sexta-feira, 28 de julho de 2017

“Queria” ou “quer”?


Este artigo de Bagão Félix fez-me lembrar a sensaboria de alguns vendedores – de carne, sobretudo, passou-se mais nos talhos, gente forte, que vende bem, e por isso pode arrogar-se o direito de corrigir o freguês, talvez por brincadeira, talvez por superioridade - concedida pelo poder nutritivo e suculento que a boa carne fornece ao que a vende, que assim nutre sem reservas o corpo e a alma, que é como quem diz, a bolsa, pelo lucro que fornece. Por delicadeza, pois, em vez do “quero” assertivo e autoritário, uso, ao pedir, nos talhos, o imperfeito “Queria” e já várias vezes sou emendada: “Queria ou quer?” corrige o homem que me vai partir os bifes.
Por isso achei curioso este artigo de Bagão Félix sobre as anomalias verbais hodiernas, que repudiam o modo conjuntivo e outros tempos verbais, talvez por incúria, talvez por anulação da personalidade, nesta época democrática onde não há lugar para a opinião pessoal, ao que parece, é tudo corta a direito, tudo assertivo, sem o talvez da dúvida a exigir o conjuntivo inseguro.
Custa-me a crer que seja assim tão drástico. Não só porque a democracia permite que o talhante, orientado pelos ditames da morena Grândola, me corrija o imperfeito, delicado mas indiscutivelmente inseguro, mas porque ela ainda tem de reserva muitos exemplos comportamentais hodiernos de autoridade e mesmo de inflexibilidade exigentes do conjuntivo com os “quero que”, os “para que” dos objectivos ou os “ainda que” sobranceiros ou por vezes cínicos, além de que nas escolas ainda se continua a estudar as diversas formas verbais na sua variação múltipla, embora a ausência do estudo do latim lhes dificulte bastante o sentido.
Em todo o caso, o texto de Bagão Félix é extremamente enriquecedor, segundo uma orientação simultaneamente  graciosa e esclarecedora, que põe em confronto a dificuldade da nossa língua não despegada das suas origens, com a facilidade despretensiosa da conjugação verbal do inglês, o que a tornou língua universal por excelência, constantemente a enriquecer-se e a alastrar pelo mundo.

Tempos e silêncios
Público, 1 de Junho de 2017
António Bagão Félix
Há uns tempos, tive a oportunidade de ler um interessante texto de um editorialista italiano do “Corriere della Sera”, Beppe Severgnini sobre a crise – que eu diria estrutural – do modo verbal conjuntivo. Escreveu ele que o conjuntivo está moribundo. Não se trata, porém, de nenhum assassinato linguístico, de um suicídio premeditado ou induzido, ou de uma eutanásia idiomática. Trata-se, sobretudo, da desconsideração das ideias de dúvida, de incerteza ou de humildade (ou de todas em conjunto). Construir uma frase ou declaração com o verbo no modo conjuntivo precedido de “julgo que”, “penso que”, “creio que”, “talvez” e outras da mesma natureza cautelar está a cair em desuso. Hoje, fala-se categoricamente com a factualidade indicativa que não deixa margens para dúvidas. “Talvez ele faça bem aquele trabalho” é quase estigmático dando lugar ao “ele faz bem aquele trabalho”.
Há aqui também algo de preguiça. E de um modo facilitista de expressão. Muita gente pensará para quê fazer tanto esforço com o antipático do modo conjuntivo quando os outros o entendem em versão indicativa e redutora!
Por outro lado, a tendência para a supressão de modos e tempos verbais resulta do “contágio” do inglês, língua universal, bem mais simplificada neste âmbito e sem a nossa sofisticação.
Aliás, em português, há um tempo que quase se sumiu, a não ser por escrito e reportado a factos históricos. Refiro-me ao pretérito-mais-que-perfeito para traduzir um facto passado antes de um outro facto também passado (“quando cheguei à igreja, a missa acabara”).  Outra tendência irreversível (e, na minha opinião, empobrecedora) é a sistemática troca do futuro condicional pelo pretérito imperfeito do indicativo. Por que razão usar só um tempo verbal para dois modos de tempo? Pretérito ainda que imperfeito (“eu escrevia”) não é o mesmo que futuro ainda que condicional (“eu escreveria”)! O condicional exprime uma possibilidade dependente de uma condição, de uma dúvida ou de uma incerteza, ou, ainda, de uma gentileza (“poderia fazer o favor de me ajudar?”). Curiosas são frases que por vezes se lêem ou ouvem, com o pretérito imperfeito do indicativo, logo seguido do modo condicional (“ele era o Rei e ela seria a Rainha” ou “matava-o e morreria”).
Estamos vivendo uma avalanche de pseudo hegemonia dos factos (mesmo que não o sejam…). É a primazia crescente sobre a filosofia, a hermenêutica e sobre a necessidade de compreender as coisas. Mas é, de igual modo, uma expressão deste tempo onde quase tudo é efémero, virtual, rápido, descartável, ligeiro, superficial, inútil, supérfluo.
Pouca gente julga, considera, crê ou pensa. Muita gente sabe, transmite, comunica, tem a certeza. Como um amigo me dizia há tempos, a propósito de alguém que estava há longo tempo a tentar explicar uma situação, quando interpelado sobre se percebia o que estava a explicar, disse com sinceridade: “não, não percebo. Se tivesse percebido, não te explicava, dizia-te…”
Hoje quem se arrisca a usar o conjuntivo ou o condicional, corre o sério risco de ser visto como uma pessoa insegura. “Creio que seja deste modo”, “quem seria aquela pessoa?” cansam os mais convencidos que retorquirão “oh homem, deixa-te de creio e parece. As coisas são ou não são, ponto final”.
De certo modo ligado a esta questão verbal está o odiado silêncio, ainda que possa ser um modo inteligente ou humilde de alguém se exprimir. Numa qualquer reunião, quem não fala, simplesmente porque nada tem a acrescentar, comete o pecado da mudez pessoal ou profissional. É desqualificado, passa por ignorante ou incompetente.
Desconsideração do modo conjuntivo, do modo condicional, do modo de silêncio, afinal três vértices de um dos triângulos da vida hodierna.


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