sábado, 22 de julho de 2017

Correcção, educação, coragem, competência, na definição do “homem livre”


Sendo práticas pouco habituais entre nós, desordeiros por excelência, e reivindicativos das nossas cores que ofuscam as demais, num sectarismo exaltado e irracional, a serenidade e firmeza de conceitos de Francisco Assis define-o como um ser livre e responsável, de uma maturidade intelectual que se revela não só nos artigos que escreve, como nas análises políticas em que intervém, sempre sóbrio e educado, trazendo-me ao pensamento, uma vez mais, a pergunta “Porque não foi escolhido para PR?”, ressaibos, é certo, das leituras policiais de Agatha Christie, e o seu misterioso título “Porque não pediram a Evans?”, “Why didn’t they ask Evans?” que eu traduzia do francês “Porque não perguntaram a Evans?” Oxalá ele responda que sim, um dia.

O Estado da Nação
Se há conclusão que se pode extrair do que se passou no último mês é que em diversas áreas subsiste um Portugal arcaico.
Público, 13 de Julho de 2017
Francisco Assis
Assisti de forma intermitente ao debate do Estado da Nação ontem levado a cabo no Parlamento. Essa intermitência impede-me a elaboração de um juízo devidamente fundamentado sobre a discussão aí travada. Não fiquei com má ideia do pouco que aí vi. O país continua a dispor de bons parlamentares e o confronto entre o governo e a oposição pareceu-me ter decorrido com a devida elevação e de molde a contribuir para o esclarecimento da opinião pública. O meu apreço pela democracia representativa, e em especial pela dimensão parlamentar da mesma, impele-me a uma especial exigência neste domínio. Compreendo que aqueles que à direita e à esquerda abominam a representação parlamentar olhem para este tipo de debates de outra forma. Não é porém o meu caso: congratulo-me sempre que os nossos governantes e os nossos parlamentares se revelam à altura das suas responsabilidades políticas.
Não há democracia sem consenso e sem dissenso. Um parlamento é o lugar onde se manifestam os diferentes pontos de vista próprios de uma sociedade plural, no respeito por um conjunto de regras indispensáveis à manutenção de uma democracia deliberativa. Esta pressupõe a devida articulação entre uma razão comunicacional e o reconhecimento do valor criativo do conflito. É por isso mesmo que não pode haver assuntos tabus no debate democrático, sob pena de se restringir ilegitimamente o campo da discussão pública.
O país vive um tempo assaz complexo. Por um lado, a economia cresce, o desemprego diminui, as finanças públicas parecem encaminhar-se para uma inédita situação de equilíbrio e as exportações atingem níveis elevados; por outro lado subsiste a sensação de que nada de essencial muda: os problemas estruturais permanecem, a dívida pública continua a ser uma das mais elevadas do mundo, os serviços públicos soçobram nos momentos decisivos e a austeridade sob novas formas continua a prevalecer. Paradoxalmente, os partidos que apoiavam a anterior solução governativa exprimem preocupação com a redução abrupta do investimento público e com a dimensão das cativações que afectam o normal funcionamento do Estado, ao passo que os partidos da extrema-esquerda fingem ignorar o quanto há de continuidade na presente política económica e orçamental face ao período anterior.
Os mais recentes acontecimentos ocorridos no nosso país ? a tragédia de Pedrógão e o episódio burlesco-dramático de Tancos ? confrontam-nos porém com uma realidade que não podemos ignorar. O país, apesar das boas novas que se anunciam no plano superficial, precisa de reformas profundas de modo a acautelar a modernização económica e a preservação de um Estado eficiente, quer nas suas funções directamente ligadas à soberania, quer naquelas que remetem para o domínio social.
Se há conclusão que se pode extrair do que se passou no último mês é que em diversas áreas subsiste um Portugal arcaico, alheio a qualquer cultura de exigência e profundamente subsidiário das velhas manhas de uma pobreza ancestral, pronto a ressurgir a cada instante menos feliz da nossa história. Por muito que se tente culpar a natureza, não é aceitável que num país europeu com o presente estádio de desenvolvimento técnico morram 64 pessoas num incêndio florestal. E nenhum argumento válido pode ser invocado para justificar a vergonhosa falta de segurança verificada num dos principais aquartelamentos militares do nosso país. Uma e outra questão remetem para um problema mais geral que tem que ver com o financiamento e a organização do Estado nas suas múltiplas vertentes.
Estou convencido de que há em Portugal um vasto consenso acerca da necessidade de garantir a existência de um Estado dotado dos devidos recursos, quer no domínio das funções soberanas, quer no plano de uma acção providencial. Nunca alimentei a tese de que a direita portuguesa se limita a defender um Estado mínimo, reduzido ao acautelamento dos deveres associados à manutenção da soberania, como nunca admiti que a esquerda se preocupasse exclusivamente com a dimensão social desse mesmo Estado.
Uma coisa é certa: esta é a altura própria para discutirmos com toda a profundidade qual deve ser o papel do Estado numa sociedade organizada de acordo com os princípios demo-liberais, como é aquela em que vivemos. Essa discussão obriga a uma reflexão sobre o financiamento, a dimensão e as prioridades desse mesmo Estado.
Verdadeiramente, quem tem de responder de forma adequada a esta questão são aqueles que se reconhecem num modelo de organização política, económica e social que valoriza simultaneamente a importância da livre iniciativa individual e a necessidade de um Estado activo, no sentido de garantir a segurança dos indivíduos e de promover a igualdade de oportunidades e a solidariedade social. Para esses é evidente que o país precisa de reformas e que a mera gestão do quotidiano, por muito bonançosas que sejam as circunstâncias económicas, não constitui uma resposta aceitável. Continuo a pensar que o problema da presente solução governativa consiste, pela própria natureza da maioria parlamentar que a suporta, na sua estrutural incapacidade de se projectar para além do domínio da gestão conjuntural. Nessa perspectiva, a corajosa opção que o governo tem demonstrado pela fidelidade à opção europeia torna ainda mais evidente o carácter contraditório da solução político-parlamentar em que se alicerça. Não será aliás por acaso que o PCP continua impunemente a ofender a memória de várias décadas da acção política do PS, identificando-a sumariamente com aquilo que designa, com o seu proverbial sectarismo, como “as políticas da direita”, e que o Bloco de Esquerda procura acentuar a desconformidade entre os compromissos europeus e o negócio político fundador da presente maioria parlamentar.
O país pós-Pedrógão e pós-Tancos não é substancialmente distinto do que era há dois meses, e, como já aqui escrevi na semana passada, o que sucedeu nestes dois casos poderia ter ocorrido noutro tempo com qualquer outro governo. Esse é que é o nosso drama. Drama esse que tenderá a perpetuar-se na situação de impasse em que o país subsiste. Lamento dizê-lo, mas continuo a pensar que os entendimentos contranatura não permitem mais do que três coisas: gestão, propaganda e adiamento. O PS, por si só, seria capaz de muito mais do que isso.

2. Na semana passada referi-me a uma carta que enviei ao ministro dos Negócios Estrangeiros e que até àquela data não tinha merecido qualquer resposta. A esse propósito falei de falta de cortesia. O Ministro Augusto Santos Silva veio, entretanto, dizer que essa carta não foi recebida no MNE. Ora, uma carta não recebida não poderia logicamente ser respondida. O ministro dos Negócios Estrangeiros teve aliás a cortesia de solicitar ao seu gabinete que contactasse o meu a fim de esclarecer o assunto. É um gesto que registo com agrado. Significa que temos um ministro dos Negócios Estrangeiros que alia a educação às excepcionais qualidades de inteligência e de competência que nunca deixamos de lhe reconhecer.

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