quinta-feira, 6 de julho de 2017

Uma historia de fantasmas


É de Óscar Wilde, leio-a na Colecção “Biblioteca de Verão” do Diário de Notícias que o meu marido adquiriu nos tempos áureos em que os jornais eram lidos em papel sonante e riscável, e não na tablet sem alma, que os jornais lhe fizeram adquirir e limitaram a produção de colecções a granel bastante enriquecedoras, como a dos Prémios Nobel de Literatura ou a de “Mil Folhas” do Público e outras sobre tesouros artísticos. Estamos no verão, pequenas histórias que mentes humanas forjaram perpassam na tal colecção de leitura breve, algumas já conhecidas, algumas de escritores portugueses como essa da “Dama Pé-de-Cabra” de Herculano, “O Mandarim” de Eça, “A Ruiva” de Fialho, esta última, de desvio sexual, ao jeito realista, histórias de mistério, de fantástico, ou mesmo de sobrenatural, como é o caso de “O Fantasma de Canterville” de Óscar Wilde.
O que me seduziu na história de Óscar Wilde, para além da graça e elegância do seu requinte aristocrático, e do cómico na desmistificação do mito, com um fantasma fazendo das suas e os novos moradores, entre os quais os dois rapazes filhos do casal Otis, pregando-lhe partidas, foi a seriedade do seu pensamento ético, ainda não maculado pela grosseria caótica dos que, seguindo filosofias de distensão ideológica acompanhando a expansão científica, tudo reduziram a um desprezo pelas normas, num fácil conceito de relatividade e  de “tanto faz”, em que, modernamente, nada se impõe como virtude. Por isso tais histórias de nobreza são hoje, julgo, coisa cediça, quase pré-histórica, para adormecer crianças, todavia com efeitos de aprazimento a quem ainda quer acreditar em bom senso e ética.
Esta história de Óscar Wilde destaca, entre a característica de nobreza de carácter, comum a americanos e britânicos, povos da mesma cepa, as diferenças de pensamento - mais progressista e descomplexado o americano democrático, mais convencional, segundo uma tradição de aristocracia, o inglês.
Um castelo – Castelo de Canterville – foi comprado por um diplomata americano, Hiram B. Otis - apesar de prevenido pelo dono do castelo – Lord Canterville – de que um fantasma – Sir Simon - o assombrava desde há séculos, que o obrigara, e à sua família, a abandoná-lo e a vendê-lo, mas avisando, em todo o caso, o comprador, desse extraordinário óbice a um viver tranquilo. O americano riu e agradeceu o aviso, disposto a eliminar presságios e fantasmagorias em que não cria, lavando com produto de limpeza adequado os vestígios da sua presença nocturna, ou levando o fantasma a silenciar as correntes enferrujadas com óleo amaciador e protector de marca americana. A verdade é que o fantasma conseguiu perturbar a tranquilidade dos novos habitantes que respondiam às suas provocações com outras desestabilizadoras da dignidade de um fantasma que se preza. Finalmente, este morreu de vez, graças à intervenção de doçura da sensível filha do casal Otis - Virgínia, que, apesar de pertencer a uma família de democratas, acabaria por casar com um jovem da aristocracia inglesa.
Mas é o discurso final dos dois proprietários – o recente e o anterior - que transcrevo, na demonstração dessa firmeza de carácter própria de gente da mesma raiz britânica, a respeito de uma caixa de jóias antigas que Virgínia recebeu das mãos do fantasma que ajudou a morrer, num romantismo de oração e virtude – texto cuja transcrição, afinal, recolhi da Internet, na sua íntegra, embora em tradução mais pretensiosa do que a da colecção que segui. Com ela pretendo apenas insinuar quão incompreensível seria tal diálogo por aqui, hoje, coisa verdadeiramente fantástica, se não mesmo fantasmagórica:

«Na manhã seguinte, antes que Lord Canterville partisse para Londres, Mr. Otis conferenciou com ele a respeito das jóias dadas a Virgínia pelo fantasma. Era de notável magnificência, em especial certo colar de rubis com um engaste veneziano, admirável trabalho do século dezasseis, e o valor delas todas era tal que Mr. Otis sentia grandes escrúpulos em consentir que a filha as aceitasse.
- Lord Canterville - disse o embaixador - eu sei que o regime dos bens chamado de mão-morta é aplicável neste país tanto às jóias como às terras, e parece-me evidente que estas jóias de família lhe pertencem, consequentemente. Devo, pois, pedir-lhe que as leve consigo para Londres e que as considere simplesmente como uma parte da sua herança, agora restituída em inesperadas circunstâncias. Quanto à minha filha, ela é ainda uma criança e (sinto-me feliz em dizê-lo) não presta mais do que medíocre interesse a esses vão acessórios de luxo. Além disso, minha mulher, que, ouso afirmá-lo, é em matéria de arte uma autoridade, com a qual é necessário contar, - ela gozou do privilégio de passar muitos invernos em Boston quando ainda era solteira - comunicou-me terem essas jóias elevado valor monetário. Postas à venda, atingiriam um altíssimo preço. Nestas condições, Lord Canterville, estou certo de que compreenderá não poder eu permitir a nenhum membro da minha família conservá-las na sua posse. E, em boa verdade, todos esses frívolos adornos, por mais adequados ou indispensáveis que sejam à dignidade da aristocracia inglesa, estariam absolutamente deslocados entre pessoas educadas nos princípios severos e, suponho, imortais da simplicidade republicana. Talvez me seja lícito acrescentar que Virgínia deseja vivamente que o senhor a autorize a guardar para ela o cofrezinho, a título de recordação dos desvarios e dos infortúnios desse seu antepassado. Visto que o cofre se acha muito velho e muito estragado, talvez o senhor julgue razoável deferir este pedido. Pela minha parte, confesso estar bastante surpreso ao ver um dos meus filhos exprimir simpatia pelas coisas medievais, seja sob qual aspecto for, e não posso explicar isto a mim próprio senão o facto de Virgínia ter nascido num dos seus arrabaldes longos pouco tempo depois da chegada à Inglaterra.
Lord Canterville escutou com muita gravidade o discurso do digno embaixador, repuxando de quando em quando as pontas do seu bigode grisalho para dissimular um sorriso involuntário; e quando Mr. Otis acabou de falar, apertou-lhe a mão e disse:
- Meu caro senhor, a sua encantadora filhinha prestou a Simon, meu infeliz antepassado, um serviço de importância, e eu e a minha família devemos muito à maravilhosa coragem dela. Está claro que as jóias lhe pertencem; e, por minha fé, creio que se eu tivesse tão pouco coração que as tirasse dela, o velho sairia, antes de quinze dias decorridos, do seu túmulo e causar-me-ia uma vida de inferno. Quanto a constituírem jóias de família, tal só seria possível se figurassem num testamento ou em documento legal, e a existência dessas jóias me era completamente desconhecida. Asseguro-lhe que não tenho mais direitos sobre elas do que, por exemplo, o seu mordomo, e, ouso dizê-lo, quando Miss Virgínia for crescida, desvanecer-se-á ao usar esses lindos objectos. 0 senhor esquece também, Mr. Otis, que comprou em conjunto a propriedade e o fantasma, e que tudo o que pertencia ao fantasma passou, implícita e imediatamente, para a sua posse, pois, por maior atividade de que Sir Simon tenha dado sinal durante a noite, nos corredores da casa, ele estava verdadeiramente morto, sob o ponto de vista jurídico, e a aquisição feita pelo senhor tornou-o possuidor dos bens dele.
Mr. Otis, muito comovido com a recusa de Lord Canterville, suplicou-lhe que reconsiderasse a sua decisão, mas o excelentíssimo membro da Câmara Alta inglesa permaneceu firme e acabou por persuadir o embaixador de que consentisse à filha guardar o presente do fantasma. E quando na primavera de 1890 a jovem Duquesa de Cheshire foi, por ocasião do seu casamento, apresentada a primeira vez na recepção da rainha, as jóias que ostentava tornaram-se tema de admiração geral.

Virgínia recebeu a coroa, que é a recompensa de todas as boas meninas americanas, e desposou aquele que a amava desde a infância, logo que ele atingiu a idade conveniente. Eram ambos tão sedutores e amavam-se tanto que esta união encantava todo mundo, salvo a velha Marquesa de Dumbleton, que havia tentado apoderar-se do duque para uma das suas sete filhas ainda solteiras e que, com esse desígnio, dera nada menos do que três dispendiosos jantares. E, se bem que isto possa parecer estranho, o embaixador sentia pelo Duquezinho uma grande afeição, mas, em teoria, não era partidário de títulos de nobreza e, para empregar mesmo palavras suas, temia um tanto que, por causa da influência amolecedora da aristocracia, os verdadeiros princípios da simplicidade republicana fossem esquecidos. Mas houve quem deitasse, por terra as suas objeções; e creio bem que, ao avançar, com a filha pelo braço, na nave da Igreja de S. Jorge, não havia, nesse instante, homem mais orgulhoso do que ele na Inglaterra inteira...»

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