Apesar de uma aparência nobre, os cavalos, talvez pelo seu companheirismo
junto dos homens, que se tornaram “cavaleiros” – encantadora palavra - porque
os montaram, numa empatia de mútuo heroísmo e empreendimento desportivo de
extrema beleza, também tiveram denúncias de crueldade, como os tais cavalos de
Diomedes que Hércules se encarregaria de domar. Até o cavalo de Tróia, embora
de madeira, ficaria justamente manchado com o apodo de engodo a evitar, segundo
a advertência sacerdotal inútil de Laocoonte, filho de Príamo e de Hécuba, como ardil
grego destruidor de Tróia, o que seria confirmado. São José Almeida ignorou os
cavalos com as moscas da Guerra do Solnado e usou o termo “cavalo” do seu
artigo provavelmente na sequência do mito contado na Eneida, por mim lido no
meu 7º ano, cuja recapitulação surgiu uns anos mais tarde, quando, já
professora, me deliciava, em terras de África, com as histórias do Astérix, então em explosão inicial, juntamente com as do Tintim, livros
que se compravam com astucioso intuito didáctico de acompanhamento educativo
materno, mas de regozijo de leitura pessoal em primeira mão, a merecer também inclusão na fábula.
Mas o cavalo de São José Almeida, embora impregnado de essência mitológica,
contém um valor semântico de oposta índole ao do cavalo troiano. Trata-se de um
cavalo de fabrico caseiro, levado para os salões de António Costa, à imitação
de muitos outros salões anteriores, ou mesmo só cozinhas, mas com caldeirões
suficientes para o fabrico das boas amizades e das boas ou más reputações. Por
vezes os artífices do fabrico caem no caldeirão, quando se descuidam, como aconteceu com o
pobre João Ratão da alegre Carochinha, mas são histórias essas menos
escrupulosas. O artigo de São José Almeida tem uma seriedade e pertinência que
deveria fazer reflectir os visados. Antes que vire em mito mesmo.
OPINIÃO
O cavalo no meio da sala
O à-vontade com que insiste em fazer nomeações que
podem ser entendidas como promiscuidade são um cavalo que Costa devia ter o bom
senso de tirar do meio da sua sala.
São José Almeida
Público, 17
de Junho de 2017
Inúmeras vezes ouvi uma
amiga contar a história do cavalo no meio da sala. Reza assim. Uma senhora
dizia que nunca mais se metera na vida dos filhos desde que estes casaram.
Quando ia a suas casas, mesmo que os netos se portassem mal, não dizia nada. E
rematava: “Até mesmo se um dia eu vir um cavalo no meio da sala, farei de conta
que não estou a ver.” Esta história tornou-se actual. Isto porque António Costa
tem um cavalo no meio da sala. António Costa tem um problema que não quer ver.
O problema de Costa chama-se Diogo Lacerda Machado (DLM).
Entendamo-nos. DLM é
considerado pelo primeiro-ministro um negociador habilíssimo. DLM pode ser um
brilhante advogado, um ás da negociação, juntar à mesma mesa parceiros
inconciliáveis, pode ser o melhor gestor que há possibilidade de contratar em
Portugal. E isso não é problema nenhum. O problema é que DLM é amigo pessoal de
Costa. São-no há décadas, desde os bancos da faculdade. São tão amigos que
Costa o classificou em entrevista à TSF/Diário de Notícias, em 2016, como o seu
“melhor amigo há muitos anos” e acrescentou: “Temos uma relação muito próxima.”
São tão, tão amigos que Costa o convidou para padrinho de casamento.
Só que a gestão do
Estado não é um negócio de amigos, nem um casamento. Pelo contrário, a exigência
ética a que está obrigada impõe uma racionalidade que em nada se mistura com a
amizade. Obriga a que as pessoas sejam escolhidas pelo seu currículo, pelos
seus conhecimentos, pela sua experiência, pela sua capacidade, mas nunca por
nunca pelas suas amizades.
DLM pode assim ser a
pessoa mais indicada para gestor não executivo da TAP, como o podia ser antes
para negociar os dossiers BPI (acordo entre Isabel dos Santos e o
CaixaBank), lesados do BES e reversão da privatização da TAP. Mas ao ser o “melhor
amigo” do primeiro-ministro, DLM não pode ser indicado pelo Governo liderado
por Costa como representante do Estado num conselho de administração, como não
podia ter sido no passado encarregado de defender o interesse público em
negociações.
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A nomeação de um amigo
não obedece às exigências éticas da gestão do Estado, obedece a outra coisa e
essa outra coisa chama-se amiguismo, privilégio, favorecimento, clientelismo,
promiscuidade. Ora todas estas formas de relacionamento vivem paredes meias com
a corrupção. Isto não quer dizer, como é evidente, que haja qualquer indício de
corrupção na escolha sucessiva de DLM, mas o estatuto de “maior amigo” coloca a
sua nomeação num plano que pode ser considerada como um abrir de porta a uma
relação menos lícita. E cria desconfiança.
Há em política um
princípio que diz que “à mulher de César não basta ser séria, é preciso parecer
séria”. Nada do que é conhecido até hoje quer sobre DLM quer sobre Costa
indicia que não sejam pessoas sérias, mas a proximidade pessoal entre ambos
permite que a sua insistência seja vista como indiciadora de uma relação
promíscua onde se mistura o interesse público e o interesse privado, pessoal
mesmo.
E é este o cavalo que
Costa insiste em não ver no meio da sala. Como primeiro-ministro tem tido um
mandato em que o sucesso parece ser a sua estrela. Tem conseguido governar
agradando a Bruxelas e metendo os seus parceiros de maioria de esquerda no
bolso. Devolveu às pessoas confiança, distendeu o clima social e político. Pode
até vir a governar oito anos e depois candidatar-se a Presidente. Mais, Costa
exerce cargos políticos institucionais há 26 anos, 19 dos quais em funções
executivas e nunca sobre ele recaiu a mais pequena suspeita de não se guiar por
regras de ética de Estado e de seriedade pessoal e de vida. Mas o à-vontade com
que insiste em fazer nomeações que podem ser entendidas como promiscuidade são um
cavalo que Costa devia ter o bom senso de tirar do meio da sua sala. É que o
desgaste da imagem de pessoa impoluta, que estas sucessivas demonstrações de
amiguismo provocam, pode vir a ter custos no futuro político de Costa.
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