É de Óscar Wilde,
leio-a na Colecção “Biblioteca de Verão” do Diário de Notícias que
o meu marido adquiriu nos tempos áureos em que os jornais eram lidos em papel sonante
e riscável, e não na tablet sem alma, que os jornais lhe fizeram adquirir e
limitaram a produção de colecções a granel bastante enriquecedoras, como a dos Prémios
Nobel de Literatura ou a de “Mil Folhas” do Público e outras
sobre tesouros artísticos. Estamos no verão, pequenas histórias que mentes
humanas forjaram perpassam na tal colecção de leitura breve, algumas já
conhecidas, algumas de escritores portugueses como essa da “Dama Pé-de-Cabra”
de Herculano, “O Mandarim” de Eça, “A Ruiva” de Fialho, esta
última, de desvio sexual, ao jeito realista, histórias de mistério, de fantástico,
ou mesmo de sobrenatural, como é o caso de “O Fantasma de Canterville”
de Óscar Wilde.
O que me seduziu na história
de Óscar Wilde, para além da graça e elegância do seu requinte aristocrático, e
do cómico na desmistificação do mito, com um fantasma fazendo das suas e os
novos moradores, entre os quais os dois rapazes filhos do casal Otis,
pregando-lhe partidas, foi a seriedade do seu pensamento ético, ainda não
maculado pela grosseria caótica dos que, seguindo filosofias de distensão
ideológica acompanhando a expansão científica, tudo reduziram a um desprezo
pelas normas, num fácil conceito de relatividade e de “tanto faz”, em que, modernamente, nada se
impõe como virtude. Por isso tais histórias de nobreza são hoje, julgo, coisa
cediça, quase pré-histórica, para adormecer crianças, todavia com efeitos de
aprazimento a quem ainda quer acreditar em bom senso e ética.
Esta história de Óscar Wilde
destaca, entre a característica de nobreza de carácter, comum a americanos e britânicos,
povos da mesma cepa, as diferenças de pensamento - mais progressista e
descomplexado o americano democrático, mais convencional, segundo uma tradição
de aristocracia, o inglês.
Um castelo – Castelo de
Canterville – foi comprado por um diplomata americano, Hiram B. Otis - apesar
de prevenido pelo dono do castelo – Lord Canterville – de que um fantasma – Sir
Simon - o assombrava desde há séculos, que o obrigara, e à sua família, a
abandoná-lo e a vendê-lo, mas avisando, em todo o caso, o comprador, desse extraordinário
óbice a um viver tranquilo. O americano riu e agradeceu o aviso, disposto a
eliminar presságios e fantasmagorias em que não cria, lavando com produto de
limpeza adequado os vestígios da sua presença nocturna, ou levando o fantasma a
silenciar as correntes enferrujadas com óleo amaciador e protector de marca
americana. A verdade é que o fantasma conseguiu perturbar a tranquilidade dos
novos habitantes que respondiam às suas provocações com outras
desestabilizadoras da dignidade de um fantasma que se preza. Finalmente, este
morreu de vez, graças à intervenção de doçura da sensível filha do casal Otis -
Virgínia, que, apesar de pertencer a uma família de democratas, acabaria por
casar com um jovem da aristocracia inglesa.
Mas é o discurso final dos
dois proprietários – o recente e o anterior - que transcrevo, na demonstração
dessa firmeza de carácter própria de gente da mesma raiz britânica, a respeito
de uma caixa de jóias antigas que Virgínia recebeu das mãos do fantasma que
ajudou a morrer, num romantismo de oração e virtude – texto cuja transcrição, afinal,
recolhi da Internet, na sua íntegra, embora em tradução mais pretensiosa do que
a da colecção que segui. Com ela pretendo apenas insinuar quão incompreensível seria
tal diálogo por aqui, hoje, coisa verdadeiramente fantástica, se não mesmo fantasmagórica:
«Na manhã seguinte, antes
que Lord Canterville partisse para Londres, Mr. Otis conferenciou com ele a
respeito das jóias dadas a Virgínia pelo fantasma. Era de notável
magnificência, em especial certo colar de rubis com um engaste veneziano, admirável
trabalho do século dezasseis, e o valor delas todas era tal que Mr. Otis sentia
grandes escrúpulos em consentir que a filha as aceitasse.
- Lord Canterville - disse
o embaixador - eu sei que o regime dos bens chamado de mão-morta é aplicável
neste país tanto às jóias como às terras, e parece-me evidente que estas jóias
de família lhe pertencem, consequentemente. Devo, pois, pedir-lhe que as leve
consigo para Londres e que as considere simplesmente como uma parte da sua herança,
agora restituída em inesperadas circunstâncias. Quanto à minha filha, ela é
ainda uma criança e (sinto-me feliz em dizê-lo) não presta mais do que medíocre
interesse a esses vão acessórios de luxo. Além disso, minha mulher, que, ouso
afirmá-lo, é em matéria de arte uma autoridade, com a qual é necessário contar,
- ela gozou do privilégio de passar muitos invernos em Boston quando ainda era
solteira - comunicou-me terem essas jóias elevado valor monetário. Postas à
venda, atingiriam um altíssimo preço. Nestas condições, Lord Canterville, estou
certo de que compreenderá não poder eu permitir a nenhum membro da minha
família conservá-las na sua posse. E, em boa verdade, todos esses frívolos
adornos, por mais adequados ou indispensáveis que sejam à dignidade da
aristocracia inglesa, estariam absolutamente deslocados entre pessoas educadas
nos princípios severos e, suponho, imortais da simplicidade republicana.
Talvez me seja lícito acrescentar que Virgínia deseja vivamente que o senhor a
autorize a guardar para ela o cofrezinho, a título de recordação dos desvarios
e dos infortúnios desse seu antepassado. Visto que o cofre se acha muito velho
e muito estragado, talvez o senhor julgue razoável deferir este pedido. Pela
minha parte, confesso estar bastante surpreso ao ver um dos meus filhos
exprimir simpatia pelas coisas medievais, seja sob qual aspecto for, e não
posso explicar isto a mim próprio senão o facto de Virgínia ter nascido num dos
seus arrabaldes longos pouco tempo depois da chegada à Inglaterra.
Lord Canterville escutou com
muita gravidade o discurso do digno embaixador, repuxando de quando em quando
as pontas do seu bigode grisalho para dissimular um sorriso involuntário; e
quando Mr. Otis acabou de falar, apertou-lhe a mão e disse:
- Meu caro senhor, a sua
encantadora filhinha prestou a Simon, meu infeliz antepassado, um serviço de
importância, e eu e a minha família devemos muito à maravilhosa coragem dela.
Está claro que as jóias lhe pertencem; e, por minha fé, creio que se eu tivesse
tão pouco coração que as tirasse dela, o velho sairia, antes de quinze dias
decorridos, do seu túmulo e causar-me-ia uma vida de inferno. Quanto a
constituírem jóias de família, tal só seria possível se figurassem num
testamento ou em documento legal, e a existência dessas jóias me era
completamente desconhecida. Asseguro-lhe que não tenho mais direitos sobre elas
do que, por exemplo, o seu mordomo, e, ouso dizê-lo, quando Miss Virgínia for
crescida, desvanecer-se-á ao usar esses lindos objectos. 0 senhor esquece
também, Mr. Otis, que comprou em conjunto a propriedade e o fantasma, e que
tudo o que pertencia ao fantasma passou, implícita e imediatamente, para a sua
posse, pois, por maior atividade de que Sir Simon tenha dado sinal durante a
noite, nos corredores da casa, ele estava verdadeiramente morto, sob o ponto de
vista jurídico, e a aquisição feita pelo senhor tornou-o possuidor dos bens
dele.
Mr. Otis, muito comovido
com a recusa de Lord Canterville, suplicou-lhe que reconsiderasse a sua
decisão, mas o excelentíssimo membro da Câmara Alta inglesa permaneceu firme e
acabou por persuadir o embaixador de que consentisse à filha guardar o presente
do fantasma. E quando na primavera de 1890 a jovem Duquesa de Cheshire foi, por
ocasião do seu casamento, apresentada a primeira vez na recepção da rainha, as
jóias que ostentava tornaram-se tema de admiração geral.
Virgínia recebeu a coroa,
que é a recompensa de todas as boas meninas americanas, e desposou aquele que a
amava desde a infância, logo que ele atingiu a idade conveniente. Eram ambos
tão sedutores e amavam-se tanto que esta união encantava todo mundo, salvo a
velha Marquesa de Dumbleton, que havia tentado apoderar-se do duque para uma
das suas sete filhas ainda solteiras e que, com esse desígnio, dera nada menos
do que três dispendiosos jantares. E, se bem que isto possa parecer estranho, o
embaixador sentia pelo Duquezinho uma grande afeição, mas, em teoria, não era
partidário de títulos de nobreza e, para empregar mesmo palavras suas, temia um
tanto que, por causa da influência amolecedora da aristocracia, os verdadeiros
princípios da simplicidade republicana fossem esquecidos. Mas houve quem
deitasse, por terra as suas objeções; e creio bem que, ao avançar, com a filha
pelo braço, na nave da Igreja de S. Jorge, não havia, nesse instante, homem
mais orgulhoso do que ele na Inglaterra inteira...»
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