Duas mulheres, três, quatro, mais… Também passaram por nós na distância
televisiva, figuras públicas do êxito mediático de então, anos 70 e 80, Natália
Correia na sua verve de poetisa cimeira, na expressão da temática
amorosa ou a do vanguardismo em moda, acompanhada pela exuberância sensual e
desinibida de mulher de uma beleza indiscreta, Helena Roseta de uma
trajectória intelectual mais moderadamente organizada, na simulação oportunista
das suas verdadezinhas demagógicas, onde o que estava a dar era o exibicionismo
fácil das Claras Pinto Correia, jogando os trunfos da mocidade radiosa
no vazio presunçoso e vão de idealismos aparentes, ou os discursos
histrionicamente acusatórios das Odetes Santos que, naturalmente, deixaram
a sua semente no chão estreito da nossa presunção de cultura e libertação, tanto
a feminina como a masculina, não há que duvidar.
Maria João Avillez,
apesar do que conta no seu artigo sobre Simone Veil, da relação
com Natália Correia e Helena Roseta, viveu, julgo, mais apagada
do que aquelas, não só pela circunstância de ser apenas jornalista, então, como
talvez porque ofuscada pelo brilho batalhador da sua irmã Maria José
Nogueira Pinto, que recordo como figura frontal que sempre apreciei,
como já apreciava a probidade intelectual de seu marido, Jaime Nogueira
Pinto, desde o livro deste, “Portugal, os anos do fim”. Mas também Maria
João Avillez sempre se mostrou de um pensamento corajoso e honesto nas
entrevistas que recordo, e só ultimamente tenho vindo a ler com mais
assiduidade e verdadeiro encanto por uma expressão literária brilhante e um
conceito de vida enriquecido pela experiência de muitas outras paragens geográficas
e humanas.
Este artigo sobre Simone Veil, que entrevistou e admirou nos tempos áureos
da saliência política daquela, refere dados de uma biografia rica em
experiências e êxitos de um combate por direitos femininos que tanto a
projectaram e lhe dão nome. Mas o artigo de Maria João Avillez ganha dimensão na
referência a um passado tenebroso vivido por Simone Veil, de vítima de Auschwitz,
felizmente escapada, o que não sucedeu à sua família, mas cristalizando em
horror um pensamento definitivamente condenado ao inferno do não esquecimento.
Recordando
Simone Veil (e tudo o que lhe devo)
2/7/201,
Memórias de um
jantar e de uma entrevista a Simone Veil, do seu olhar azul claro como um rio,
da sua serenidade que quase camuflava a mulher forte, a espantosa inteligência,
a coragem como assinatura.
1. Quando soube
que ela nos deixara não foi preciso preencher a folha branca da memória com uma
qualquer recordação, um dito sonante, uma frase de efeito. Não. Simone Veil
surgiu-me intacta e inteira, tal como há mais de trinta anos, quando a
entrevistei, no início dos anos oitenta. Do que eu me lembrava — com pura
exactidão, aliás — era daquilo mesmo que reencontrei ontem, escrito por mim nas
páginas de um jornal, há muito tempo: um certo tom, o olhar azul claro como um
rio, uma serenidade que quase camuflava a mulher forte, uma espantosa
inteligência, a coragem como uma assinatura. E a delicadeza como primeira
impressão.
Lembro-me de me ter sido quase
impossível vislumbrar a brutalidade demencial do sofrimento por detrás do
seu tailleur Chanel, mas por detrás do tailleur e da
delicadeza estava Auschwitz. A deportação aos 16 anos e sem pré-aviso, de Nice
(onde vivia) para o campo de concentração com a família; a morte do pai e do
irmão no extermínio nazi; os tempos à guarda de uma gerente prisional
paranóica, com a mãe e a irmã. Por detrás do olhar claro estava o inominável
mas o que sobretudo estava era a fibra e a “indomabilidade”, traduzidas no
regresso á vida após a sobrevivência ao inominável. Dias depois do nosso
primeiro encontro ela haveria de repetir muitas vezes para o meu gravador, a
palavra “humilhação”:
“Entre todas as consequências físicas
e morais da deportação, uma das mais difíceis foi a humilhação. A humilhação
até ao mais fundo de nós próprios…” (e tive vontade de chorar).
2. Quando a
conheci em Lisboa, Simone Veil estava há muito ancorada no topo das sondagens
em França, fazendo uma espécie de improvável par com Michel Rocard que, à
esquerda, também tinha lugar cativo na preferência dos franceses. Simone
estivera nos Governos do Presidente Giscard D’Estaing, e passara à oposição,
Rocard saltara do exílio socialista para o poder com Mitterrand, vindo a
chefiar um dos seus governos em Maio de 1988.
Fosse porém no poder ou na oposição,
eram um e outro, Veil e Rocard, amados com persistente desvelo pelos seus
conterrâneos.
3. Encontrámo-nos
num (memorável) jantar promovido por Helena Roseta, num domingo à noite num
restaurante da Baixa, numa mesa onde se sentaram apenas a própria Simone,
Natália Correia, a anfitriã Roseta e eu, e sabe-se como as mulheres são, como
dizer? incomparavelmente exímias nestas coisas da conversa no feminino.
Fabricando de imediato um clima
onde se manuseiam afinidades e cumplicidades e onde tudo cabe, da trivialidade
à substância, da marca de um baton a uma decisiva escolha de vida. Pequenas
comédias e grandes dramas, debruados por uma inoxidável curiosidade.
Foi mais ou menos isto que se
passou num jantar onde a diferença de línguas e gerações foi irrelevante face à
total liberdade dos discursos e à partilha jubilosa da mesa e do momento.
Simone Veil tinha cinquenta anos, estava loquaz e parecia feliz diante daquele
português terceto que lhe ouviu recordar pedaços de vida, ilusões, desilusões.
Combates. E lamentos: como o da “exaustão dos sistemas”, numa alusão ao cansaço
provocado pela “pequena politica”, ou a certas dificuldade de encaixar o seu
anti-conformismo (que em muito ultrapassava a mera fronteira entre direita e
esquerda) no conformismo do universo político francês a que se referia como uma
“pagaille”.
Foi sobretudo muito surpreendente
constatar como após ter obtido, em nome próprio, duas gloriosas vitórias
políticas, ela se crispava (o olhar azul claro também podia ser de aço) com “a
dificuldade de ser mulher” no “impiedoso “ turbilhão da vida pública francesa….
Marginal, Simone Veil? Não, independete. Individualista, talvez.
“Contestatária”, haveria de me confessar, acrescentando um “sempre” para que
não restassem dúvidas. “Indisciplinada” como também sublinharia, rindo. E
combatente férrea, lembro eu agora, porque recordo como foi férrea com as suas
causas e as rotas que elas lhe sinalizavam. Como na Lei da Interrupção
Voluntária da Gravidez, que na qualidade ministra da Saúde conseguiu, após
hercúlea luta, fazer aprovar no parlamento francês, em 1975, um ano após ter
entrado para o governo de Giscard. (“Eu estava sozinha, rodeada de 400
parlamentares maioritariamente contra mim, usando de uma agressividade
detestável! Então houve uma espécie de transfer, as pessoas diziam: ‘eis aqui
esta mulher, a bater-se nestas condições…’”)
O seu mais forte apoio
seria aliás o próprio Presidente, que começou por lhe dizer que “queria
mulheres no seu Governo” (“ele percebia que as mulheres têm um olhar diferente
sobre a cidade e tudo o que faz a vida. Um olhar mais enriquecedor”, recordou
ela). E depois não foi senão o mesmíssimo Valery a apressá-la com a legislação
sobre a interrupção voluntária da gravidez.
“O Presidente
chamou-me e disse-me: ‘se não trata depressa deste problema um dia terá um
aborto selvagem no seu próprio gabinete!”
Simone Veil tratou. Tratou
com aquela firmeza que parece tranquila como certas enganadoras águas, mas que
nunca cede e ignora o meio caminho. As meias tintas, a meia coisa, categorias
que dela inteiramente destoavam.
Também foi assim no
Parlamento Europeu, a que presidiu entre 1979 e 1982, tendo sido a primeira
mulher (eleita por sufrágio directo e universal) a ocupar tal cargo. A vitória
não lhe impediu porém alguns amargos de boca:
“Para mim foi
claríssimo que havia gente ali que pura e simplesmente não suportava que o
Presidente fosse uma mulher.”
“Certos parlamentares
não teriam ousado certas coisas se eu fosse um homem…Bem, digo-lhe de outra
maneira: em relação ao Presidente que me substituiu, não se ousa agora o mesmo
tipo de dureza, nem se procuram situações expressas para o deixar ficar mal…”
4. Foi
óptimo naquela serão escutá-la a “pensar”, a discorrer sobre a condição
feminina, a recordar este ou aquele episódio, a contar inofensivas anedotas dos
grandes deste mundo que conhecera quando era ministra, ou presidia ao parlamento
europeu.
Uma mulher simples?
“Não sou sofisticada,
tenho imensos complexos (passo a minha vida a tentar dominá- los), mas não sou
complicada, falo das coisas da vida quotidiana… não, não pense que me quero
agora fazer passar por uma modesta empregada doméstica! Claro que sou uma
privilegiada, mas ao mesmo tempo continuo a levar uma vida muito próxima da
vida de muita gente. É possível ver-me na praça, vou há dez anos ao
cabeleireiro do meu bairro de quem sou muito amiga, ando na rua. Em geral os homens
políticos são muito mais desgastáveis.”
5. Dias
depois encontrei-me a sós com ela. Tratava-se de uma
entrevista, exit restaurantes e confidências, a política e a
jornalista estavam agora face a face, com um gravador pelo meio. Simone Veil
tinha então nova batalha pela frente e mobilizava-se para ela: o seu nome
encabeçaria a lista com que a oposição francesa (na altura RPR e UDF) iria
disputar as eleições francesas ao parlamento europeu. Sabia-se que se tinha
batido como uma leoa para que houvesse uma só lista na família da oposição.
Convencendo Raymond Barre, demovendo Chirac, exigindo a Giscard. Reclamando,
insistindo, combatendo. Acreditando. Em si e na (óbvia) bondade da lista única.
Meses depois, Simone Veil ganharia a batalha. Outra.
Mais temas e mais
gente se cruzaram connosco no nosso diálogo, como a condição feminina (“por
vezes, nalgumas situações, ainda é humilhante ser mulher. Como no trabalho, por
exemplo”) mas o que me tocou, o que retive, o que em muito ultrapassou o mero
diálogo político — mesmo que vivo, mesmo que inteligente, mesmo que no feminino
— foi Auschwitz.
“As recordações são
vivas na medida em que, de repente, há uma impressão, um odor, algo… Quanto
mais não seja, uma súbita impressão de frio ou de sono… E às vezes, à noite, um
sonho transporta-nos de novo, em cheio, para a deportação. Mas por vezes é
também muito vivo por causa dos elos especiais, particularíssimos, que mantemos
com os camaradas de deportação… Elos sem nada de comum com o resto, uma união
totalmente fora do mundo, e onde acontece de imediato uma espécie de diálogo,
de cumplicidade, que não tem nada a ver com o tipo de relação que mantemos com
a família, os amigos, os íntimos… É totalmente outra coisa. Temos uma linguagem
só nossa, que nos pertence, que usamos entre nós e que de resto enerva
excepcionalmente os outros porque não a suportam. É necessário que nos vejamos
unicamente entre nós porque ninguém, mais ninguém, aguenta a maneira como
falamos no campo, na deportação. Mas ao mesmo tempo a deportação foi algo de
tão inimaginável que mesmo se nos lembramos de coisas muito precisas, muito
concretas, quando estamos juntos, ainda hoje não acreditamos que tivesse sido
possível… Que tivéssemos mesmo vivido tudo aquilo… É qualquer coisas que está
para além da realidade, da distância, de (pausa) tudo…”
6. Reli
tudo isto e muito mais, estes dias. Como agradecer a Deus ter-me cruzado com
alguém assim? Ter podido ouvir, a sós com Simone Veil, o que dela ouvi? Deve
haver poucos testemunhos com este grau de precisão no horror e no decalque do
inferno. E com esta tão despida, derisória, íntima, simplicidade no contar o
incontável.
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