...
Que
quem já é pecador sofra tormentos, enfim! Mas as crianças, Senhor, porque lhes
dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!...
E Eça, e Fialho, e Raul Brandão… Não, a herança pesada
é muito antiga, tem muito a ver com os nossos jeitos de mândria, miserabilismo e
analfabetismo que Eça tão excelsamente traduz. As colónias terão sido causa de
ruína, segundo Pulido Valente, esquecido do que representaram em ganhos para
tantos da metrópole, e das colónias também. Esgotado o pecúlio após a
revolução, com dinheiros estrangeiros fizeram-se obras vistosas, o país
gastou-o muito em exterioridades e arruinou-se, por processos vários. Segue-se
que esta “Outra História” de Vasco Pulido Valente me parece pouco
criteriosa, no espalhafato de uma referência que o bom senso aconselharia a
riscar de vez, sobretudo após quarenta anos de tanta manobra desencaminhadora
de dinheiros alheios em proveito próprio, acusação que jamais poderá ser imputada
a Salazar, embora, é certo, hoje em dia isso já nem pese grandemente nas
consciências da liberdade conquistada:
Outra História
Vasco Pulido Valente
Público, 7/6/15
Algumas
pessoas descobriram agora que uma campanha eleitoral decente exigia que se
fizesse a história não só do governo de Sócrates mas também do governo de
Passos Coelho Infelizmente, ninguém se lembrou ainda que a mais leve
compreensão da “crise” tem dfe começar muito antes na “pesada herança”
(verdadeiramente pesada) que nos legou Salazar. Além de uma guerra colonial em
Angola Moçambique e Guiné e de um exército monstruoso, tecnicamente atrasado, a
sociedade que Salazar nos legou (fora meia dúzia de enclaves em Lisboa e no
Porto) era uma sociedade arcaica. De resto, para a esmagadora maioria da
população, não havia nada: não havia saneamento básico ou água corrente; não
havia electricidade; não havia hospitais nem centros de saúde; não havia uma
rede escolar decente; não havia qualquer espécie de segurança social; não havia
estradas; não havia transportes; e, tirando a PIDE e a GNR, não havia polícia.
Um
milhão de portugueses vivia e trabalhava na Europa e a Europa acabou
naturalmente por se tornar o modelo de sociedade que eles queriam ou com que
sonhavam. O que implicava “desenvolver” o país, uma política maldita que
Salazar sempre recusara por convicção ideológica e, a partir de 1961, por causa
de África. Ora o “desenvolvimento” do país tinha de ser pago e suportado pelo
Estado. O défice perene das contas portuguesas desde 1975 vem dessa necessidade
imperativa. Mas, sem isso, não valia a pena pensar em democracia, como o
próprio Cavaco percebeu. Claro que se cometeram erros sobre erros nessa
esmagadora obra de “modernizar Portugal”; e claro que, fora a gente com
competência técnica imediatamente indispensável, entrou de roldão no Estado uma
turba de inúteis, que passou a comer à nossa custa.
Mas,
durante quase meio século, as coisas foram andando (com um sobressalto ou
outro) sem nenhum desastre de maior. Só o “fenómeno Sócrates”, que não é
simplesmente um efeito do indivíduo Sócrates, conseguiu arruinar o difícil
equilíbrio que até ali nos sustentara. Em 2007-8, já geralmente se sentia uma
certa impaciência com a situação do país, que não crescia e, apesar de
incessantes promessas, não se “modernizava”. A “poesia” da qualificação, da
ciência e da cultura – historicamente um péssimo sinal – reapareceu com
estrondo; e a megalomania de Sócrates, com dinheiro emprestado, tentou fabricar
a aparência de um “progresso” falso, mas vistoso. A bancarrota, claro, chegou
depressa. O Portugal de 2015 precisa de pagar as dívidas. Só que as dívidas não
são o ponto decisivo. O ponto decisivo é meter solidamente na cabeça que o
caminho para a Europa pede muito esforço, alguma pobreza e, sobretudo, muitas
reformas.
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