sexta-feira, 21 de julho de 2017

ANA E PEDRITO


A suavidade cortante das palavras que deslizam doces e impregnadas da sua realidade trágica de mulher de várias competências, orgulhosa da sua qualidade técnica que cedo a alcandorou a um lugar de projecção pela sua eficiência no trabalho - o que a não impediu, antes, de seguir os gostos da sua intelectualidade e  competências que prezou na vida: a prática da voz nos grupos corais que frequentou, com uma voz de estranha potência e melodia, (com que ainda se acompanha hoje ao piano, o filho no colo, a seguir-lhe os gestos e a tentar participar, em quadro de extrema beleza que guardo e escuto no computador), a escrita que, em França, praticava em excelente blog que deixou de lado, e um dia, em 2010, a fez participar num concurso de contos com um conto seleccionado para antologia (“Conto por Conto” da “Alfarroba”) – “O Engraxador de Sapatos” – já revelador de um conceito pessimista a juntar aos dotes de observação avessa à injustiça social. Uma intelectualidade amante da vida e das regalias suaves da existência, que um dia, menos egoistamente, se decide pela maternidade e as imensas alegrias do seu significado, aliadas aos condicionalismos que esse papel feminino impõe ao nível da actuação laboral e social.
A condição feminina nos tempos de hoje, eis o tema de mais um excelente texto da minha neta Ana – «Nasceu para ser mãe».
Uma mulher que sabe a arte de agradar, que usa a sua inteligência num comportamento de eficiência rigorosa e apreciada, sem rebaixamento mas domínio de si. E no entanto…
Uma maternidade a tempo inteiro, que poderia ser-lhe fatal, caso dos filmes que exploram situações próximas, o “Kramer contra Kramer” revelando idêntica problemática, embora em versão masculina.
E a narrativa prossegue, simultaneamente airosa e trágica na atrapalhação que subitamente se impõe na vida, por querer ser a mesma pessoa eficiente no seu trabalho, elegante e moderna na sua prática social, e o seu papel de mãe ofuscar todas as demais prioridades, o filho absorvendo os instantes de um pensamento ainda em êxtase criativo, como algo que, aparentemente banal e comum, é, no entanto, causador da maior alegria humana, nesse mistério extraordinário da criação.
Uma narrativa atenta ao outro, à consciência da superioridade desse outro que prossegue eficientemente o seu trabalho, sorridente perante o novo modelo de empregada agora menos participativa, porque interesses mais altos, embora comezinhos, lhe absorveram a atenção. E a consciência de se sentir um pouco preterida no trabalho, e a ironia que tal constatação provoca, indiferente à superioridade da simpatia aparente dos chefes - que já terão ou não passado por situação idêntica - porque hoje tudo se resume às graças do filho, às noites e horas perdidas com o filho, vivo e exigente de atenção. “Nasceu para ser mãe”, a tragédia da maternidade nos dias de hoje, de emancipação feminina, acumuladora de tarefas, mais desgastante do que nunca. Sobretudo quando se tem o sentido das responsabilidades e a ambição própria das capacidades.
O tempo passa depressa, outros cuidados virão, tudo retomará a norma, no trabalho, o filho crescerá, a escola ajudará a tomar conta e a desenvolver. Talvez a mulher conquiste mais meses de férias de maternidade, com este seu texto e outros, que dão conta do que significa um tal acumular de funções, quando se preza tudo o que se faz mas se tem prioridades. No meu tempo, tínhamos um mês de licença. Agora os maridos também podem ser contemplados, evoluiu-se, o progresso traz regalias.
Um texto de fino humor, este da Ana, um dia continuará a escrever e descrever, como lhe competirá também.

Nasceu para ser mãe
Estacionou o carro, desligou o rádio, pegou na mala e deixou lá dentro o sorriso que trazia ao sair de casa. Com as olheiras disfarçadas e os sapatos de salto que lhe fazem mal aos pés e bem à cabeça, seguiu para o trabalho onde passa a maioria dos seus dias.  Ligou o computador, leu emails, bebeu um café, conversou um pouco e voltou ao seu lugar para mais um dia apressado de telefonemas, reuniões, algum drama, algum desespero, alguma diversão.
Nasceu para ser mãe, ouvia. Telefonou para casa – estava tudo bem, bebé comido e a dormir, nada de choros, muita brincadeira, novas palavras, perfeitas imitações de animais, já anda sozinho, só quer é rua e parece que anda ali um dente a incomodar. Uma tranquilidade esquisita apoderou-se dela, já que é sempre bom saber que os nossos filhos estão bem, mas aquelas palavras todas, aquelas imitações dos bichos, tudo chegava antes da palavra mãe. Não sejas parva, pensava. O miúdo está feliz.
Tinha cancelado a reunião das sete da tarde, mas alguém a substituiu. Também esticou um pouco a hora de almoço, porque fez questão de ir ao ginásio e não tinha mais tempo livre durante o dia. Pediram-lhe que chegasse mais cedo no dia seguinte, o que a desanimou um pouco, mas parece que era importante. Paciência, daqui a nada estou de férias. Aquelas férias por que ansiamos o ano inteiro e que, afinal, passam sem que nos apercebamos delas.
À hora de saída ficou trabalho para fazer. Já há algum tempo que sentia que ia trabalhando menos, apesar de sair mais cansada. Duvidava muitas vezes de si, o que tinha deixado de acontecer há muitos anos, lá para o final da adolescência. Não há drama, de noite volto a ligar o computador.
Naquela noite o tal dente rompeu em desespero. Adormece no colo, adormece na nossa cama, adormece na cama dele comigo ao lado. Não adormece. E o trabalho que não se faz. Passa da 1h, o sono vence, o trabalho pode esperar. Acorda às 2h, às 3h, às 4h. Vem para a nossa cama. Não devia, é um retrocesso. Paciência.
No dia seguinte atrasou-se uns minutos para a tal reunião. Sem problema, nasceu para ser mãe. Estava lá alguém a substituí-la, o que a tranquilizou. Aquela tranquilidade desagradável, semelhante à que sentira no dia anterior. Não conseguiu tomar café nessa manhã, tinha temas urgentes para resolver.
A pouco e pouco foi crescendo a mãe. Não ia a reuniões tarde e deixava trabalho por fazer. Chegava a casa às 20h e não ia a tempo do banho. Não cumpriu o deadline da entrega do projeto. Deixou comida ao lume e queimou tudo.
Nasceu para ser mãe, corria em tom paternalista, dissimulando uma suposta incapacidade para trabalhar. Nasceu para ser mãe, coisa de que se orgulhava, dito assim por todos, ouvido por ela com ingenuidade. Nasceu para ser mãe, algo que sempre quis ouvir, que a fazia pensar que se calhar a palavra mãe só ainda não tinha saído dos lábios do filho por uma qualquer dificuldade com a letra “m”. Afinal, talvez só na sua cabeça visse a sua imperfeição como mãe. Quanto aos outros, para eles, ser mãe era em si mesmo a imperfeição.
Para todas as Mulheres que travam, diariamente, nos seus trabalhos, uma batalha campal para provar o seu valor.



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