Um artigo de João César das Neves, Terra de Ninguém, transcrito no “A Bem
da Nação”, constitui análise serena, embora um tanto ambígua da história do “nosso Portugal” que para o narrador apenas nasceu em 25 de Abril de 74, o
que me deixou melindrada e direi mesmo humilhada, por ignorar o país a que de
facto pertenci antes dessa data, chegando ao ponto de me definir como apátrida,
e na mesma os filhos que me nasceram todos também anteriormente, é certo que em
terras que agora são definitivamente alheias, mas que estavam dadas como
nossas, desde os finais do século XV. Mas a ambiguidade de César das Neves não
se centra só no nosso Portugal recente, jovem de 41 anos, riscando todo Portugal passado – ancião de 831 anos vividos
em esforço vário - da nossa posse,
atribuindo-o a uma posse incógnita que deveria esclarecer. Para além do mais, a expressão “Terra de Ninguém” do seu zelo esclarecedor também se me afigura
altamente ambígua e mesmo vexatória. É certo que o Ulisses também se
identificou como “Ninguém”, perante Polifemo, mas por malandrice, para não se
ver em assados, à bulha com os mais
ciclopes, caso Polifemo lhe chamasse
outro nome quando gritou por socorro. Também o Romeiro se afirmou «Ninguém» ao
Frei Jorge que lhe adivinhou o nome, mas foi por um misto de orgulho, desprezo,
raiva e humilhação, é mais que sabido, e o caso não era para menos. Embora D.
Madalena de Vilhena tivesse todas as razões e mais algumas para refazer a sua
vida jovem, tanto mais que era mais que certo que o D. Sebastião não escapara
em Alcácer Quibir, e os seus acólitos com ele.
Todos nos sentimos muitas
vezes uns “Zés-Ninguém” na fossa, mas não é caso para um tal descalabro de uma designação
tão vilipendiosa- “Terra de Ninguém” - que não percebemos se se trata do Portugal
de antes, ou do Portugal de depois da data baliza. Pobre país ambíguo, tanto
relativamente ao espaço “Terra” como relativamente às Gentes inexistentes ou
desvalorizados num “Ninguém” sem safa de uma realidade puramente virtual.
Parece-me muito rebuscado.
Afinal, eu sinto orgulho em muitos desses “Ninguéns”, dos de outrora como dos
de agora. Em que posição se define César das Neves?
Terra de Ninguém
Para sentirmos a realidade virtual?
Sampaio da Nóvoa não existe
politicamente e provavelmente terminará a sua candidatura presidencial sem ter
chegado a existir.
Alguns, por lealdade ideológica, fingirão acreditar que o
estimável professor de História da Educação tem alguma coisa que ver com os
problemas do país, mas é claro que não tem e, pior, nem sequer parece ter.
Candidaturas há muitas, mas poucas manifestam tal distância
entre realidade e aparato. Como pode o Partido Socialista considerar seriamente
um candidato assim? No século do Twitter e Syriza, nem a esquerda mais
romântica se compadece com ingenuidades destas. Mas a escolha não foi por
engano, incúria ou falta de alternativas. Constitui uma consequência lateral da
estranha situação de impasse nacional que se vive há anos. A decadência já é
antiga, mas dois mandatos de captura de 2014 proclamaram inequivocamente o fim
definitivo do segundo Portugal europeu.
A esquerda tinha um líder natural, que dominou a cena
durante mais de dez anos. Por isso a detenção de José Sócrates, a 21 de
Novembro de 2014, um dos maiores choques políticos da história recente, criou
um vazio esmagador, anulando não apenas o próprio mas outros pretendentes
plausíveis. A grande vantagem de Sampaio da Nóvoa é precisamente nada ter que
ver com a governação dos últimos anos, agora salpicada pelos milhões do Grupo
Lena. Este episódio pessoal e partidário estão ligados à questão mais decisiva
da sociedade portuguesa contemporânea: vivemos nos escombros do segundo modelo
europeu.
O nosso Portugal nasceu a 25 de Abril de 1974 e teve de
encontrar uma identidade num mundo em intensa mudança. Passados os furores
revolucionários, a resposta surgiu evidente: o país precisava de ser membro da
Europa. Este foi o teorema formulado por Mário Soares em 1976 e concretizado
por Cavaco a partir de 1986. Assim nasceu o primeiro Portugal europeu,
conhecido como «bom aluno», atento, humilde e cumpridor. Falava-se muito de
desafios e da necessidade de trabalhar. O resultado surpreendeu todos: a
democracia foi estabilizada, a economia cresceu e a integração europeia
concretizou-se. No início da década de 1990, quando em Maastricht nascia a
União, o país já se sentia à vontade como membro: a Europa deixara de meter
respeito inquieto.
Daqui surgiu o segundo Portugal europeu, atrevido, ambicioso
e perdulário. Debaixo das facilidades financeiras permitidas pela participação
no euro, iniciou-se um crescimento baseado em dívida externa. Foram os tempos
de vida fácil, obras públicas e planos tecnológicos que levaram o endividamento
bruto a explodir de 28% do PIB em 1992 para 253% em 2012. O delírio foi
nacional e todos os sectores e classes nele participámos alegremente; mas
alguns estiveram mais ligados à orientação do processo.
Dos vinte anos que medeiam entre as assinaturas do Tratado
de Maastricht, a 7 de Fevereiro de 1992, e da carta de intenções à troika, a 17
de Maio de 2011, o PS governou 66% do tempo, atingindo com Sócrates a maioria
absoluta. Essa foi precisamente a época em que Ricardo Salgado se tornava o
«dono disto tudo». Por isso as duas detenções de 2014, de Salgado, a 24 de
Julho, e de Sócrates em Novembro, simbolizam a derrocada final do modelo.
Falhada a proposta, Portugal vive o impasse. Demorará anos até conhecer o seu
futuro na evolução mundial, o terceiro modelo de participação credível e
sustentada como país comunitário. Até lá, vivemos na terra de ninguém, indefinida
e desolada, nas ruínas do paradigma anterior e sob a ameaça de réplicas que
atinjam antigos dirigentes e das sequelas que condicionam o futuro.
Hesitante no caminho a tomar, a cena política pós-Sócrates é
dominado por duas propostas principais. A primeira, do campo anti austeridade
onde se move Sampaio da Nóvoa, propõe o recuo para o segundo Portugal europeu.
A hipótese implícita é que os credores não só aceitam a anulação da dívida
gigantesca, mas continuam a emprestar. Paradoxalmente, reúne consensos do Bloco
de Esquerda às ex-administrações do BES e PT.
A alternativa, esboçada no Programa de Estabilidade
2015-2019 do governo e no relatório "Uma Década para Portugal" do PS,
assume a travessia do deserto. A austeridade continua em anos de esforço, dureza
e ajustamento. A dívida deve ser digerida e os destroços precisam de ser
removidos, antes de se começar a construir o terceiro Portugal europeu,
provavelmente nos finais da década. Por muito realista que seja esta avaliação,
não admira que alguns prefiram a ficção política da generosa candidatura do
professor Sampaio da Nóvoa.
João
César das Neves, 13 de Maio de 2015
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