terça-feira, 4 de julho de 2017

Mulheres


Duas mulheres, três, quatro, mais… Também passaram por nós na distância televisiva, figuras públicas do êxito mediático de então, anos 70 e 80, Natália Correia na sua verve de poetisa cimeira, na expressão da temática amorosa ou a do vanguardismo em moda, acompanhada pela exuberância sensual e desinibida de mulher de uma beleza indiscreta, Helena Roseta de uma trajectória intelectual mais moderadamente organizada, na simulação oportunista das suas verdadezinhas demagógicas, onde o que estava a dar era o exibicionismo fácil das Claras Pinto Correia, jogando os trunfos da mocidade radiosa no vazio presunçoso e vão de idealismos aparentes, ou os discursos histrionicamente acusatórios das Odetes Santos que, naturalmente, deixaram a sua semente no chão estreito da nossa presunção de cultura e libertação, tanto a feminina como a masculina, não há que duvidar.
Maria João Avillez, apesar do que conta no seu artigo sobre Simone Veil, da relação com Natália Correia e Helena Roseta, viveu, julgo, mais apagada do que aquelas, não só pela circunstância de ser apenas jornalista, então, como talvez porque ofuscada pelo brilho batalhador da sua irmã Maria José Nogueira Pinto, que recordo como figura frontal que sempre apreciei, como já apreciava a probidade intelectual de seu marido, Jaime Nogueira Pinto, desde o livro deste, “Portugal, os anos do fim”. Mas também Maria João Avillez sempre se mostrou de um pensamento corajoso e honesto nas entrevistas que recordo, e só ultimamente tenho vindo a ler com mais assiduidade e verdadeiro encanto por uma expressão literária brilhante e um conceito de vida enriquecido pela experiência de muitas outras paragens geográficas e humanas.
Este artigo sobre Simone Veil, que entrevistou e admirou nos tempos áureos da saliência política daquela, refere dados de uma biografia rica em experiências e êxitos de um combate por direitos femininos que tanto a projectaram e lhe dão nome. Mas o artigo de Maria João Avillez ganha dimensão na referência a um passado tenebroso vivido por Simone Veil, de vítima de Auschwitz, felizmente escapada, o que não sucedeu à sua família, mas cristalizando em horror um pensamento definitivamente condenado ao inferno do não esquecimento.  
Recordando Simone Veil (e tudo o que lhe devo)
2/7/201,
Memórias de um jantar e de uma entrevista a Simone Veil, do seu olhar azul claro como um rio, da sua serenidade que quase camuflava a mulher forte, a espantosa inteligência, a coragem como assinatura.
1. Quando soube que ela nos deixara não foi preciso preencher a folha branca da memória com uma qualquer recordação, um dito sonante, uma frase de efeito. Não. Simone Veil surgiu-me intacta e inteira, tal como há mais de trinta anos, quando a entrevistei, no início dos anos oitenta. Do que eu me lembrava — com pura exactidão, aliás — era daquilo mesmo que reencontrei ontem, escrito por mim nas páginas de um jornal, há muito tempo: um certo tom, o olhar azul claro como um rio, uma serenidade que quase camuflava a mulher forte, uma espantosa inteligência, a coragem como uma assinatura. E a delicadeza como primeira impressão.
Lembro-me de me ter sido quase impossível vislumbrar a brutalidade demencial do sofrimento por detrás do seu tailleur Chanel, mas por detrás do tailleur e da delicadeza estava Auschwitz. A deportação aos 16 anos e sem pré-aviso, de Nice (onde vivia) para o campo de concentração com a família; a morte do pai e do irmão no extermínio nazi; os tempos à guarda de uma gerente prisional paranóica, com a mãe e a irmã. Por detrás do olhar claro estava o inominável mas o que sobretudo estava era a fibra e a “indomabilidade”, traduzidas no regresso á vida após a sobrevivência ao inominável. Dias depois do nosso primeiro encontro ela haveria de repetir muitas vezes para o meu gravador, a palavra “humilhação”:
“Entre todas as consequências físicas e morais da deportação, uma das mais difíceis foi a humilhação. A humilhação até ao mais fundo de nós próprios…” (e tive vontade de chorar).
2. Quando a conheci em Lisboa, Simone Veil estava há muito ancorada no topo das sondagens em França, fazendo uma espécie de improvável par com Michel Rocard que, à esquerda, também tinha lugar cativo na preferência dos franceses. Simone estivera nos Governos do Presidente Giscard D’Estaing, e passara à oposição, Rocard saltara do exílio socialista para o poder com Mitterrand, vindo a chefiar um dos seus governos em Maio de 1988.
Fosse porém no poder ou na oposição, eram um e outro, Veil e Rocard, amados com persistente desvelo pelos seus conterrâneos.
3. Encontrámo-nos num (memorável) jantar promovido por Helena Roseta, num domingo à noite num restaurante da Baixa, numa mesa onde se sentaram apenas a própria Simone, Natália Correia, a anfitriã Roseta e eu, e sabe-se como as mulheres são, como dizer? incomparavelmente exímias nestas coisas da conversa no feminino.
Fabricando de imediato um clima onde se manuseiam afinidades e cumplicidades e onde tudo cabe, da trivialidade à substância, da marca de um baton a uma decisiva escolha de vida. Pequenas comédias e grandes dramas, debruados por uma inoxidável curiosidade.
Foi mais ou menos isto que se passou num jantar onde a diferença de línguas e gerações foi irrelevante face à total liberdade dos discursos e à partilha jubilosa da mesa e do momento. Simone Veil tinha cinquenta anos, estava loquaz e parecia feliz diante daquele português terceto que lhe ouviu recordar pedaços de vida, ilusões, desilusões. Combates. E lamentos: como o da “exaustão dos sistemas”, numa alusão ao cansaço provocado pela “pequena politica”, ou a certas dificuldade de encaixar o seu anti-conformismo (que em muito ultrapassava a mera fronteira entre direita e esquerda) no conformismo do universo político francês a que se referia como uma “pagaille”.
Foi sobretudo muito surpreendente constatar como após ter obtido, em nome próprio, duas gloriosas vitórias políticas, ela se crispava (o olhar azul claro também podia ser de aço) com “a dificuldade de ser mulher” no “impiedoso “ turbilhão da vida pública francesa….
Marginal, Simone Veil? Não, independete. Individualista, talvez. “Contestatária”, haveria de me confessar, acrescentando um “sempre” para que não restassem dúvidas. “Indisciplinada” como também sublinharia, rindo. E combatente férrea, lembro eu agora, porque recordo como foi férrea com as suas causas e as rotas que elas lhe sinalizavam. Como na Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez, que na qualidade ministra da Saúde conseguiu, após hercúlea luta, fazer aprovar no parlamento francês, em 1975, um ano após ter entrado para o governo de Giscard. (“Eu estava sozinha, rodeada de 400 parlamentares maioritariamente contra mim, usando de uma agressividade detestável! Então houve uma espécie de transfer, as pessoas diziam: ‘eis aqui esta mulher, a bater-se nestas condições…’”)
O seu mais forte apoio seria aliás o próprio Presidente, que começou por lhe dizer que “queria mulheres no seu Governo” (“ele percebia que as mulheres têm um olhar diferente sobre a cidade e tudo o que faz a vida. Um olhar mais enriquecedor”, recordou ela). E depois não foi senão o mesmíssimo Valery a apressá-la com a legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez.
“O Presidente chamou-me e disse-me: ‘se não trata depressa deste problema um dia terá um aborto selvagem no seu próprio gabinete!”
Simone Veil tratou. Tratou com aquela firmeza que parece tranquila como certas enganadoras águas, mas que nunca cede e ignora o meio caminho. As meias tintas, a meia coisa, categorias que dela inteiramente destoavam.
Também foi assim no Parlamento Europeu, a que presidiu entre 1979 e 1982, tendo sido a primeira mulher (eleita por sufrágio directo e universal) a ocupar tal cargo. A vitória não lhe impediu porém alguns amargos de boca:
“Para mim foi claríssimo que havia gente ali que pura e simplesmente não suportava que o Presidente fosse uma mulher.”
“Certos parlamentares não teriam ousado certas coisas se eu fosse um homem…Bem, digo-lhe de outra maneira: em relação ao Presidente que me substituiu, não se ousa agora o mesmo tipo de dureza, nem se procuram situações expressas para o deixar ficar mal…”
4. Foi óptimo naquela serão escutá-la a “pensar”, a discorrer sobre a condição feminina, a recordar este ou aquele episódio, a contar inofensivas anedotas dos grandes deste mundo que conhecera quando era ministra, ou presidia ao parlamento europeu.
Uma mulher simples?
“Não sou sofisticada, tenho imensos complexos (passo a minha vida a tentar dominá- los), mas não sou complicada, falo das coisas da vida quotidiana… não, não pense que me quero agora fazer passar por uma modesta empregada doméstica! Claro que sou uma privilegiada, mas ao mesmo tempo continuo a levar uma vida muito próxima da vida de muita gente. É possível ver-me na praça, vou há dez anos ao cabeleireiro do meu bairro de quem sou muito amiga, ando na rua. Em geral os homens políticos são muito mais desgastáveis.”
5. Dias depois encontrei-me a sós com ela. Tratava-se de uma entrevista, exit restaurantes e confidências, a política e a jornalista estavam agora face a face, com um gravador pelo meio. Simone Veil tinha então nova batalha pela frente e mobilizava-se para ela: o seu nome encabeçaria a lista com que a oposição francesa (na altura RPR e UDF) iria disputar as eleições francesas ao parlamento europeu. Sabia-se que se tinha batido como uma leoa para que houvesse uma só lista na família da oposição. Convencendo Raymond Barre, demovendo Chirac, exigindo a Giscard. Reclamando, insistindo, combatendo. Acreditando. Em si e na (óbvia) bondade da lista única. Meses depois, Simone Veil ganharia a batalha. Outra.
Mais temas e mais gente se cruzaram connosco no nosso diálogo, como a condição feminina (“por vezes, nalgumas situações, ainda é humilhante ser mulher. Como no trabalho, por exemplo”) mas o que me tocou, o que retive, o que em muito ultrapassou o mero diálogo político — mesmo que vivo, mesmo que inteligente, mesmo que no feminino — foi Auschwitz.
“As recordações são vivas na medida em que, de repente, há uma impressão, um odor, algo… Quanto mais não seja, uma súbita impressão de frio ou de sono… E às vezes, à noite, um sonho transporta-nos de novo, em cheio, para a deportação. Mas por vezes é também muito vivo por causa dos elos especiais, particularíssimos, que mantemos com os camaradas de deportação… Elos sem nada de comum com o resto, uma união totalmente fora do mundo, e onde acontece de imediato uma espécie de diálogo, de cumplicidade, que não tem nada a ver com o tipo de relação que mantemos com a família, os amigos, os íntimos… É totalmente outra coisa. Temos uma linguagem só nossa, que nos pertence, que usamos entre nós e que de resto enerva excepcionalmente os outros porque não a suportam. É necessário que nos vejamos unicamente entre nós porque ninguém, mais ninguém, aguenta a maneira como falamos no campo, na deportação. Mas ao mesmo tempo a deportação foi algo de tão inimaginável que mesmo se nos lembramos de coisas muito precisas, muito concretas, quando estamos juntos, ainda hoje não acreditamos que tivesse sido possível… Que tivéssemos mesmo vivido tudo aquilo… É qualquer coisas que está para além da realidade, da distância, de (pausa) tudo…”

6. Reli tudo isto e muito mais, estes dias. Como agradecer a Deus ter-me cruzado com alguém assim? Ter podido ouvir, a sós com Simone Veil, o que dela ouvi? Deve haver poucos testemunhos com este grau de precisão no horror e no decalque do inferno. E com esta tão despida, derisória, íntima, simplicidade no contar o incontável.

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