São ambos temas nacionais, os dos artigos de Vasco
Pulido Valente e de Alberto Gonçalves.
O de Vasco Pulido Valente, em “A grande evasão”,
refere um país no seu rumo de diversão apenas, na pobreza espiritual
desesperante, que se limita ao futebol, ao folclore, aos fumeiros e mais
cozinhados dos apetites populares, segundo ele “a grande evasão” da nossa
realidade doméstica, no absoluto desespero do país, cujo delírio de futilidade
perversa a televisão favorece, em tacanhez e desprezo pelo seu papel formador. O de Alberto Gonçalves – “José e os delírios
de grandeza” - refere o caso da pulseira electrónica e seu
aproveitamento pelo ex-ministro para mais um desfeitear do Governo que ele
abomina e rebaixa com a sagaz recusa em aceitar aquela.
Os textos:
A grande evasão
Vasco Pulido Valente
Público,
6/6/15
«O treinador do Benfica mudou-se para o Sporting.
Isto bastou para provocar uma polémica nacional. Parecia que o Presidente da
República tinha morrido ou que o dr. Costa se tinha demitido do PS.
As televisões não pararam de falar do caso como se o
resto do mundo não existisse e os jornais também não falaram de outra coisa,
com a esperança absurda de que o “escândalo” lhes fizesse subir as vendas. Não
houve injúria, acusação ou ignomínia que se poupasse de lado a lado. A fúria e
até o ódio rebentavam por toda a parte. Alguns políticos, como sempre,
manifestaram o seu espanto e a sua indignação. Outros não hesitaram em se meter
na polémica. Mas nem um único verdadeiramente percebeu o que se passava: os
portugueses transferiram as suas paixões gregárias do desesperado destino do
país para o futebol.
E não só para o futebol. Quem for lendo com
paciência a imprensa indígena acaba por verificar que a maior parte do espaço é
reservado a hotéis, férias, restaurantes, chefs e receitas. São páginas atrás
de páginas de cozinha regional e gourmet, de mesas postas com os requintes da
arte, de fotografias de pratos artisticamente arranjados (com uma especial
atenção à cor e ao volume), de menus descritos com minúcia numa prosa suculenta
e rendida. Que será esta extravagância num país pobre e sem futuro? Anda
por aí gente capaz de pagar aqueles preços, que vivem na clandestinidade e nós
não conhecemos? E que gozo tira o leitor pelintra dessa exibição de riqueza e
“gosto”, em que nunca tocará? Ou o espectáculo só por si o consola da comida
“feita” e congelada, que a miséria lhe impõe?
O país deixou de acreditar no governo e na oposição.
Mas claramente gosta de se sentir parte de um “grupo”. Um “grupo” pequeno como
nas conferências, nos debates, nos simpósios, nas feiras, nos congressos, para
que diariamente o levam os chamados “organizadores de eventos”; ou, pelo
contrário, um grupo imenso congregado à volta de um cantor ou de uma “banda” de
música popular (normalmente com um nome inglês), que permite ao público uma
histeria branda, de acordo com a ordem pública e os nossos costumes. A desfilada destes génios, ou mais do que isso, é
contínua e no Verão, que está a chegar, inunda Portugal inteiro. Por causa do
turismo? Em parte. Mas desconfio que principalmente para se sentir “em comunidade”.
O futebol, a obsessão com a cozinha e os concertos de música popular são
três maneiras de resistir à realidade doméstica e ao desespero a que ela nos
reduziu. É uma evasão, uma grande evasão.»
“José e os delírios de
grandeza”
Alberto Gonçalves
14/6/15
«De início, as coisas sérias. É evidente que, embora
útil, a prisão preventiva traduz eventuais debilidades do sistema judicial, da
lentidão a certa arbitrariedade. É provável que os seus limites temporais
sejam excessivos. E é possível que constitua um recurso bastante menos
excepcional do que muitos especialistas súbitos garantem (16% do total de
presos). Mas nem por sombras isto desculpa que se levante um escândalo a
propósito, e só a propósito, da prisão preventiva de José Sócrates, que está longe
de ser o único em semelhante situação e é o último com motivos de queixa: não
sei porquê, cai mal a um ex-governante que nada fez para alterar a situação
considerá-la vergonhosa no exacto momento em que o atinge.
Vamos agora à parte lúdica. Desde logo, a recusa de
José Sócrates em trocar a cadeia pela pulseira electrónica no recato do lar não
prova a ilegalidade da detenção nem sugere inocência nenhuma. No máximo,
confirma a astúcia de quem conhece os pasmados receptivos a bazófias do género.
No mínimo, é o exercício de um direito e a suspeita de que as condições em
Évora não serão más de todo (se calhar "a fome e o frio" a que aludiu
a humanista Dra. Edite Estrela eram um exagero).
Além disso, um óbvio golpe promocional como a recusa
da pulseira não exibe necessariamente as firmes "convicções" de José
Sócrates, e se as exibe é abusivo confundi-las com rectidão de carácter. Olhe-se para a grande e para a pequena história, em
que não faltam calamidades cometidas por gente convicta, segura de que a sua
razão se sobrepõe à razão alheia. Evite-se dramatizar e evocar os vilões do
costume, de Átila a Hitler: é suficiente lembrar que as justificadas
críticas à confessa ausência de dúvidas em Cavaco Silva, um exemplo suave, não
se devem transformar na exaltação das virtudes de José Sócrates.
José Sócrates e os respectivos asseclas estão
convictos, aqui sim, da absoluta singularidade do antigo primeiro-ministro. No
governo, era o próprio a classificar cada acção sua, de um espirro a uma
decisão económica tipicamente desastrosa, de um "momento histórico".
E depois do governo é que se sabe: na retórica em vigor, José Sócrates é
caluniado, detido, encarcerado e perseguido por ser José Sócrates. A idolatria
é tal que não espanta que se lamente o "circo mediático" enquanto se
faz tudo para o alimentar, nem que se apele ao "regular funcionamento das
instituições" enquanto se tenta sabotá-las com afinco.
O problema da adoração cega de uma relativa
insignificância é a reacção oposta, leia-se o ódio desmesurado que a insignificância
também suscita. Se uns nunca acreditarão numa justiça que condene José
Sócrates, outros nunca aceitarão uma justiça que o absolva. O que é péssimo
para a justiça, mau para José Sócrates e assim-assim para o país, já habituado
a escapar por pouco aos delírios de grandeza do indivíduo. »
Relativamente ao primeiro artigo, entendo que ainda
bem que assim é, que coisas haja que exacerbem os encantamentos populares. O
povo afinal sabe como divertir-se e angariar fundos com o turismo. E os media fazem os possíveis
por o acompanhar, nas coreografias e nos petiscos, o futebol como
entretenimento constante no meio televisivo, para quem provavelmente se treina
em espírito a pontapear a vida. Ou tão só a cara-metade. Prova, pois, do valor
didáctico dessas constantes mesas redondas de eventos futebolísticos com que se
alimentam os gostos da nação, a par de outras comezainas e muita fofoca, de que
precisamos como do pão para a boca, acompanhado, é certo, dos mais sabores de
causar inveja aos nossos hábitos frugais. Mas a televisão é um vasto manancial
nos seus múltiplos canais, onde podemos colher outros espectáculos de muito
mais recreação, ainda que seja só nos noticiários, plenos de informação e
imagens do mundo.
Mas o desespero de Pulido Valente é o de um patriota
cuja inteligência crítica poderia ajudar a um virar de página nessa questão do
empenhamento cultural desses meios televisivos no nosso país, como se nota em
jornais e revistas como o Expresso ou o Público. Contudo, pouca importância
tem, pelos vistos, é pecha antiga nossa desprezar ensinamentos – como esse do
AO - muito embora programas haja de excelente recorte, como o Prós e Contras no
1º Canal.
Quanto à questão da pulseira de Sócrates já se sabia
que o Governo iria comer por tabela. Tive ocasião de escutar um pouco do Eixo
do Mal, e, como pensava, exceptuando Luís Pedro Nunes, todos foram unânimes em
pôr em causa uma vez mais – desta vez com o reforço da recusa socrática da
pulseira - a prisão de Sócrates, lembrando virtuosamente, com a seriedade das
pessoas muito dignas, a possível inocência daquele e o ridículo do Governo
falhado no seu recurso à benevolência, coisa que, evidentemente, não convence
Alberto Gonçalves, sabendo este detectar o vigarista por trás do jogador
despudorado que se esconde sob o seu ar de vítima que sabe muito bem onde e
como picar.
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