domingo, 9 de julho de 2017

Descobre-se a careca


Também Passos Coelho os desmascarou, ouvi-o ontem, a propósito das cativações de dinheiros responsáveis pelos cortes em vigilâncias nos serviços, que redundaram em tragédias recentes, como igualmente se observa nas escolas, com o corte nos funcionários de vigilância, por exemplo. Finalmente Passos Coelho obteve resposta para as suas perguntas tantas vezes feitas a respeito das alternativas do Governo ao esbanjamento e manutenção simultânea do cumprimento dos encargos com o exterior. As alternativas estavam nas cativações de dinheiros em despesas achadas secundárias, descobriu-se agora. O urgente era contentar os funcionários e demais trabalhadores, descongelando os vencimentos em função de futuras eleições. E vai ter muitos votos, António Costa, que se refaz do pesadelo por cá vivido, no bronze indiferente das suas férias, enquanto o país se desmantela.
Alberto Gonçalves explode com a habitual iracúndia no seu artigo, e João Miguel Tavares elucida-nos, também com iracúndia - e uma certa lamechice em relação a Jerónimo de Sousa - sobre os “parceiros no crime” – os apoiantes governamentais, que não têm a beleza do par Tuppence/Tommy da genial Agatha Christie – e se entretêm provocatoriamente por aqui a apoiar Maduro, para arrasar com o resto do equilíbrio neste país já tão desfavorecido intelectualmente e que tão pateticamente os seguirá, como mais uma festança entre as festas populares do nosso ideário vivencial. Quanto ao artigo de Rui Ramos, ele nos elucida convenientemente sobre os trâmites seguidos pela geringonça justificativos dos desaires de Pedrógão e de Tancos.

Uma experiência do Terceiro Mundo
OBSERVADOR, 8/7/2017
É gente literalmente abjecta. Perante a tragédia, decretam o caso resolvido. Perante o desleixo, lembram desleixos maiores. Perante as dúvidas, confessam sentimentos. Perante as câmaras, dão abraços.
Em Maio  passado, gastei uma quantidade inusitada de tempo a fazer o que nunca faço: reler as minhas crónicas, no caso as que escrevi sobre o actual governo. O propósito era nobre, e prendia-se com a publicação de um livro saído esta semana (pausa publicitária: que mil familiares do dr. César lhe desabem na cabeça se ainda não adquiriu tão magnífica obra). A experiência foi traumática, para dizer o mínimo. Acompanhar a chamada “actualidade”, de modo a garantir a coluna no Observador, é convívio mais do que suficiente com os bandos que tomaram conta disto. Não é clinicamente aconselhável reforçar a confraternização.
Os textos em causa, muito menos por mérito do autor do que pelo evidente e portentoso demérito das criaturas que mandam em nós, são premonitórios. Na medida em que as premonições não primam pelo optimismo, são também deprimentes. Desde o primeiro momento, a loucura intrínseca à aliança das “esquerdas”, legitimada por um Presidente que o artigo 328.º do Código Penal me impede de comentar, mostrou ao que vinha e para que servia. O impressionante não é que o desastre se tenha confirmado com estrondo, mas que durante ano e meio o desastre se confundisse, para uma notável percentagem da população, com um relativo sucesso. A sucessão de glórias circenses, da bola às cantigas, passando pelo Santo Padre ou pelo Santo Guterres, não explica tudo. A submissão de boa parte dos “media” explica um bocadinho. As benesses do turismo explicam outro bocadinho. A apatia do bom povo e o júbilo das clientelas talvez expliquem o resto.
Certo é que, em poucas semanas, alguma coisa mudou. Não mudaram o circo, os “media”, o povo ou as clientelas. Sucedeu apenas que, de repente ou nem por isso, a realidade tornou-se impossível de negar. E a invencível nação que, de acordo com a propaganda, maravilhava a Terra acordou destapada. E feia. Foram necessários dezenas de cadáveres carbonizados e um picaresco (e aterrador) roubo de armamento ao exército para expor, à revelia da maquilhagem e do “spin” e das “boas notícias”, a natureza da gente que ocupa o poder.
Não tem sido um espectáculo agradável, excepto para apreciadores da incompetência, do descaramento e da radical ausência de dignidade. É, em suma, uma gente literalmente abjecta. Perante a tragédia, eles decretam o caso resolvido. Perante o desleixo, lembram desleixos maiores. Perante as dúvidas, confessam sentimentos. Perante as câmaras, dão abraços. Perante a culpa, acusam eucaliptos e furriéis. Perante o caos, pedem avaliações de popularidade. Perante a obrigação, partem de férias para Ibiza, a subjugar espanhóis com a barriga e um par de cuecas.
A propósito de Espanha, é revelador que, apesar dos divertidos esforços dos “jornalistas” de cá para os calar, sejam sobretudo os jornais de lá a contar-nos o que o “estrangeiro” vê quando olha para aqui. Vê uma anedota perigosa, um manicómio em auto-gestão, uma experiência do Terceiro Mundo às portas da Europa. E, naturalmente, assusta-se.
O susto não é descabido. Descabido é o rumo que, com a sensatez habitual, o “debate” indígena ameaça seguir. A oposição, se a palavra se aplica, andou uma semana a lamentar o colapso do Estado e a reclamar a demissão dos ministros da Administração Interna e da Defesa e o regresso do dr. Costa. Para quê? Não imagino. A substituição de duas insignificâncias por duas insignificâncias iguaizinhas não alteraria nada. O prolongamento das férias do dr. Costa por 20 ou 30 anos alteraria imenso. Quanto ao Estado em frangalhos, em teoria só um socialista, assumido ou dissimulado, se maçaria com o tema – na prática, o aborrecido é a devastação principiar pelos únicos pedaços que, se calhar, convinha manter.
Entre o chinfrim, sobra um facto: Portugal é governado por uma coligação de leninistas com sentido de oportunidade e de oportunistas com nostalgias totalitárias. O que nos está a acontecer é o percurso fatal em qualquer arranjo do género. Começa-se em euforia, avança-se para a estupefacção, saltita-se para a raiva e termina-se em desgraça, porque semelhante malformação não poderia terminar de maneira diferente. O simbolismo da recente manifestação de apoio ao sr. Maduro, em Lisboa, não é desprezível.
No mesmo dia em que os funcionários da ditadura atacaram com marretadas pedagógicas o parlamento venezuelano, o Conselho Português para a Paz e Cooperação, uma excrescência do PCP, desfilou a regozijar-se com o sangue das vítimas. Na homenagem, participaram, cito, “representantes da câmara municipal de Lisboa” e, quiçá em celebração de Tancos, a Banda do Exército. Segundo o “Diário de Notícias”, o belo evento “foi perturbado por um incidente com um cartaz”. O cartaz rezava “Venezuela Livre”, e o portador acabou devidamente assaltado em prol da paz e, claro, da cooperação.
Portugal não está nas mãos de irresponsáveis, tradição a que aliás nos habituáramos: está nas mãos de criminosos, por acção ou omissão. São eles que, a cada calamidade, juram que podia ter corrido pior. E, no que depender deles, há-de correr.


OPINIÃO
Somos todos demasiado complacentes com o PCP
Não há qualquer diferença no nível de abjecção entre ver João Oliveira no meio da rua a defender Maduro ou o líder do PNR a defender o fascismo.
João Miguel Tavares
Público, 8 de Julho de 2017
Quando digo que somos todos demasiado complacentes com o PCP estou a incluir-me nesse “todos” – e por isso publicamente me penitencio. Também eu tenho dificuldade em resistir à pele tisnada de Jerónimo de Sousa, aos sulcos campesinos da sua face, aos impecáveis passos de dança de um profissional dos bailes, ao notável reportório de pregões, máximas e analogias populares. Álvaro Cunhal metia medo. Carlos Carvalhas metia dó. Jerónimo de Sousa parece o avô escanhoado da Heidi – austero por fora, amável por dentro. É assim que eu o imagino. É assim que quero que ele seja. É assim que nós, ex-jovens que não vivemos o Verão Quente de 1975, que temos de ir ao Google ver como se escreve Soljenítsin, para quem a URSS era apenas o país dos louros que o Rambo metralhava, gostamos de olhar para o PCP. Não como um partido, mas como um pedaço de memorabilia. Uma agremiação de amigos da classe operária para a qual olhamos com um misto de indulgência e nostalgia.
É impressionante a força desta armadilha sedutora. Não sou só eu que me predisponho a ser enganado – é o próprio PCP que promove essa ambiguidade. Nas entrevistas aos seus líderes, há sempre um véu entre aquilo que dizem e aquilo que realmente pensam. Quando algum comunista mete o pé na argola – Bernardino Soares a declarar que a Coreia do Norte talvez seja uma democracia, por exemplo – há sempre um sururu, mas logo surgem os paninhos quentes: o PCP já virou oficialmente costas ao estalinismo; a ditadura do proletariado tem nuances; e por aí fora. As posições internacionais, onde o PCP-troglodita mais facilmente se manifesta, são deixadas para artigos obscuros no Avante! Perante as câmaras de televisão, só ouvimos defender os direitos dos fracos e dos trabalhadores. E quem está contra os direitos dos fracos e dos trabalhadores?
E, no entanto, esta complacência tem um custo, como se viu esta semana. Uma agremiação chamada Conselho Português para a Paz e Cooperação – mais uma daquelas instituições, como Os Verdes, que finge ter autonomia do PCP mas que se limita a ser uma mera extensão para efeitos propagandísticos – resolveu promover uma “acção de solidariedade” para com “o povo da Venezuela”. Tradução: uma manifestação em defesa de Nicolás Maduro, contra aqueles que pretendem – e cito – “atacar o processo bolivariano e as suas realizações” (basicamente, todos os esfomeados do país). A esta bonita iniciativa juntou-se, imaginem, a Banda do Exército, porque alguém inventou um “acto protocolar” de comemoração do Dia da Independência da Venezuela junto à estátua de Simon Bolívar. Repare-se na perversão do empreendimento: à boa maneira soviética, os meios do Estado são colocados ao serviço da propaganda comunista e da defesa de um regime abjecto.
Ora, convém que sejamos claros, até porque das fotos do evento consta o próprio líder parlamentar do PCP, João Oliveira: isto ultrapassa em muito os textos trogloditas do Avante! É uma vergonha para o país. E devia ser uma vergonha para o PS. Não há qualquer diferença no nível de abjecção entre ver João Oliveira no meio da rua a defender Maduro ou o líder do PNR a defender o fascismo. Para a próxima vez, talvez José Pinto-Coelho possa recrutar a Banda do Exército para tocar o hino da Mocidade Portuguesa. São níveis absolutamente equivalentes de repugnância – e, numa altura em que a Venezuela “bolivariana” se afunda e o PCP sustenta o Governo em funções, sublinhar isto é uma obrigação moral. 

O ilusionista desmascarado
Esta é a ocasião de restituir verdade ao debate político, e de admitir que, ao contrário do que disse a actual maioria, não há escolhas sem custos e sem riscos. As "cativações" tiveram um preço.
Ainda se lembram da primeira vez que viram o truque? O ilusionista, em palco, aumenta salários e pensões, e no fim o défice do orçamento é mais pequeno. A plateia governamental e afim bateu imensas palmas e sorriu muito. Ali estava, contra os malvados “neo-liberais”, a prova de que havia “outro caminho”, que era possível ter sol na eira e chuva no nabal. A consolidação orçamental sem dor existia.
O país estava naturalmente tão desejoso de acreditar, que a lenda de que António Costa descobrira os almoços grátis resistiu a dois debates do orçamento. Em Bruxelas, a Comissão Europeia também aprovava, pondo termo a qualquer polémica. Foi preciso o incêndio de Pedrogão Grande, com os seus 64 mortos, mais o roubo de armamento em Tancos e a sensação de derrocada do Estado, para finalmente termos uma verdadeira discussão sobre a nova austeridade inaugurada por Costa com o apoio parlamentar do PCP e do BE. O défice desceu? À custa de quê? Com que preço?
Há quem fale de oportunismo a propósito destas questões. Não há qualquer oportunismo. É absolutamente legítimo e relevante perceber como foram compensados os aumentos imediatos de salários e de pensões decididos pelo governo, e qual o seu impacto no funcionamento do Estado. Sabemos que houve cortes maciços no investimento e na aquisição de bens e de serviços, para permitir mais despesa sem agravar o défice. Chegou-se assim a um dos mais baixos níveis de investimento público dos últimos 50 anos e às maiores “cativações” de que há registo (quase mil milhões de euros em 2016). Foi ou não o Estado, nos últimos dois anos, privado de meios para desempenhar os seus deveres e funções? A dúvida existe. E não fazer a pergunta, em nome de um falso conceito de pudor político, seria apenas a prova de que a classe dirigente já se sentiria, como nas autocracias mais fechadas, acima das interrogações dos cidadãos.
Para o regime, este é um momento fundamental. Por um lado, trata-se de atender à desconfiança suscitada pelo espectáculo degradante do colapso do Estado; por outro lado, é a ocasião de restituir verdade ao debate político, e de admitir que, ao contrário do que disse a actual maioria, não há escolhas sem custos e sem riscos. A opção deste governo e da maioria social-comunista consistiu, na prática, em sacrificar os serviços públicos aos empregados e demais dependentes do Estado. Os funcionários foram encarados apenas como consumidores, a quem convinha devolver rendimentos, e não como trabalhadores, a quem era preciso dotar com os meios necessários para desempenhar as suas funções.
Os deputados da maioria fingiram-se muito zangados com a ideia de que o governo se ocupa sobretudo das suas “clientelas” de potenciais votantes. Pois os funcionários públicos são “clientes”, perguntavam com a voz a tremer? Não, não são necessariamente clientes. O governo e os partidos que o apoiam é que os tratam como “clientes”, com a estratégia cínica de lhes criar um “interesse” egoísta na continuação do seu poder, através de uma política de privilégio dos funcionários em relação ao resto da sociedade. O clientelismo está na política, não está em quem a critica.

O BE lamenta agora que o governo de António Costa tenha “ido além da meta estabelecida para fazer, em Bruxelas, o número do défice mais baixo da história”. Parece assim que temos mais um governo que foi “além da troika”, sendo neste caso a troika composta pelo PS, o PCP e o BE. Enfim, nesta matéria não há milagres, embora haja ilusões. Algumas ficaram expostas nestas semanas de tragédia, caos e irresponsabilidade.

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