Este artigo de Bagão Félix fez-me
lembrar a sensaboria de alguns vendedores – de carne, sobretudo, passou-se mais
nos talhos, gente forte, que vende bem, e por isso pode arrogar-se o direito de
corrigir o freguês, talvez por brincadeira, talvez por superioridade -
concedida pelo poder nutritivo e suculento que a boa carne fornece ao que
a vende, que assim nutre sem reservas o corpo e a alma, que é como quem diz, a
bolsa, pelo lucro que fornece. Por delicadeza, pois, em vez do “quero” assertivo
e autoritário, uso, ao pedir, nos talhos, o imperfeito “Queria” e já
várias vezes sou emendada: “Queria ou quer?” corrige o homem que me vai
partir os bifes.
Por isso achei curioso este
artigo de Bagão Félix sobre as anomalias verbais hodiernas, que repudiam o modo
conjuntivo e outros tempos verbais, talvez por incúria, talvez por anulação da
personalidade, nesta época democrática onde não há lugar para a opinião
pessoal, ao que parece, é tudo corta a direito, tudo assertivo, sem o talvez da
dúvida a exigir o conjuntivo inseguro.
Custa-me a crer que seja assim
tão drástico. Não só porque a democracia permite que o talhante, orientado pelos
ditames da morena Grândola, me corrija o imperfeito, delicado mas
indiscutivelmente inseguro, mas porque ela ainda tem de reserva muitos exemplos
comportamentais hodiernos de autoridade e mesmo de inflexibilidade exigentes do
conjuntivo com os “quero que”, os “para que” dos objectivos ou os “ainda que”
sobranceiros ou por vezes cínicos, além de que nas escolas ainda se continua a
estudar as diversas formas verbais na sua variação múltipla, embora a ausência
do estudo do latim lhes dificulte bastante o sentido.
Em todo o caso, o texto de
Bagão Félix é extremamente enriquecedor, segundo uma orientação simultaneamente
graciosa e esclarecedora, que põe em
confronto a dificuldade da nossa língua não despegada das suas origens, com a
facilidade despretensiosa da conjugação verbal do inglês, o que a tornou língua
universal por excelência, constantemente a enriquecer-se e a alastrar pelo
mundo.
Tempos e
silêncios
Público, 1 de Junho de
2017
António Bagão Félix
Há uns tempos, tive a
oportunidade de ler
um interessante texto de um editorialista italiano do “Corriere della Sera”,
Beppe Severgnini sobre a crise – que eu diria estrutural – do modo verbal
conjuntivo. Escreveu ele que o conjuntivo está moribundo. Não se trata,
porém, de nenhum assassinato linguístico, de um suicídio premeditado ou
induzido, ou de uma eutanásia idiomática. Trata-se, sobretudo, da
desconsideração das ideias de dúvida, de incerteza ou de humildade (ou de todas
em conjunto). Construir uma frase ou declaração com o verbo no modo
conjuntivo precedido de “julgo que”, “penso que”, “creio que”, “talvez” e
outras da mesma natureza cautelar está a cair em desuso. Hoje, fala-se
categoricamente com a factualidade indicativa que não deixa margens para
dúvidas. “Talvez ele faça bem aquele trabalho” é quase estigmático dando lugar
ao “ele faz bem aquele trabalho”.
Há aqui também algo de preguiça. E de um modo facilitista de expressão.
Muita gente pensará para quê fazer tanto esforço com o antipático do modo
conjuntivo quando os outros o entendem em versão indicativa e redutora!
Por outro lado, a tendência para a supressão de modos e tempos verbais
resulta do “contágio” do inglês, língua universal, bem mais simplificada neste
âmbito e sem a nossa sofisticação.
Aliás, em português, há um tempo que quase se sumiu, a não ser por escrito
e reportado a factos históricos. Refiro-me ao pretérito-mais-que-perfeito
para traduzir um facto passado antes de um outro facto também passado (“quando
cheguei à igreja, a missa acabara”). Outra tendência irreversível (e,
na minha opinião, empobrecedora) é a sistemática troca do futuro condicional
pelo pretérito imperfeito do indicativo. Por que razão usar só um tempo
verbal para dois modos de tempo? Pretérito ainda que imperfeito (“eu escrevia”)
não é o mesmo que futuro ainda que condicional (“eu escreveria”)! O
condicional exprime uma possibilidade dependente de uma condição, de uma dúvida
ou de uma incerteza, ou, ainda, de uma gentileza (“poderia fazer o favor de me
ajudar?”). Curiosas são frases que por vezes se lêem ou ouvem, com o
pretérito imperfeito do indicativo, logo seguido do modo condicional (“ele era
o Rei e ela seria a Rainha” ou “matava-o e morreria”).
Estamos vivendo uma avalanche de pseudo hegemonia dos factos (mesmo que não o sejam…). É a primazia crescente
sobre a filosofia, a hermenêutica e sobre a necessidade de compreender as
coisas. Mas é, de igual modo, uma expressão deste tempo onde quase tudo é
efémero, virtual, rápido, descartável, ligeiro, superficial, inútil, supérfluo.
Pouca gente julga, considera, crê ou pensa. Muita gente sabe, transmite,
comunica, tem a certeza. Como um amigo me dizia há
tempos, a propósito de alguém que estava há longo tempo a tentar explicar uma
situação, quando interpelado sobre se percebia o que estava a explicar, disse
com sinceridade: “não, não percebo. Se tivesse percebido, não te explicava,
dizia-te…”
Hoje quem se arrisca a usar o conjuntivo ou o condicional, corre o sério
risco de ser visto como uma pessoa insegura. “Creio que seja deste modo”, “quem seria aquela
pessoa?” cansam os mais convencidos que retorquirão “oh homem, deixa-te de
creio e parece. As coisas são ou não são, ponto final”.
De certo modo ligado a esta questão verbal está o odiado silêncio, ainda
que possa ser um modo inteligente ou humilde de alguém se exprimir. Numa
qualquer reunião, quem não fala, simplesmente porque nada tem a acrescentar,
comete o pecado da mudez pessoal ou profissional. É desqualificado, passa por
ignorante ou incompetente.
Desconsideração do modo conjuntivo, do modo
condicional, do modo de silêncio, afinal três vértices de um dos triângulos da
vida hodierna.
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