quarta-feira, 17 de junho de 2015

“Sociedade arcaica” a de Salazar



É a propósito dos governos da nossa miséria, para referir nas campanhas eleitorais, que Vasco Pulido Valente se passeia até aos tempos de Salazar, da “pesada herança”. É certo. A Simone de Beauvoir bem o disse, com sanha de prosélita defensora da linha marxista, tendo-o descoberto no seu passeio a Espanha e a Portugal - onde se locupletou e beneficiou de roupas e calçado e bons almoços, que faltavam no seu país há pouco liberto -  o ar penoso e esfomeado do povo, as crianças descalças cobertas de parasitas, o sol e a luz iluminando os quadros da miséria crassa. Tem razão. Mas também não é justo quedar-se por aí, por Salazar.  Há referências de estrangeiros a pormenores desses, de contrastes entre as classes, de vaidades e arrogâncias anedóticas já desde os tempos medievais, os escritores mais comedidos, na elevação dos seus temas, o século XIX despenhando-se, esse sim, em referências de pormenores mais acerbamente sórdidos e realistas, ou mais dulcificadamente românticos, ou mesmo simbolistas do nosso agrado e sensibilidade. É claro que os escritores neo realistas não perderam pitada do que por cá se passava no tempo de Salazar, este estava-lhes atravessado, e não perderam tempo, só que com menos arte que os do século XIX.
Vejamos:

(Cesário Verde):
 (“Em Petiz”)
Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros, Ou que a poeira no suor mascarra, Chegam das feiras a tocar guitarra, Rolam os olhos como dois escarros!
E os pobres metem medo! Os de marmita, Para forrar, por ano, alguns patacos, Entrapam-se nas mantas com buracos, Choramingando, a voz rachada, aflita.
Outros pedincham pelas cinco chagas; E no poial, tirando as ligaduras, Mostram as pernas pútridas, maduras, Com que se arrastam pelas azinhagas!
Querem viver! E picam-se nos cardos; Correm as vilas; sobem os outeiros; E às horas de calor, nos esterqueiros, De roda deles zumbem os moscardos.
Aos sábados, os monstros, que eu lamento, Batiam ao portão com seus cajados; E um aleijado, com os pés quadrados, Pedia-nos de cima de um jumento.
O resmungão! Que barbas! Que sacolas! Cheirava a migas, a bafio, a arrotos; Dormia as noutes por telhados rotos, E sustentava o burro a pão de esmolas………

Guerra Junqueiro («Os Simples»)
Pobres de pobres são pobrezinhos, Almas sem lares, aves sem ninho..
Passam em bandos, em alcateias, Pelas herdades, pelas aldeias.
É em Novembro, rugem procelas... Deus nos acuda, nos livre delas!
Vêm por desertos, por estevais, Mantas aos ombros, grandes bornais.
Como farrapos, coisas sombrias, Trapos levados nas ventanias...
Filhos de Cristo, filhos de Adão, Buscam no mundo côdeas de pão!
Há-os ceguinhos, em treva densa, D’olhos fechados desde nascença
Há-os com feridas esburacadas, Roxas de lírios, já gangrenadas.
Uns de voz rouca, grandes bordões, Quem sabe lá se serão ladrões!...
Outros humildes, riso magoado, Lembram Jesus que ande disfarçado...
 Enjeitadinhos, rotos, sem pão, Tremem maleitas d’olhos no chão...
Campos e vinhas!... hortas com flores!... Ai, que ditosos os lavradores!
Olha, fumegam tectos e lares... Fumo tão lindo!... branco nos ares!...
Batem às portas, erguem-se as mães, Choram meninos, ladram os cães...
Rezam e cantam, levam a esmola, Vinho no bucho, pão na sacola.
Fruto da horta, caldo ou toucinho, Dão sempre os pobres a um pobrezinho.
Um que tem chagas, velho coitado, Quer ligaduras ou mel-rosado.
Outro, promessa feita a Maria, Deitam-lhe azeite na almotolia.
Pelos alpendres, pelos currais, Dormem deitados como animais.
Em caravanas, em alcateias, Vão por herdades, vão por aldeias...
Sabem cantigas, oraçõezinhas, Contos d’estrelas, rei e rainhas....
Choram cantando, penam rezando, Ai, só a morte sabe até quando!
Mas no outro mundo Deus lhes prepara Leito o mais alvo, ceia a mais rara...
Os pés doridos lhos lavarão Santos e santas, com devoção!
Para lavá-los perfumaria Em gomil d’ouro, d’ouro a bacia,
E embalsamados, transfigurados, Túnicas brancas, como em noivados,
Viverão sempre na eterna luz Pobres benditos, amem, Jesus!...

António Nobre («Só»):
   À porta dum casal. um tísico na cama, Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo, E uma netinha com um ramo de loureiro Enxota as moscas do moribundo. Dança de roda moças o coveiro. Clama um ceguinho: «Não há maior desgraça nesta vida, que ser ceguinho!» Outro moreno, mostra uma perna partida! Mas fede tanto, coitadinho... Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...» E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga, Labareda de cancros em fogueira, Que o sol atiça e que a gangrena apaga, Ó Georges, vê! que excepcional cravina...
Que lindos cravos para pôr na botoeira! Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina! Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados! Reumáticos! Anões! Delíriums-tremens! Quistos! Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados, Talvez lá dentro com perfeitos corações: Todos, à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, uivam «uma esmolinha pelas alminhas Das suas obrigações!» Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho! E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar... Que é dos Pintores do meu país estranho, Onde estão eles que não me vêm pintar?
Augusto Gil
(Balada da neve):
… Fico olhando esses sinais da pobre gente que avança, e noto, por entre os mais, os traços miniaturais duns pezitos de criança...
E descalcinhos, doridos... a neve deixa inda vê-los, primeiro, bem definidos, depois, em sulcos compridos, porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecador sofra tormentos, enfim! Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!...

E Eça, e Fialho, e Raul Brandão… Não, a herança pesada é muito antiga, tem muito a ver com os nossos jeitos de mândria, miserabilismo e analfabetismo que Eça tão excelsamente traduz. As colónias terão sido causa de ruína, segundo Pulido Valente, esquecido do que representaram em ganhos para tantos da metrópole, e das colónias também. Esgotado o pecúlio após a revolução, com dinheiros estrangeiros fizeram-se obras vistosas, o país gastou-o muito em exterioridades e arruinou-se, por processos vários. Segue-se que esta “Outra História” de Vasco Pulido Valente me parece pouco criteriosa, no espalhafato de uma referência que o bom senso aconselharia a riscar de vez, sobretudo após quarenta anos de tanta manobra desencaminhadora de dinheiros alheios em proveito próprio, acusação que jamais poderá ser imputada a Salazar, embora, é certo, hoje em dia isso já nem pese grandemente nas consciências da liberdade conquistada:

Outra História
Vasco Pulido Valente
Público, 7/6/15
Algumas pessoas descobriram agora que uma campanha eleitoral decente exigia que se fizesse a história não só do governo de Sócrates mas também do governo de Passos Coelho Infelizmente, ninguém se lembrou ainda que a mais leve compreensão da “crise” tem dfe começar muito antes na “pesada herança” (verdadeiramente pesada) que nos legou Salazar. Além de uma guerra colonial em Angola Moçambique e Guiné e de um exército monstruoso, tecnicamente atrasado, a sociedade que Salazar nos legou (fora meia dúzia de enclaves em Lisboa e no Porto) era uma sociedade arcaica. De resto, para a esmagadora maioria da população, não havia nada: não havia saneamento básico ou água corrente; não havia electricidade; não havia hospitais nem centros de saúde; não havia uma rede escolar decente; não havia qualquer espécie de segurança social; não havia estradas; não havia transportes; e, tirando a PIDE e a GNR, não havia polícia.
Um milhão de portugueses vivia e trabalhava na Europa e a Europa acabou naturalmente por se tornar o modelo de sociedade que eles queriam ou com que sonhavam. O que implicava “desenvolver” o país, uma política maldita que Salazar sempre recusara por convicção ideológica e, a partir de 1961, por causa de África. Ora o “desenvolvimento” do país tinha de ser pago e suportado pelo Estado. O défice perene das contas portuguesas desde 1975 vem dessa necessidade imperativa. Mas, sem isso, não valia a pena pensar em democracia, como o próprio Cavaco percebeu. Claro que se cometeram erros sobre erros nessa esmagadora obra de “modernizar Portugal”; e claro que, fora a gente com competência técnica imediatamente indispensável, entrou de roldão no Estado uma turba de inúteis, que passou a comer à nossa custa.
Mas, durante quase meio século, as coisas foram andando (com um sobressalto ou outro) sem nenhum desastre de maior. Só o “fenómeno Sócrates”, que não é simplesmente um efeito do indivíduo Sócrates, conseguiu arruinar o difícil equilíbrio que até ali nos sustentara. Em 2007-8, já geralmente se sentia uma certa impaciência com a situação do país, que não crescia e, apesar de incessantes promessas, não se “modernizava”. A “poesia” da qualificação, da ciência e da cultura – historicamente um péssimo sinal – reapareceu com estrondo; e a megalomania de Sócrates, com dinheiro emprestado, tentou fabricar a aparência de um “progresso” falso, mas vistoso. A bancarrota, claro, chegou depressa. O Portugal de 2015 precisa de pagar as dívidas. Só que as dívidas não são o ponto decisivo. O ponto decisivo é meter solidamente na cabeça que o caminho para a Europa pede muito esforço, alguma pobreza e, sobretudo, muitas reformas.

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