Já sei que não vou conseguir recolher para o meu blog, em condições, este
texto de José Pacheco Pereira. Não entendo o motivo de não se deixarem
transcrever os artigos dos jornais que entendemos apoiar causas ou ideias que
nos seduzem, tal como o podemos fazer com os clássicos que a Internet põe à
disposição, para enriquecimento nosso, aprazível e orientador. Não se trata de
plagiar, mas, pelo contrário, levar ao conhecimento dos que eventualmente nos
leiam, (além de guardarmos para nós, como preciosidade), algo que achamos belo
e útil e susceptível de ser seguido, como os escritos didácticos dos filósofos
ou dos moralistas. Mas os jornais decidiram que tal não é ético e tenho pena.
O artigo de José Pacheco Pereira trouxe-me à ideia o que me contou a
Sabine, uma alemã que já percorreu o mundo ocidental, que se fixou no
Canadá, mas que, por motivos pessoais de morte do marido e de alergia ao clima
canadense e aos altos preços das casas, veio para Portugal, continuar a sua
tarefa de correspondente comercial mal paga, que vai sobrevivendo no mare magnum
das dificuldades inerentes à luta existencial dos que trabalham para subsistir.
É claro que tem saudades de um viver canadense mais desenvolto intelectualmente
do que por cá, e uma das coisas de que tem saudades é das bibliotecas públicas
que frequentava e onde as pessoas se reuniam para ler e trocar ideias sobre os
livros que lêem, coisa que por aqui não encontra.
Não é o mesmo das bibliotecas especiais estadunidenses que aponta Pacheco
Pereira, mas, enfim, tudo isso serve de estímulo a uma vida de menos mândria
intelectual do que por cá se passa. Aqui, trocamos às vezes impressões de
leitura, e emprestamo-nos livros, como fez há dias a minha filha, que expôs
sobre um livro que agora ando a ler – “Adoração” – de Cristina
Drios, entrecho bem urdido a propósito de um quadro de Caravaggio, que ziguezagueia
entre o passado e o presente, talvez um pouco rebuscadamente, mas com inegável
perícia discursiva.
Não, não é o mesmo do que conta Pacheco Pereira no Público de
29 de Abril, sobre as “Livrarias muito especiais” de orientação
política, mas nenhum mal viria ao mundo com a transcrição de um documento que
nos mostra mundos diferentes do nosso, além de ser crónica a ter em conta, como
modelo literário:
OPINIÃO: «Livrarias muito especiais»
Quem gosta de livros e da diversidade do mundo vai a
estes microcosmos políticos com prazer.
José Pacheco Pereira
29 de Abril de 2017
Há muitos anos que
sempre que estou em Nova Iorque visito várias livrarias muito especiais: livrarias
empenhadas na luta política, livrarias radicais e alternativas. O seu
número tem baixado muito nas últimas décadas, têm desaparecido do centro da
cidade, e atiradas para os subúrbios, mas continuam a ser obrigatórias para
quem, como eu, procura livros, panfletos, brochuras fora
do mainstream das livrarias tradicionais.
É verdade que muita
coisa já se encontra na Rede, mas é completamente diferente escolhê-las numa
livraria onde se pode folhear, comprar e ter uma noção física do livro ou
brochura. Não é preciso ser um nostálgico do livro impresso, que não sou,
para considerar que ainda há uma considerável vantagem na observação física dos
livros e brochuras, em determinadas circunstâncias.
As livrarias políticas
militantes tendem a ser daquilo que na Europa se chama extrema-esquerda, embora
a definição de radical se aplique melhor aos casos de que falamos. A direita
radical não deve gostar muito de livrarias, porque embora existam algumas, por
exemplo, em Espanha, são excepções. Há alguns anos, ainda
pude frequentar, com algum espanto de principiante, a livraria pioneira do
libertarianismo, uma corrente política tipicamente americana e que tem
conseguido nas eleições um honroso terceiro lugar depois dos democratas e dos
republicanos. Essa livraria, a Laissez Faire Books, que ainda existe
como editora, tinha essa mistura que me parecia completamente bizarra de livros
e panfletos de Marx, Bakunine, Hayek e Milton Friedman, a apresentava-os como
um legado coerente.
Mas hoje os pilares das
livrarias radicais em Nova Iorque, que visitei várias vezes e sobre as quais já
escrevi, são a Bluestockings e a Revolution Books, dois exemplos muito
interessantes porque são muito diferentes. E na sua diferença mostram
tradições de radicalismo que emanam de uma visão do mundo tão diferenciada que,
tendo alguns livros em comum, são “mundos” com ordens e tradições nos antípodas
uma da outra. Ambas são virulentamente anti-Trump, mas as semelhanças acabam
aqui.
A Bluestockings foi e
ainda é uma livraria feminista, embora hoje as suas estantes tenham todo o
catálogo de movimentos e de causas do radicalismo americano (e neste caso
europeu): os estudos de género, o capitalismo global, a ecologia, a situação
prisional, estudos sobre os negros, a educação radical, etc.. Mas a livraria,
que é de propriedade colectiva e funciona com o apoio de voluntários, é também
um centro comunitário, onde se realizam várias reuniões das mais estranhas
causas e grupos. Tive uma vez a ocasião de assistir de lado a uma realizada sob
o efeito da paulada enorme da eleição de Trump, que teria mais ou menos dez
pessoas, incluindo um velho hippie, uma jovem mãe com o filho ao colo e um
activista muito self-righteous que pretendia conduzir a reunião, no
meio do caos das intervenções, com bastante autoritarismo. Não demorei um
segundo para perceber que a luta anti-Trump não seria certamente liderada pela
Bluestockings, mas hoje já não estou tão certo disso. A grande manifestação
anti-Trump, uma das maiores de sempre nos EUA, foi conduzida por mulheres, e as
jovens raparigas que estavam ao balcão fazem parte da massa de pessoas que fez
essas manifestações.
Mas a Bluestockings não
é apenas um catálogo das múltiplas causas activistas — é um espelho total do
mundo “politicamente correcto” levado até ao absurdo. O café servido é
obviamente “zapatista”, e alguns produtos que se podem comprar são resultado do
“comércio justo”, e são coisas orgânicas, vegan e com outras
classificações, havendo mesmo algumas que a minha condição masculina me impede
de perceber — culpa minha —, como sejam “produtos menstruais alternativos”. Há
também uns álbuns para as crianças colorirem sobre a vagina, e todo o espaço é
amigável a quem venha de cadeira de rodas, uma boa coisa, embora não se aplique
à casa de banho, para o que é necessário ir a um Starbucks perto. Uma coisa
estranha é a prevenção de que, mesmo não sendo um “espaço livre de cheiros”, o
que se pode facilmente verificar, nem por isso se deixa de “desencorajar” o uso
de perfumes, águas-de-colónia, óleos essenciais, sendo que fumar é
proibidíssimo e só pode fazer-se “bem longe” da entrada. Todas as citações
entre aspas estão no site da livraria.
A população da livraria
é predominantemente feminina e jovem, e percebe-se que não vive nem nas altas
nem nas médias esferas do “capitalismo global”, e como está situada numa zona
pobre da cidade percebe-se que o seu trabalho comunitário atrai uma frequência
local com alguma marginalidade que encontra ali um espaço para estar, para ler
quando não se tem dinheiro para comprar livros, ou para levar comida e lá
comer, numa ou duas mesas colocadas debaixo do letreiro em madeira de uma das
últimas lutas sociais e raciais nos EUA, “black lives matter”. Cá fora, na
vitrina, resume-se a livraria: livros radicais, café barato, acontecimentos
estimulantes e “beautiful community”. Longa vida, Bluestockings!
Na outra ponta da
cidade, em Harlem, na Avenida Malcolm X, sobrevive uma outra livraria muito
especial, a Revolution Books, nos antípodas da sua irmã do Sul. Onde na
Bluestockings reina um certo caos, num espaço que não brilha pela limpeza, a Revolution
Books ofusca de lavado, num espaço cuidadosamente organizado onde nada está
fora de ordem. As pessoas que mantêm a livraria são também mais velhas, e
em nada se distinguem na maneira de vestir e na atitude do comum das pessoas da
sua idade e condição. São, em muitos casos, velhos militantes que desde os anos
60 e 70 acompanharam esta tradição do radicalismo americano.
Conheço a livraria desde
quando ainda estava em Midtown Manhattan e nada mudou. Aliás, na Bluestockings
também não. O espaço em Harlem é maior e por isso ainda melhor se percebe que
estamos perante uma organização dotada de um enorme sentido de ordem, o que não
é estranho porque a livraria está ligada a um partido comunista, o Partido
Comunista Revolucionário, e a uma personagem parecida com o “grande educador”,
Bob Avakian.
Tudo na livraria celebra
Bob Avakian, um dos raros casos actuais no mundo ocidental de culto da
personalidade no contexto comunista. A sua última obra
sobre o “novo comunismo” é imediatamente aconselhada e há postais com citações
de Avakian, pins e T-shirts com o seu rosto, e várias
estantes com obras suas desde a sua autobiografia aos seus livros sobre
religião, ciência, política, e múltiplas brochuras com textos seus. Na minha
missão de caçador-recolector, lá comprei as últimas obras de Avakian, e recolhi
todos os panfletos e periódicos que pude.
O mundo da Revolution
Books é claramente militante, e o grupo está ligado a alguns dos movimentos
mais radicais contra Trump, mas, como é habitual na tradição comunista, a
livraria é pouco ecléctica e variada, principalmente nas publicações em
brochura e panfletos. Enquanto na Bluestockings as estantes estão cheias
de fanzines e publicações alternativas, a Revolution Books, como tem
uma “linha”, pouco se afasta da norma. Vida longa também para a Revolution
Books!
Tenho pena que a Laissez
Faire Books tenha acabado e já vi suficientes livrarias acabar ou, ainda pior,
normalizar-se para se tornarem todas iguais, uma espécie de montra de papel
pintado com “novidades” de ontem iguais às de hoje. Por isso, quem gosta de
livros e da diversidade do mundo, vai a estes microcosmos políticos com prazer.
P. S. Dou o dito por não dito. Afinal, o texto de Pacheco Pereira "entrou" bem, o que não aconteceu no escrito anterior, embrulhado com o da apresentação.
Mas já consegui emendar. Agradeço, embora não saiba a quem.
Mas já consegui emendar. Agradeço, embora não saiba a quem.
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