sábado, 29 de julho de 2017

Farinha do mesmo saco


O artigo de Alberto Gonçalves sobre uma gente que se reúne nas festas do “Avante” e faz e debita credos de absurda visão e de absurda provocação que a pena curiosa e responsável do articulista não deixa escapar, na sua análise crítica, insere-se em idêntica linha de orientação do artigo de Frei Bento Domingues O.P., certamente que envergonhado pela estrutura tacanha e insana de um mito que virou em “festa” de almas, cada vez mais acirrada, ao abrangê-lo com a leitura das “Memórias” de Lúcia de Jesus.
Por esse motivo os associo, calculando o desespero de quem se ressente com tais características de pequenez e incultura neste povo e nesta mocidade que, impreparada e mandriona, se novos conceitos adquiriu, bem diversos, todavia, dos que moveram os pastores do milagre, os repete exaustivamente, acatando os que melhor servem ao seu mundo de inércia milagreira de mitos da carochinha, ameaçadores das almas – no caso das alminhas e das visões de Fátima – ameaçadores da ordem, no caso dos falsos profetas do humanitarismo parcial que marginaliza tudo o que aparente alguma superioridade de vivência ou visão.
Estamos no século XXI, também na aldeia onde vivi na infância havia umas alminhas aonde o povo ia em procissão no tempo das secas, pedir água, não ainda para apagar incêndios mas para regar as terras. Julgo que agora já não vai. No tempo de Lúcia a Igreja monopolizava mais as almas com as histórias de ameaças do Inferno, que todos conhecem, e que Frei Bento Domingues não diferencia das da sua infância. É, realmente, lamentável tudo isto que por cá se passa e que justifica também o fenómeno das praxes académicas, cada vez mais inseridas num mundo de perversidade descontrolada e impune.
Campismo selvagem
Alberto Gonçalves       OBSERVADOR, 29/7/17
1 - Ano após ano, por esta altura, há dois rituais infalíveis: um é o acampamento de Verão do Bloco de Esquerda, o outro é a minha crónica a pretexto. A rapaziada do BE não desiste. Eu não resisto. Tudo no “evento” é engraçado, a começar pelo nome. Não sei se por fina ironia ou grosso analfabetismo, o “evento” chama-se Liberdade, o que produz o delicioso efeito de um “workshop” do Ku Klux Klan subordinado ao tema Tolerância. E daqui para a frente é sempre a descer. Ou a subir, se atendermos exclusivamente ao potencial cómico da coisa e, sobretudo, se esquecermos que a coisa influencia o governo da nação.
Um artigo babado no “Público”, também recorrente a cada final de Julho, é naturalmente a melhor fonte de informação disponível. O título do artigo só não é todo um programa porque o programa do acampamento é assaz vasto, mas dá uma ideia bastante aproximada da toleima em jogo: “Os jovens do Bloco vão dançar contra o racismo e estudar ‘O Capital’”. Notaram a diferença? Jovens menos “conscientes” poderiam estudar o racismo e dançar contra “O Capital”. Ou estudar matemática e tocar clarinete a favor do pastel de nata. Ou simplesmente ir à praia e dormir o dia inteiro.
Não é o caso de Izaura Solipa, menina que pertence à organização e, suponho, usa pseudónimo (no ano passado, a cicerone do “Público” fora a militante Ana Rosa, “de voz serena mas segura, e uns olhos castanhos rasgados”). Para a Izaura, “um político que não pense verdadeiramente nas relações todas que existem, como lemos o mundo, como intervir no mundo, em todos os espaços e esferas que frequentamos, um político que não tenha essa reflexão vai ter sempre um lado insuficiente”. A Izaura, que pensa nas relações todas, lê o mundo todo e intervém em todos os espaços e esferas, não corre risco de insuficiência. Nem ela, nem os 150 felizardos que, a troco de meros 40 euros, acorrerão este fim-de-semana a Oliveira do Hospital. Para quê?
Ora essa. Para testemunhar “um concerto do rapper e activista Chullage”. Para frequentar festas “femininas e queer” (ignoro se mistas ou separadas). Para integrar um “debate” (os debates do BE distinguem-se dos demais por estarem decididos à partida) alusivo às drogas “duras e leves”, “dicotomia” que, de acordo com Izaura, “é preciso desconstruir” (eu não disse?). Para ouvir uma conversa em volta de “Saúde Mental e Capitalismo” (sumário provável: quem não aprecia o comunismo deve ser maluco). A catequese – e os sermões a convertidos – não se resume a isto. As beatas Mortágua explicarão “O que é o BE”. Marisa Matias “ajudará a uma reflexão sobre a importância da linguagem”. O deputado Jorge Costa dissertará a propósito da “geringonça”. Etc.
Parece divertido? De certeza que será. Porém, sem querer menosprezar ninguém, tenho os meus momentos favoritos, colhidos directamente do programa do acampamento. Um deles é o “Não Engolimos Sapos – Situação do Povo Romani”. Terá a sua piada observar a desenvoltura com que os participantes louvarão a riqueza cultural da etnia em causa e, de seguida, marcharão para os “espaços permanentes” feminista e queer, dois sectores bastante prezados pelo “povo romani”.
Um segundo momento consiste em perceber de que maneira se concilia tanto bailarico contra o racismo com a palestra “Queremos viver na nossa cidade”, a previsível xenofobia enquanto reacção ao turismo e ao lamentável enriquecimento dos cidadãos.
Um terceiro momento é o “debate” /conversa “Movimentos Anti-imperialistas na América Latina”, que provará em definitivo os sucessos estrondosos de Lula, Chávez e daquele estadista do Uruguai que, por renúncia à higiene burguesa, criava fungos nos dedos dos pés.
O apogeu prende-se, sem dúvida, com a homilia do Bispo Louçã “Revolução Russa e Luta Feminista”. É garantido que Sua Eminência falará do direito de voto concedido às mulheres, da legalização do aborto e, em suma, da igualdade de “género” que a URSS promoveu. Não é garantido que mencione a inutilidade do referido voto, a legalização do genocídio em geral e o respeito pela paridade que, à imagem dos cavalheiros, conduzia as senhoras ao Gulag em números apreciáveis. Suspeito igualmente que não mencionará a criminalização da homossexualidade, pormenor que talvez perturbasse a pândega “queer”. Ou, muito provavelmente, não perturbaria nada, circunstância normal num acampamento que se intitula Liberdade e se destina a proibir o que calha. A palavra a Izaura Solipa: “Não pode haver racismo, xenofobia, sexismo, ciganofobia…” Nem “ciganofobia”, Deus meu? O que sobra, então?
Sobra um processo de “educação” obviamente evocativo e caricatural do Komsomol leninista, da Gioventù Italiana ou da nossa Mocidade Portuguesa, consoante as preferências. Por mim, prefiro associar os acampamentos do BE ao Templo do Povo, o projecto de “socialismo apostólico” que convenceu um milhar de tontinhos a seguir um charlatão até à selva da Guiana e a fundar aí um enclave de demência. Em Jonestown, merecida homenagem ao charlatão, os tontinhos acreditaram nas patranhas de “Jim” Jones acerca dos perigos do “imperialismo” e das virtudes “revolucionárias”. Mal aquilo descambou, acreditaram quando ele os instigou ao suicídio por cianeto. Admito que, no acampamento do BE, não seja esse o assunto do “debate” “Direito a Morrer com Dignidade”. Ali, a ideia é viver sem dignidade nenhuma.
OPINIÃO
Infernos não faltam
Fátima dá uma imagem do catolicismo português que não corresponde à reforma desencadeada pelo Papa Francisco. Falta-lhe ser o centro da nossa evangelização.
Frei Bento Domingues OP
30 de Abril de 2017
1. Pesadelos do Inferno, evidências do Purgatório e tristezas do Limbo faziam parte da paisagem religiosa da minha infância. As Alminhas do Purgatório habitavam em dois nichos na minha aldeia. Suscitavam devoção e reciprocidade: “Vós, que ides passando, lembrai-vos de nós que estamos penando.” As pessoas lembravam-se e, para tudo o que precisavam, a elas recorriam, sabendo que aliviavam as suas penas. Em favor delas não podiam fazer nada, mas, quando invocadas com promessas cumpridas, eram uma fonte de graças para todas as ocasiões. Não desempregavam Santo António ou S. Bento da Porta Aberta, mas estavam mais à mão. As esmolas que recolhiam serviam para mandar dizer missas pelas mais abandonadas.
Eram Alminhas pintadas. Um dos nichos ficou muito estragado e foi pedido a um habilidoso de muitas artes, que periodicamente passava por lá, para o repintar. Perguntou: querem ver as Alminhas a irem para o céu ou a continuarem no Purgatório? É claro, a irem para o céu. Veio um Inverno rigoroso e a pintura desapareceu. O pintor não aceitou a queixa acerca da má qualidade das tintas. Tinham ido todas para o céu.
O Inferno era outra história. Por tudo e por nada, uma mãe zangada com os filhos (ou até com o gado), juntamente com um palavrão, exclamava: metes-me a alma no Inferno! Não era grave. Grave, muito grave, eram os sermões de preparação para o “confesso”: quem não confessasse, com todas as circunstâncias, os pecados mortais e morresse nessa situação, ia direitinho para o Inferno. A alma caía num lago de fogo, atiçado por uma multidão de diabos feios e maus e nunca mais de lá saía. O relógio infernal repetia “sempre, nunca”: aqui entraste, aqui ficas e daqui nunca sairás!
O Inferno era eterno, mais eterno que o infinito amor de Deus que nada podia fazer contra essa Instituição. O diabo tinha vencido o Anjo da Guarda e o próprio Deus.
Para as pessoas de bom senso, não havia lenha para tanta eternidade nem alma que aguentasse tanto fogo! Um bom caminho para a descrença: um deus que fabrica tais enormidades é inacreditável.
O Limbo, nem triste nem alegre, para onde iam as crianças que morriam sem baptismo, era o além mais povoado, não passava de um eterno aborrecimento. Bento XVI encerrou-o sem protestos.
2. Voltei a ler as Memórias da Lúcia de Jesus. O que diz acerca do Inferno não excede o que também eu ouvi em criança:Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados em esse fogo os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas saiam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros.” [1] Como sugestão para um filme de terror, não está nada mal. Diz a Lúcia que a Jacinta perguntava: “Porque é que Nossa Senhora não mostra o inferno aos pecadores? […]  Às vezes perguntava ainda. Que pecados são os que essa gente faz para ir para o inferno? Não sei, talvez o pecado de não ir à Missa ao Domingo, de roubar, de dizer palavras feias, rogar pragas, jurar. E só assim por uma palavra vão para o inferno? Pois! É pecado. Que lhes custava estar calados e ir à Missa? Que pena que eu tenho dos pecadores, se eu pudesse mostrar-lhes o inferno!” [2]
Passando da Terceira para a Quarta memória, há revelações curiosas. “Então Nossa Senhora disse-nos: não tenhais medo, eu não vos faço mal. De onde é vossemecê? Sou do Céu. E que é que vossemecê me quer?  lhe perguntei. Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13 a esta mesma hora, depois direi quem sou e o que quero. Depois voltarei aqui uma sétima vez. E eu, também vou para o Céu? Sim, vais. E a Jacinta? Também. E o Francisco? Também, mas tem que rezar muitos terços.
“Lembrei-me então de perguntar por duas raparigas que tinham morrido há pouco, eram minhas amigas e estavam em minha casa a aprender a tecedeiras com minha Irmã mais velha. A Maria das Neves já está no Céu? Sim, está. Parece-me que devia ter uns 16 anos. E a Amélia? Estará no Purgatório até ao fim do mundo. Parece-me que devia ter 18 a 20 anos. Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido, e de súplica pela conversão dos pecadores? Sim, queremos. Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.” [3]
3. Nossa Senhora mostrou que era uma pessoa muito organizada e pouco supersticiosa com o dia 13. Estou um bocado desapontado com a pouca originalidade das suas revelações e pedidos. Por tudo o que li, parece-me que os Pastorinhos levaram para os locais do seu pastoreio o que rezavam em família, o que aprendiam no catecismo e nas pregações. Deviam ser crianças bastante impressionáveis. A revelação mais extraordinária é, também, a mais incrível: não bastando à Amélia ter sido violada, vir de Nossa Senhora a afirmação de que ficaria no Purgatório “até ao fim do mundo”, é de mais. Isso não se faz!
A edição crítica das Memórias de Lúcia de Jesus, as investigações históricas já realizadas e em curso, vão oferecer um panorama da vida e religiosidade da freguesia de Fátima que irão atenuando os delírios acerca destes fenómenos nomeados como aparições ou como visões.
O que mais falta não é só a revisão crítica da pastoral católica da época. Muitas das suas concepções alojaram-se na história de Fátima. Desamparada, em Portugal, de uma prática crítica de reflexão teológica até ao Vaticano II, e até muito depois, Fátima dá uma imagem do catolicismo português que não corresponde à reforma desencadeada pelo Papa Francisco.
Falta-lhe ser o centro da nossa evangelização, como veremos.
[1] Lúcia de Jesus, Memórias, Edição crítica de Cristina Sobral, Fátima 2016, pp.186-187.    [2] Ib., pp. 188-189. [3] Ib., pp.230.


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