sexta-feira, 14 de julho de 2017

Recursos pejorativos

Recursos pejorativos
E, no entanto, o trabalho torna o homem mais vertical, apesar da “obliquidade” e frieza da designação “recurso”, na expressão justamente crítica de Bagão Félix, aplicada ao homem coisificado, equiparado aos demais recursos, roda ou tubo numa engrenagem de múltiplos mecanismos.
 Mas não acho uma expressão ofensiva. A mulher que limpa as casas, o professor que ensina, o médico que ajuda a salvar da doença, o pedreiro que trabalha na calçada, uns de picareta, outros guiando o tractor, o que repara os carros, o sapateiro que fabrica os sapatos… tantos, e sem esquecer os que governam, e os cientistas e os artífices e os artistas, todos são recursos de que dependem os outros recursos, mesmo os materiais que os «recursos humanos» inventaram, maiores entre todos, por muito esmagados que sejam na máquina infernal de que constitui pura célula, mas com o poder da sua capacidade de decisão, “roseau pensant” na expressão clássica.
 O problema está, de facto, na exploração astuciosa e profundamente egoísta e vexatória dos que, estando na mó de cima, esmagam os das mós de baixo, sem pensarem senão em si próprios para a repartição das benesses e dos lucros e isso é profundamente injusto.
Mas, não fora o trabalho, e o homem morreria de tédio, sem objectivos, ou mataria, para se distrair, ou entregar-se-ia ao vazio de uma existência vegetativa. E isso seria mais monstruoso ainda do que o egoísmo explorador e parasita dos que, estupidamente, se julgam acima de todos os poderes e direitos, abusando daqueles a quem, afinal, recorrem para aumentar o seu lucro. A própria mulher também lutou por ele, pelo trabalho fora de casa, pela sua igualdade de direitos, pelo companheirismo e a chamada “realização pessoal”, que se diz que o trabalho concede.
Ao contrário da frieza das expressões com que são designadas as pessoas, puros recursos equiparados aos objectos, creio que, sem o borbulhar do trabalho, a Terra seria um deserto iníquo de prostração e inércia. O homem ou a mulher como recurso, sendo este expressão cínica e desumanizadora, não deixa de ser real, e forma quadros bonitos de ternura, na mão que se estende ao filho pequeno ou ao apoio ao desamparado.
Mas o artigo de Bagão Félix é, de facto, pertinente, e foram vários os comentadores que não resisto a transcrever, na sua justeza:

Público, 6 de Julho de 2017
Recursos humanos: uma expressão oblíqua
Nas empresas e organizações, a expressão “recursos humanos” está generalizada para designar as pessoas. Ele é recursos financeiros, ele é recursos informáticos, ele é recursos materiais, ele é recursos tecnológicos, ele é recursos naturais, ele é, enfim e às vezes só no fim, recursos humanos. Ou seja, meios, instrumentos para uma determinada finalidade. Historicamente, saltámos do velho conceito marxiano de “força de trabalho” para esta perspectiva igualmente redutora. Bastaria, aliás, substituir a palavra mais suave de “recursos” pelo vocábulo sinónimo de “meios” para melhor se percepcionar, quanto às pessoas, quão discutível é a referida expressão.
Aliás, podemos ler sinceras explicações sobre Recursos Humanos ou o seu acrónimo (RH). Transcrevo uma delas: “a primeira parte faz referência a Recursos que é um conjunto de elementos que se tem à disposição para resolver uma série de necessidades. A segunda parte – Humanos – é a adjectivação do termo que equipara com outros como os tecnológicos, os financeiros, etc.
É óbvio que os recursos das pessoas são humanos, mas as pessoas não são recursos (meios) humanos.  A tecnocrática expressão estendeu-se a tudo que diz respeito à gestão das organizações. De tal sorte que há uma crescente e preocupante tendência para ver as pessoas como componentes meramente instrumentais. E, ao mesmo tempo, evidenciando a natureza adjectiva como certos dirigentes vêem o trabalho (dos outros). Hoje a aridez e a impessoalidade com que, não raro, são tratadas as questões laborais é o sinal desta visão estritamente instrumental. Por isso agora, já não há despedimentos (de pessoas), antes há reestruturações (de organizações) ou, em inglês envergonhado e quantitativo, “downsizing
Esquece-se, amiúde, que o primeiro fundamento do valor do trabalho é a própria pessoa. É como pessoa que se é sujeito do trabalho. Logo o trabalho nem é um bem-mercadoria, nem um elemento impessoal da organização produtiva.
O trabalho tem uma dupla dimensão: objectiva e subjectiva. Objectivamente, enquanto noção económica e técnica, consiste no conjunto de actividades, meios, instrumentos e técnicas para a produção de bens e serviços. Na sua abordagem subjectiva, trata-se essencialmente de o ver à luz da inerente dignidade do trabalho, porque realizado por uma pessoa. É aqui que se exprime, em plenitude, a sua dimensão ética e deontológica. Esta visão humanista deveria sempre ter preeminência.
Com a globalização desregrada, tem-se acentuado a gestão das pessoas como mera gestão de recursos. O idadismo (ideologicamente significando a atitude preconceituosa e discriminatória com base na idade, levando ao descarte das pessoas ainda relativamente novas nas empresas), a tecnocracia economicista (ou seja, a prevalência dos meios, independentemente dos fins), o poder burocrático (uma forma gélida de separar meios e fins) têm conduzido a formas desumanizadas, senão mesmo de uma perigosa coisificação e robotização das pessoas, ora e apenas recursos.
De um modo quase metafórico, direi que os sistemas contabilísticos vêem as pessoas como custo na Conta de Exploração, mas ignoram-nas no activo dos Balanços (há excepções, como no caso das Sociedades Anónimas Desportivas… onde, todavia, se “vendem” e “compram” atletas chamados activos).
Os melhores decisores são os que vêem as pessoas segundo uma justa ética dos cuidados, que tem na sua base a riqueza da relação interpessoal, afastando a perspectiva impessoalizada, fria e mecânica, e reforçando uma actuação baseada na coordenação de saberes, de ideais, de aspirações, de valores (e não somente de recursos).  Como diz a doutrina social da Igreja, o trabalho é para o homem e não o homem (apenas) para o trabalho.

Comentários
C.Machado
Um tema muito interessante os Recursos Humanos(RH):
Em primeiro lugar gostaria de chamar a atenção para a circunstância de sempre ter havido muita preocupação com este tema. Posso indicar algumas referências:
– O filme de 1936 de Chaplin, “Os Tempos Modernos” sobre os efeitos da Organização do Trabalho do fordismo, com a cronometragem dos tempos na execução de tarefas nas linhas de montagem industriais. Um filme de grande impacto na altura e que passa regularmente nas Cinematecas de todo o mundo;
– O filme mais recente de 2000, “Recursos Humanos”, de Laurence Cantet. Novos problemas;
– O filme de Marco Martins, “São Jorge”, de 2016;
– O ensaio de Richard Stenner “A Corrupção do Carácter” (Trabalho, Flexibilização e Precarização);
– Os textos de João Freire sobre o tema Sociologia do Trabalho, com inspiração em Alain Touraine e Pierre Dubois, que produziram muita investigação no tema.
O que influencia hoje o tema dos RH:
Precarização do trabalho, nomeadamente na oferta do mercado de trabalho aos jovens;
A financeirização da economia, proveniente da desregulação dos mercados financeiros, trouxe a impotência do poder político perante o poder do capital. As politicas de RH hoje são uma cortina de fumo utilizada pelas empresas, conduzindo a politicas de gestão que visam simplesmente a maximização dos lucros, utilizando como armas o lobbying e a promiscuidade com os poderes estabelecidos.
A grande questão:
– Quem, num mundo como este, pode falar em realização profissional e pessoal pela via do TRABALHO? Pode considerar-se pertinente que se objective o trabalho como lema de vida? Acredito que sim, naquelas pessoas que verdadeiramente trabalham para os outros e para melhorar o mundo: os profissionais da saúde, os professores, os cientistas, os artistas e outros trabalhadores com estes correlacionados. Estes são RH;
Não se vislumbra que seja plausível a realização profissional numa organização capitalista, que prossegue o objectivo de quanto maior o lucro melhor, sem olhar a meios para atingir fins, em prejuízo do equilíbrio ambiental, da delapidação dos recursos do Planeta ao extremo e, muito importante, como salienta Stenner, acima referido, agredindo a saúde física e psicológica de quem trabalha.
Questão de ordem geral:
Nunca existiram políticas de RH; existiram simplesmente avanços e recuos no desenvolvimento do Modo de Produção Capitalista. A proletarização do campesinato e o advento dos avanços tecnológicos levaram ao alargamento da classe adstrita aos serviços(middle class) e contribuíram para a menorização do trabalho manual pela crescente robotização.
Luis Miguel Neto
Saúdo o ESPAÇO PUBLICO de hoje 6a feira, da autoria de António Bagão Felix! Enquanto docente universitário de disciplinas relacionadas com Gestão de Recursos Humanos, na Universidade de Lisboa aquele input parece-me da maior importância. A ‘coisificação’ das pessoas nos ambientes organizacionais é um mal que, além de historicamente paradoxal – A saga de Hawthorne foi o contrário, uma libertação de condições opressoras e alienantes – é, também trágico, um pouco, como a emergência do vocabulário de guerra dos ‘danos colaterais’ do jornalismo dos ‘factos alternativos’ e dos drones assassinos como video jogos. É bom lembrar, como é entendido, que a confusão de dimensões leva a erros lógicos e de decisão em diferentes domínios da vida empresarial, corporativa e social, como a discriminação etária, e não apenas de género – tanto que as organizações podiam aproveitar da ‘experiência/saber refletido dos seus colaboradores mais velhos! Bem haja António Bagão Felix, keep doing the good (mindful) work!
José Neto
6 de Julho
Dr. Bagão Félix
Parabéns pelo artigo. Muitas vezes (nem sempre) discordo do que escreve, mas, desta vez, só posso felicitá-lo. RH é expressão generalizada de que não gosto e que infelizmente é a semanticamente adequada a uma certa cultura empresarial. José Neto
Manuel Figueiredo
Tudo certo, infelizmente.
Agora, as pessoas (meras coisas ou números) não são despedidas: a fórmula que mais se utiliza é “a partir de (data, com um mês de antecedência) deixará de ser nosso colaborador”.
Para agravar ainda mais o cenário, abusa-se nas exigências (mesmo físicas) aos trabalhadores, porque “enquanto a máquina resistir” maiores serão os ganhos: o princípio de uma moderna versão de “escravatura”. As entidades com responsabilidade (com deveres) alheiam-se e, se questionados, escudam-se em argumentos falsos, não investigados. Inadmissível!

Sempre pensei que a Concertação Social se esforçasse, pelo exemplo, em dignificar quem trabalha: no mínimo, levar a considerar os parafusos num nível diferente dos outros recursos, as pessoas.

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