Também Passos Coelho os desmascarou, ouvi-o ontem, a
propósito das cativações de dinheiros responsáveis pelos cortes em vigilâncias
nos serviços, que redundaram em tragédias recentes, como igualmente se observa
nas escolas, com o corte nos funcionários de vigilância, por exemplo. Finalmente
Passos Coelho obteve resposta para as suas perguntas tantas vezes feitas a
respeito das alternativas do Governo ao esbanjamento e manutenção simultânea do
cumprimento dos encargos com o exterior. As alternativas estavam nas cativações
de dinheiros em despesas achadas secundárias, descobriu-se agora. O urgente era
contentar os funcionários e demais trabalhadores, descongelando os vencimentos
em função de futuras eleições. E vai ter muitos votos, António Costa, que se
refaz do pesadelo por cá vivido, no bronze indiferente das suas férias,
enquanto o país se desmantela.
Alberto Gonçalves explode com a habitual
iracúndia no seu artigo, e João Miguel Tavares elucida-nos,
também com iracúndia - e uma certa lamechice em relação a Jerónimo de Sousa -
sobre os “parceiros no crime” – os apoiantes governamentais, que não têm a
beleza do par Tuppence/Tommy da genial Agatha Christie – e se entretêm
provocatoriamente por aqui a apoiar Maduro, para arrasar com o resto do
equilíbrio neste país já tão desfavorecido intelectualmente e que tão pateticamente
os seguirá, como mais uma festança entre as festas populares do nosso ideário vivencial.
Quanto ao artigo de Rui Ramos, ele nos elucida convenientemente
sobre os trâmites seguidos pela geringonça justificativos dos desaires
de Pedrógão e de Tancos.
Uma
experiência do Terceiro Mundo
OBSERVADOR, 8/7/2017
É gente literalmente abjecta. Perante
a tragédia, decretam o caso resolvido. Perante o desleixo, lembram desleixos
maiores. Perante as dúvidas, confessam sentimentos. Perante as câmaras, dão
abraços.
Em Maio passado, gastei uma quantidade inusitada de
tempo a fazer o que nunca faço: reler as minhas crónicas, no caso as que
escrevi sobre o actual governo. O propósito era nobre, e prendia-se com a
publicação de um livro saído esta semana (pausa publicitária: que mil
familiares do dr. César lhe desabem na cabeça se ainda não adquiriu tão
magnífica obra). A experiência foi traumática, para dizer o mínimo. Acompanhar
a chamada “actualidade”, de modo a garantir a coluna no Observador, é convívio
mais do que suficiente com os bandos que tomaram conta disto. Não é
clinicamente aconselhável reforçar a confraternização.
Os textos em causa, muito menos por
mérito do autor do que pelo evidente e portentoso demérito das criaturas que
mandam em nós, são premonitórios. Na medida em que as premonições não primam
pelo optimismo, são também deprimentes. Desde o primeiro momento, a loucura
intrínseca à aliança das “esquerdas”, legitimada por um Presidente que o artigo
328.º do Código Penal me impede de comentar, mostrou ao que vinha e para que
servia. O impressionante não é que o desastre se tenha confirmado com estrondo,
mas que durante ano e meio o desastre se confundisse, para uma notável
percentagem da população, com um relativo sucesso. A sucessão de glórias
circenses, da bola às cantigas, passando pelo Santo Padre ou pelo Santo
Guterres, não explica tudo. A submissão de boa parte dos “media” explica um
bocadinho. As benesses do turismo explicam outro bocadinho. A apatia do bom
povo e o júbilo das clientelas talvez expliquem o resto.
Certo é que, em poucas semanas, alguma
coisa mudou. Não mudaram o circo, os “media”, o povo ou as clientelas.
Sucedeu apenas que, de repente ou nem por isso, a realidade tornou-se
impossível de negar. E a invencível nação que, de acordo com a propaganda,
maravilhava a Terra acordou destapada. E feia. Foram necessários dezenas de
cadáveres carbonizados e um picaresco (e aterrador) roubo de armamento ao
exército para expor, à revelia da maquilhagem e do “spin” e das “boas
notícias”, a natureza da gente que ocupa o poder.
Não tem sido um espectáculo agradável,
excepto para apreciadores da incompetência, do descaramento e da radical
ausência de dignidade. É, em suma, uma gente literalmente abjecta. Perante a
tragédia, eles decretam o caso resolvido. Perante o desleixo, lembram desleixos
maiores. Perante as dúvidas, confessam sentimentos. Perante as câmaras, dão
abraços. Perante a culpa, acusam eucaliptos e furriéis. Perante o caos, pedem
avaliações de popularidade. Perante a obrigação, partem de férias para Ibiza, a
subjugar espanhóis com a barriga e um par de cuecas.
A propósito de Espanha, é revelador
que, apesar dos divertidos esforços dos “jornalistas” de cá para os calar,
sejam sobretudo os jornais de lá a contar-nos o que o “estrangeiro” vê quando
olha para aqui. Vê uma anedota perigosa, um manicómio em auto-gestão, uma
experiência do Terceiro Mundo às portas da Europa. E, naturalmente, assusta-se.
O susto não é descabido. Descabido é o
rumo que, com a sensatez habitual, o “debate” indígena ameaça seguir. A
oposição, se a palavra se aplica, andou uma semana a lamentar o colapso do
Estado e a reclamar a demissão dos ministros da Administração Interna e da
Defesa e o regresso do dr. Costa. Para quê? Não imagino. A substituição de duas
insignificâncias por duas insignificâncias iguaizinhas não alteraria nada. O
prolongamento das férias do dr. Costa por 20 ou 30 anos alteraria imenso.
Quanto ao Estado em frangalhos, em teoria só um socialista, assumido ou
dissimulado, se maçaria com o tema – na prática, o aborrecido é a devastação
principiar pelos únicos pedaços que, se calhar, convinha manter.
Entre o chinfrim, sobra um facto:
Portugal é governado por uma coligação de leninistas com sentido de
oportunidade e de oportunistas com nostalgias totalitárias. O que nos está a
acontecer é o percurso fatal em qualquer arranjo do género. Começa-se em
euforia, avança-se para a estupefacção, saltita-se para a raiva e termina-se em
desgraça, porque semelhante malformação não poderia terminar de maneira
diferente. O simbolismo da recente manifestação de apoio ao sr. Maduro, em
Lisboa, não é desprezível.
No mesmo dia em que os funcionários da
ditadura atacaram com marretadas pedagógicas o parlamento venezuelano, o
Conselho Português para a Paz e Cooperação, uma excrescência do PCP, desfilou a
regozijar-se com o sangue das vítimas. Na homenagem, participaram, cito,
“representantes da câmara municipal de Lisboa” e, quiçá em celebração de
Tancos, a Banda do Exército. Segundo o “Diário de Notícias”, o belo evento “foi
perturbado por um incidente com um cartaz”. O cartaz rezava “Venezuela Livre”,
e o portador acabou devidamente assaltado em prol da paz e, claro, da
cooperação.
Portugal não está nas mãos de
irresponsáveis, tradição a que aliás nos habituáramos: está nas mãos de
criminosos, por acção ou omissão. São eles que, a cada calamidade, juram que
podia ter corrido pior. E, no que depender deles, há-de correr.
OPINIÃO
Somos
todos demasiado complacentes com o PCP
Não
há qualquer diferença no nível de abjecção entre ver João Oliveira no meio da
rua a defender Maduro ou o líder do PNR a defender o fascismo.
João
Miguel Tavares
Público, 8 de Julho de
2017
Quando digo que somos todos demasiado
complacentes com o PCP estou a incluir-me nesse “todos” – e por isso
publicamente me penitencio. Também eu tenho dificuldade em resistir à pele
tisnada de Jerónimo de Sousa, aos sulcos campesinos da sua face, aos impecáveis
passos de dança de um profissional dos bailes, ao notável reportório de
pregões, máximas e analogias populares. Álvaro Cunhal metia medo. Carlos
Carvalhas metia dó. Jerónimo de Sousa parece o avô escanhoado da Heidi –
austero por fora, amável por dentro. É assim que eu o imagino. É assim
que quero que ele seja. É assim que nós, ex-jovens que não vivemos o Verão
Quente de 1975, que temos de ir ao Google ver como se escreve Soljenítsin, para
quem a URSS era apenas o país dos louros que o Rambo metralhava, gostamos de
olhar para o PCP. Não como um partido, mas como um pedaço de memorabilia. Uma
agremiação de amigos da classe operária para a qual olhamos com um misto de
indulgência e nostalgia.
É impressionante a força desta armadilha
sedutora. Não sou só eu que me predisponho a ser enganado – é o próprio PCP que
promove essa ambiguidade. Nas entrevistas aos seus líderes, há sempre um véu
entre aquilo que dizem e aquilo que realmente pensam. Quando algum comunista
mete o pé na argola – Bernardino Soares a declarar que a Coreia do Norte
talvez seja uma democracia, por exemplo – há sempre um sururu, mas logo
surgem os paninhos quentes: o PCP já virou oficialmente costas ao estalinismo;
a ditadura do proletariado tem nuances; e por aí fora. As posições internacionais,
onde o PCP-troglodita mais facilmente se manifesta, são deixadas para artigos
obscuros no Avante! Perante as câmaras de televisão, só ouvimos defender os
direitos dos fracos e dos trabalhadores. E quem está contra os direitos dos
fracos e dos trabalhadores?
E, no entanto, esta complacência tem um custo,
como se viu esta semana. Uma agremiação chamada Conselho Português para a Paz e
Cooperação – mais uma daquelas instituições, como Os Verdes, que finge ter
autonomia do PCP mas que se limita a ser uma mera extensão para efeitos
propagandísticos – resolveu promover uma “acção de solidariedade” para com “o
povo da Venezuela”. Tradução: uma manifestação em defesa de Nicolás
Maduro, contra aqueles que pretendem – e cito – “atacar o processo bolivariano
e as suas realizações” (basicamente, todos os esfomeados do país). A esta
bonita iniciativa juntou-se, imaginem, a Banda do Exército, porque alguém
inventou um “acto protocolar” de comemoração do Dia da Independência da
Venezuela junto à estátua de Simon Bolívar. Repare-se na perversão do
empreendimento: à boa maneira soviética, os meios do Estado são colocados ao
serviço da propaganda comunista e da defesa de um regime abjecto.
Ora, convém que sejamos claros, até porque das
fotos do evento consta o próprio líder parlamentar do PCP, João Oliveira: isto
ultrapassa em muito os textos trogloditas do Avante! É uma vergonha para o
país.
E devia ser uma vergonha para o PS. Não há qualquer diferença no
nível de abjecção entre ver João Oliveira no meio da rua a defender Maduro ou o
líder do PNR a defender o fascismo. Para a próxima vez, talvez José
Pinto-Coelho possa recrutar a Banda do Exército para tocar o hino da Mocidade
Portuguesa. São níveis absolutamente equivalentes de repugnância – e, numa
altura em que a Venezuela “bolivariana” se afunda e o PCP sustenta o Governo em
funções, sublinhar isto é uma obrigação moral.
O ilusionista desmascarado
Esta é a ocasião de
restituir verdade ao debate político, e de admitir que, ao contrário do que
disse a actual maioria, não há escolhas sem custos e sem riscos. As
"cativações" tiveram um preço.
Ainda
se lembram da primeira vez que viram o truque? O
ilusionista, em palco, aumenta salários e pensões, e no fim o défice do
orçamento é mais pequeno. A plateia governamental e afim bateu imensas palmas e
sorriu muito. Ali estava, contra os malvados “neo-liberais”, a prova de que
havia “outro caminho”, que era possível ter sol na eira e chuva no nabal. A
consolidação orçamental sem dor existia.
O
país estava naturalmente tão desejoso de acreditar, que a lenda de que António
Costa descobrira os almoços grátis resistiu a dois debates do orçamento. Em
Bruxelas, a Comissão Europeia também aprovava, pondo termo a qualquer polémica.
Foi preciso o incêndio de Pedrogão Grande, com os seus 64 mortos, mais o roubo
de armamento em Tancos e a sensação de derrocada do Estado, para finalmente
termos uma verdadeira discussão sobre a nova austeridade inaugurada por Costa
com o apoio parlamentar do PCP e do BE. O défice desceu? À custa de quê? Com
que preço?
Há
quem fale de oportunismo a propósito destas questões. Não há qualquer
oportunismo. É absolutamente legítimo e relevante perceber como foram
compensados os aumentos imediatos de salários e de pensões decididos pelo
governo, e qual o seu impacto no funcionamento do Estado. Sabemos que
houve cortes maciços no investimento e na aquisição de bens e de serviços, para
permitir mais despesa sem agravar o défice. Chegou-se assim a um dos mais
baixos níveis de investimento público dos últimos 50 anos e às maiores
“cativações” de que há registo (quase mil milhões de euros em 2016). Foi ou não
o Estado, nos últimos dois anos, privado de meios para desempenhar os seus
deveres e funções? A dúvida existe. E não fazer a pergunta, em nome de um falso
conceito de pudor político, seria apenas a prova de que a classe dirigente já
se sentiria, como nas autocracias mais fechadas, acima das interrogações dos
cidadãos.
Para
o regime, este é um momento fundamental. Por um lado, trata-se de atender à
desconfiança suscitada pelo espectáculo degradante do colapso do Estado; por
outro lado, é a ocasião de restituir verdade ao debate político, e de admitir
que, ao contrário do que disse a actual maioria, não há escolhas sem custos
e sem riscos. A opção deste governo e da maioria social-comunista
consistiu, na prática, em sacrificar os serviços públicos aos empregados e
demais dependentes do Estado. Os funcionários foram encarados apenas como
consumidores, a quem convinha devolver rendimentos, e não como trabalhadores, a
quem era preciso dotar com os meios necessários para desempenhar as suas
funções.
Os
deputados da maioria fingiram-se muito zangados com a ideia de que o governo se
ocupa sobretudo das suas “clientelas” de potenciais votantes. Pois os
funcionários públicos são “clientes”, perguntavam com a voz a tremer? Não, não
são necessariamente clientes. O governo e os partidos que o apoiam é que os
tratam como “clientes”, com a estratégia cínica de lhes criar um “interesse”
egoísta na continuação do seu poder, através de uma política de
privilégio dos funcionários em relação ao resto da sociedade. O clientelismo
está na política, não está em quem a critica.
O
BE lamenta agora que o governo de António Costa tenha “ido além da meta
estabelecida para fazer, em Bruxelas, o número do défice mais baixo da
história”. Parece assim que temos mais um governo que foi “além da troika”,
sendo neste caso a troika composta pelo PS, o PCP e o BE. Enfim, nesta matéria
não há milagres, embora haja ilusões. Algumas ficaram expostas nestas semanas
de tragédia, caos e irresponsabilidade.
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