E apodamo-nos nós de democratas, mas o cinismo aristocrático usado pelos
que têm poder, indica que esses que gerem os destinos dos povos são tão
ditadores como aqueles que eles condenaram e substituíram no poder e de quem continuam
a falar com desprezo, para mostrar quanto são diferentes e democratas, que até
aceitam as greves e as reivindicações dos populares fraternos da “vila morena”.
Mas é evidente que as coisas levam os seus trâmites, e os esbanjamentos
excessivos de uns são causa das dificuldades superiores de outros. Só que
agora, para amaciar as asperezas relativamente às pessoas que deles dependem –
quer se trate dos governantes, quer dos donos das empresas – usa-se o
subterfúgio da linguagem cada vez mais especializada e imponente, escondendo a
violência e o desprezo no artifício e frieza dos chavões sábios e falsamente
atenuadores do sofrimento dos “morituri” do “Ave Caesar” de todos os tempos. O
artigo de Bagão Félix é, não um prato, mas uma travessa cheia das tais iguarias
vocabulares, apresentadas num discurso expressivo de grande efeito satírico.
Mas o cinismo não é moeda que se perca facilmente num mundo onde as
disparidades são cada vez mais profundas, na aparente amálgama de
igualitarismos como puras ficções de um zelo agressivo, e esse cinismo irá
manter-se e desenvolver-se cada vez com mais requinte na linguagem encobridora
de acções drásticas dos que têm o poder, como bem explica Bagão Félix e
o comprovam os seus comentadores:
Público, 30 de Março
Correcção política ad nauseam
A linguagem politicamente correcta continua a expandir-se em extensão e
compreensão. Abarca quase todas as áreas, incluindo a religiosa, talvez com a
excepção do futebol onde predomina o chico-espertismo umas vezes mais rasca,
outras vezes mais diplomático.
Na linguagem gestionária e na economia é notória a invasão, acantonamento e
militância da correcção política. No debate de há dias na AR, o Primeiro-ministro garantiu que não haverá
despedimentos na CGD, respondendo a Jerónimo de Sousa. Haverá – tão-só –
reformas antecipadas e rescisões amigáveis, disse. Um feito, direi,
fechando balcões, reduzindo estruturas e eliminando postos de trabalho.
Verdade seja dita que a sua resposta foi a habitual de políticos e gestores nas
mesmas circunstâncias. Hoje, para gáudio da correcção política, não há
despedimentos, apenas “rescisões por mútuo acordo” (convencionalmente
amigáveis) e reformas generosamente antecipadas ou, numa visão global,
falar-se-á de uma “reestruturação” (com o indispensável prefixo re)
ou downsizing (em modo anglófono e erudito). Obviamente, tudo
polvilhado com “flexibilidade”.
Exaustivamente replicada há, também, a consagradíssima classificação das
pessoas nas organizações como “recursos humanos”, que, bem vistas
as coisas, está cada vez mais adequada à lógica pura e dura de coisificar o
trabalho e de se ser mero meio ou instrumento e não sujeito e fim das acções.
Nós não somos recursos (humanos). Os nossos recursos é que são humanos.
Curiosa é também a expressão estatística de “trabalhador desencorajado” que
é o desempregado que desistiu de procurar activamente trabalho, depois de
muitas e infrutíferas tentativas. Estatística e politicamente, esta
classificação permite retirar este desempregado (da população activa) para não
desempregado (na população inactiva). Prevejo que, dentro em breve, o Eurostat
venha até a classificar um desempregado como “alguém em transição entre
empregos” …
Entre um vasto rol de expressões politicamente correctas na gestão e
economia, refiro algumas das mais usuais: em termos de pirueta matemática, “crescimento
zero” ou, mais atrevidamente, “crescimento negativo” em vez de
estagnação ou recessão económica (na mesma lógica, prevejo o gastador passar,
generosamente, a “poupador negativo”); “consolidação orçamental”
que, quase sempre, continua a significar défice, apenas mais pequeno e nem
sempre escorreito; “livro branco”, instrumento muito usado para
simular ou procrastinar decisões (e que pode ser conjugado com outras cores,
como o verde e azul, e o notável “no paper” eurocrata); “imparidade”,
termo que tanto pode ser usado no seu verdadeiro sentido técnico, como ser
alargado a flagrantes erros de gestão, fraudes e outras maquinações; “descontado”
que é o que se diz de um facto ou efeito já concretizado e que constitui
hoje uma poderosa arma de previsão económica … a posteriori; “arquitectura
organizacional”, mistura explosiva de belas-artes com o agora costume de
adjectivar um substantivo com o maior número de letras e que, não raro, faz jus
ao lampedusiano teorema de que é preciso mudar algo para que tudo fique na
mesma; “engenharia financeira”, que, muitas vezes, não passa de
serralharia…; “customizar”, um anglicismo que dá jeito para
algumas ilusórias técnicas de venda em que se faz-de-conta que o cliente conta;
“sinergia” que ora se usa no seu verdadeiro sentido ou se emprega
para disfarçar conflitos de interesses. Claro, tudo isto bem “focado” e
“alavancado”…
Ah! A mais recente: “economia colaborativa”, onde se inserirá,
creio, a Uber.
Comentários
Ana Ruivo
2 Abril
Tenho uma enorme admiração pelo Dr. Bagao Félix que consegue com a sua
enorme cordialidade ser assertivo e pôr o dedo na ferida de uma forma clara e
independente obedecendo apenas à sua consciência e que muito contribui para o
nosso esclarecimento sendo ele uma pessoa que sabe do que fala ao contrário de
muitos que só fazem ruído para nos desinformar.
Filipe Martins
Acho que está a confundir o politicamente correcto com eufemismos. Creio
que a intenção do primeiro é tentar conter o discurso primário, para o qual se
resvala tão facilmente; o segundo, é só para endrominar a malta.
PC
Há piores. “Financiamento”, “ir aos mercados”, “vender dívida”, “injecção
de capital” que querem todos dizer “pedir dinheiro emprestado porque se gastou
mais do que o que se podia”. E até não me importo que os políticos usem essa
linguagem. O que me importo é que a comunicação social não a desmonte e fale
como eles.
Victor Nogueira
Muito interessante e de fina ironia para lá do pesadelo que as situações
enunciadas possam ser na realidade como “inconseguimentos”
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