A nossa amiga estava
excepcionalmente combativa, com a questão das armas subtraídas do nosso arsenal
militar. Parece que uma delas era suficiente para arrasar o nosso país, vê-se
que esteve atenta às notícias arrasadoras que tanto a minha irmã como eu
depreciámos em parte, quer por optimismo, quer por laços passadistas, atidas à antiga
sugestão de Raul Solnado na sua guerra memorável de 1908. Não que pensássemos
em matar apenas com uma bala atada a uma guita puxável, e nem sequer em facilitar
cedendo os planos da pólvora ao inimigo, e até mesmo mandando a Maria Albertina,
vestida de organdi a servir de espia, como fora o próprio Solnado, que, despedido
do seu laboratório de material farmacêutico por ter partido um comprimido, fora obrigado
a empregar-se na guerra, por decisão da sua mãe e da sua tia, e para onde foi
de táxi para não encher de moscas a guerra, em cavalo comprado na feira.
Nada disso, todavia, foi
suficiente para impedir a preocupação da nossa amiga e então lembrei um
programa da TV5 que vi ontem, por onde perpassaram vozes e cantos de encanto,
de músicas de ópera de uma espectacularidade de sonho, na arte, bom gosto, perfeição
orquestral e vocal, traduzindo riqueza e uma educação com que jamais poderemos não
digo ombrear, mas sequer sonhar, parcialmente que seja. Mas na RTP também
se apresentava um despique de bandas filarmónicas que António Vitorino de
Almeida e Olga Prats iriam classificar, sob as chalaças de Júlio Isidro que se
julga o máximo na sua autodepreciação fictícia de mau gosto, ou outras graças,
e a dada altura ouvimos – a minha irmã e eu – um qualquer recitador num arrazoado
que nos pareceu despropositado, específico da nossa mediocridade encardida, e
regressámos a outros programas, retomando eu o programa musical francês, e a
minha irmã e a nossa amiga creio que o 2º canal, onde também cheguei a ouvir um
pouco da Traviata.
Não, não conseguimos acalmar
as raivas da nossa amiga, na sua crítica destrutiva contra uma situação de
penúria nacional em todos os níveis e sobretudo nessa da desresponsabilização e
mândria que afecta o país, de tal modo que pôde descambar num incêndio
mortífero e quem sabe se, como ela diz, em actos terroristas neste ou noutros
países, por conta dessas inúmeras armas roubadas, cujo número poderá ser muito
superior ao que é denunciado pelos responsáveis envergonhados ou temerosos de
castigo. Mas não têm razão para o estar, a brandura nos favorece o esquecimento,
pesem embora as excepções.
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