quarta-feira, 17 de junho de 2009

A reposição dos Exames para uma sociedade mais firme

O tema da Opinião Pública na Sic foi hoje sobre exames. Gostei de ouvir vozes abalizadas de professores a defenderem a necessidade dos exames e não só de Português e Matemática. Era necessário um retomar de questões em exames das várias disciplinas, que contribuíssem para uma chamada à responsabilização, com efeito moderador sobre a indisciplina escolar, segundo o parecer experiente de uma professora que interveio.
Foi como se ouvisse uma estranha música celestial, há muito extinta do nosso espaço mental. Mas a disciplina só seria possível desde que se repusessem, igualmente, provindos do Ministério, conceitos de exigência e respeito, que não significam necessariamente subserviência à autoridade do professor, mas uma conscientificação imprescindível sobre a função de cada um.
Creio que a banalidade, o exibicionismo, a futilidade, a acefalia tomaram conta da nossa sociedade, como consequência da degradação do ensino. Disso nos apercebemos, sobretudo, quando assistimos a determinadas programações televisivas, mesmo das elites sociais, que se dirigem requebros mútuos sobre as vestimentas, os penteados ou as jóias, ou comentam sobre os comportamentos privados, próprios ou alheios, publicitados na imprensa chamada cor de rosa, em vazio poderoso que definitivamente nos arremessa para o refugo do mundo dito civilizado.
E cada vez será pior, porque trinta e cinco anos passados, continuamos a debitar as mesmas tolices pedagógicas que destruíram o equilíbrio e instituíram o atraso e a deficiência como crosta, cada vez mais densa, cobrindo este pobre país sem rumo, que nem aqueles jovens realmente conscientes conseguirão já fazer eliminar, quando por seu turno assumirem as rédeas da governação ou dos seus próprios ofícios.
Mas o escutar as críticas dos opinadores do Canal 5 da Sic, fez-me evocar os inícios dessas transformações pedagógicas nos anos sessenta e setenta, a que tentei, com a coragem do desespero, objectar em inútil intervencionismo. Nessa altura preparava-se já a desordem que se traduziu no golpe de Abril, convinha desestruturar, instituindo o caos e a anarquia, desresponsabilizando, invertendo a ordem e a justiça, fazendo trepar de voo para lugares cimeiros os que não tinham competência, muitas vezes, sequer para lugares da base.
Mas destruir é mais fácil. O despertar das consciências, no abismo de desordem mental para que os sucessivos governos sucedâneos a esse golpe contribuíram em políticas educativas propiciadoras do atraso, da mediocridade e da irresponsabilidade, não resultará nunca mais. Nem mesmo – e sobretudo - com a estranha força maquiavélica de uma actual ministra da Educação, que alardeia princípios de sanidade educativa e só consegue sanear quem já deu provas de ser educador são.
Embora sinta que estou abusando deste espaço, com transcrições de textos antigos, achei que poderão servir de reflexão a quem se interesse pela questão, tão relevante na construção ou destruição do país, e assistida por tantos de nós, no decorrer do tempo.

É do livro “Prosas Alegres e Não” (1973) que transcrevo o texto “Exames e Doçuras”, como pobre alerta contra a irracionalidade e a perversão que iam avassalando gradativamente o sector educativo, em liberalidades trazidas de fora, de um “Maio de 68” transgressor, que nos apressámos a copiar, sem termos a qualidade cultural favorável a recuperação, como tem a França e os outros países em que a formação do Homem foi sempre ponto assente, mau grado os desníveis sociais resultantes de variedade de factores:

Tudo nesta vida são modas, e uma das modas actualmente em moda é a da contestação, do ataque às estruturas, do apoio a tudo o que transforme o vale de lágrimas da vida de antanho num vale de delícias ou jardim edénico, onde tudo seja fácil e mais doce.
Referimo-nos especialmente a determinado sector desta urbe lourençomarquina, autêntico oráculo do saber pois, revelando vastidão de cultura em todos os campos, discute, com muitos dados e alguns dardos, todos os assuntos, no propósito louvável de mostrar que todos somos ceguinhos e só eles vêem. Também falaram de exames, tendo-os desapoiado.
E no entanto, esses mesmos que assim contestam a validade dos exames, são os primeiros a criticar a incompetência e impreparação dos professores e a deficiência do ensino em geral.
Ora não nos parece que a eliminação dos exames contribua grandemente para aumentar o nível mental da nossa gente. De facto, somos um povo abúlico, muito de “deixar correr”, com energia e vivacidade apenas para discutir futebol e saias às esquinas ou pelos cafés. E política, também, sim senhor! Todos somos competentes para construir e orientar os meandros da política nacional e estrangeira, os que o fazem de facto é que não percebem nada.
Em nossa opinião, a eliminarem-se os exames, desaparecerá, pelo menos por uns meses, aquela efervescência natural do período, forjadora de uma nova vida, com o fervilhar estudantil. A eliminarem-se os exames, mais incompetências se formarão, pois bem sabemos como transitam alguns alunos aos anos imediatos, com deficiência apenas numa disciplina, mas na realidade deficientes em duas e às vezes três, com a nova lei da “nota votada” pelo conselho de turma. A eliminarem-se os exames, a selecção e apuramento deles resultantes desaparecerão igualmente.
Ora, apesar dos atractivos da vida remansosa, não nos parece que seja essa a mais plena de significado e de realização. E os exames significarão, para o estudante, maior apreensão de elementos culturais, desejo de vencer um novo ano, e para alguns mais briosos, desejo de o fazer com brilho. Os exames trarão a revisão das matérias, trarão o interesse pela luta, o gosto pelas próprias disciplinas de estudo.
Se há desvantagens nos ditos exames, a maior ainda supomos que seja a não correspondência exacta, em muitos casos, entre o valor próprio e a nota obtida, pois todos sabemos como o nervosismo próprio da ocasião é tantas vezes desfavorável ao aluno mais aplicado, enquanto o à-vontade e descontracção de outro mais incompetente, o ajudam na sua relativa ignorância.
Os estudantes têm sido cada vez mais beneficiados (?) com a dispensa de exames para os que atingem determinada média, com a cada vez maior limitação de matérias, com a possibilidade de transitarem com deficiências, etc., mas a triste realidade é que, de ano para ano, o nível intelectual dos alunos vai diminuindo, transformando a missão docente, tão bela em princípio, cada vez mais em tarefa de pura frustração e desorientação para o professor mais cônscio.
Por isso não concordamos que se eliminem os exames, pois esse facto só irá favorecer a preguiça, a ignorância, o torpor dos nossos estudantes, para quem as aulas são apenas sinónimo de aborrecimento, de que reagem por algum caso mais ou menos anedótoco provocador da gargalhada, única forma de os despertar da passividade com que, dum modo geral, escutam a lição do professor.”


Do livro “Anuário – Memórias Soltas” (1999), transcrevo o texto “A PROPÓSITO DE UM TEXTO “PEDAGÓGICO”, com que, uma vez mais inutilmente, tentei chamar a atenção para a nossa crise educativa, com reflexos fundos na nossa crise social:

“Qualquer Língua, como veículo preponderante da comunicação, requer um trabalho minucioso “ab initio”, em torno da expressão escrita como da expressão oral.
Quando a cada passo somos bombardeados na rua, nos meios de comunicação, nas simples frases dos nossos alunos, com dislates linguísticos atentatórios do próprio bom senso, sentimos quanto se torna premente o retorno a um ensino mais exigente e mais sério.
Quando lemos as composições de alunos dos cursos complementares subvertendo totalmente as normas da pontuação, da acentuação, da ortografia, da translineação, das mais simples normas da coerência discursiva, achamos que, sem um “volte-face” pedagógico que reponha a seriedade no ensino, condenamos irremediavelmente a nossa Língua a uma progressiva corrupção e a um primitivismo vil e indecoroso, mau grado as excepções cada vez mais circunscritas a elites, quando o objectivo seria a sua generalização.
Quando uma estratégia precipitada de apuramento de capacidades discursivas elege uma prova geral de acesso à categoria de documento decisivo, minimizando - ou, pelo contrário, superlativando - o trabalho de três anos de Complementares, e originando situações de graves injustiças, condenamos o processo que, entendendo camuflar a própria responsabilidade na impreparação discente - por motivo de uma dinâmica geral de ensino sem seriedade - se propõe estabelecer mais um travão irrisório no acesso ao ensino superior antes de reformar os princípios básicos, distorcendo os valores, indiferente às capacidades reveladas ao longo de três anos, e promovendo incapacidades, através de critérios díspares e subjectivos de correcção de provas.
Consideramos quão indispensável se torna o retorno a uma pedagogia menos centrada no lúdico e na facilidade e mais apoiada em suportes construtivos do entendimento, como sejam a interiorização de valores por meio de um trabalho de memorização das estruturas básicas, sem que esse processo seja demagogicamente ironizado como próprio de psitacismo acéfalo, bem mais confrangedor na recitação balofa de princípios políticos do mundo adulto, ou no palrar sem conteúdo de tantos oradores de pacotilha, sem que ninguém se lembre de lhes apontar a acefalia ou o psitacismo inócuo.
Porque o desenvolvimento da inteligência e do entendimento passa também pela interiorização de conceitos e de estruturas linguísticas que favorecem uma progressiva clarificação das ideias, com o concomitante domínio da expressão oral e escrita.
Por isso, no ensino básico, indispensável se torna o regresso à aquisição de conceitos em função do respeito pela formação dos alunos e de idêntico respeito pelo valor das matérias veiculadas, quer sejam os valores morfossintácticos da língua, quer as tabuadas, quer a história e a geografia nacionais, quer os conceitos simples ligados ao universo físico que rodeia o aluno.
O programa “Rua Sésamo” que as criancinhas de três e quatro anos seguem perfeitamente absortas, repetindo posteriormente o alfabeto ou os números que ouviram, não se afasta do princípio, e bom seria que as escolas primárias o repusessem como motivação dos alunos das primeiras letras. Hoje, aliás, a tecnologia oferece meios extraordinários de motivação das aulas, meios audiovisuais que tão depressa introduzem o aluno no mundo da música ou da recitação, como o levam a viajar nos espaços temporais da história, ou físicos da ciência, da geografia e da arte. Tais programas não podem deixar de favorecer o gosto pela aquisição de conhecimentos e o despertar das inteligências pelos mecanismos de reflexão que propõem.
O que especialmente nos choca nas programações emanadas dos órgãos processadores, é a excessiva preocupação pelo bem-estar dos alunos. Como se, pelo facto de impor normas de conduta mental e cívica, a escola tivesse forçosamente de significar espaço de mal-estar e de desfazamento total com o mundo da família e da sociedade em que se integram os alunos! Acentua-se a “décalage” , e de tal maneira que cada vez mais a família e a comunidade são chamadas a interferir no foro escolar.
Tais princípios, que a reforma educativa segue com zelo subserviente, encontramo-los expressos nas pedagogias adeptas da escola activa e construtivista, e não resistimos a citar o texto “Comment combattre l’échec scolaire en dix leçons” por Philippe Perrenoud, Genève, 1985, cujo título nos chamou a atenção para a “poção mágica” de combate ao insucesso que ele fazia prever. Parece-nos de grande utilidade o seu conhecimento pelos docentes, quer pela justeza de certas observações indispensáveis a uma clarificação de princípios, quer pelo utópico e menos pertinente de algumas propostas que, ao invés de elevarem o ensino formando valores indispensáveis ao progresso, implicam antes uma descida do nível geral, ao pretenderem limitar o insucesso através de uma diversificação, em cada aula, de estratégias e graus de ensino incompatíveis com o peso horário de cada disciplina e com a carga numérica dos alunos por sala.
Do mesmo documento consta a tentativa de colmatar o desajustamento entre a escola e o meio, pela minimização do papel do professor, reduzido a “animador de grupos”, pela minimização dos conhecimentos a transmitir, já que se parte de uma definição de objectivos em que pontua o mais pequeno denominador comum dos saberes exigíveis, e pela maximização do papel do aluno, chamado a colaborar, a transmitir as suas próprias aquisições do meio exterior à escola.
Tais premissas vão de encontro à preocupação explícita nos nossos programas educativos de definir “escola” como espaço de “bem-estar”, e tudo isso nos parece de uma demagogia fútil e provinciana, que vive em êxtase perante o estrangeiro, para obter o estatuto de evoluído, sabendo que essas teorias pedagógicas não são aplicadas lá fora, onde se pede competência, responsabilidade e compostura aos alunos, nem cá dentro nos próprios institutos de línguas, exigentes de aplicação e de esforço mental.
Pretender integrar o aluno no mundo adulto pelo apelo constante às suas próprias experiências e à sua criatividade, é proporcionar a anarquia mental e física, é favorecer a indolência, é destruir a cultura e desautorizar o professor, é pretender arrancar do nada o que se traduzirá em resultado nulo, é contrariar o princípio clássico de que o engenho e a criatividade são fruto de um progressivo estudo, é, enfim, usar de sofisma e dolo com os professores e os alunos, já que os exames finais são exigentes das suas competências específicas, indiferentes aos princípios pedagógicos tão amoravelmente descritos à partida.
O mal-estar da escola provém, sim, das deficientes condições em que geralmente nela se trabalha, no desconforto de salas e átrios pingando quando chove, sem aquecimento, sem bibliotecas nem laboratórios atraentes e funcionais que ajudem à formação dos nossos alunos.
Nesse mal-estar não tocam os programas facundos e falazes. É do outro, desse que impõe disciplina e rigor, que transmite e exige conhecimentos aos atribulados alunos, condenados a ultrapassar a precariedade das suas breves experiências, pela exigência de uma teorização cada vez mais lúcida e organizada. Esse mal-estar é que choca as sensibilidades dos programadores, com a adesão imediata dos alunos sem interesses nem brio.
Todo este alarido das pedagogias que põem em causa a função da escola e o papel do professor não passa, quanto a nós, de snobismo derrotista, criador de fantasmas, e no fundo hipócrita e mais perverso do que a imagem da escola e do professor tradicionais - dogmáticos, bloqueadores, fechados ao mundo - que elas criticam. Porque o “espaço de prazer” em que pretendem converter a escola, pela flexibilização dos saberes e dos contributos, falseia a realidade do mundo competitivo e cruel que espera o jovem à saída da escola, o qual lhe exige a competência que à partida lhe retirou.
Sem negarmos o valor duma interacção equilibrada entre a escola, a família e o meio, parece-nos utopia pretender uma identificação desses espaços em que se movem as crianças, uma uniformização absurda, que contrasta com o mundo compartimentado criado pelo homem.
Por esse motivo, consideramos o texto citado um atentado à dignidade da cultura e daqueles que para ela contribuíram através dos tempos, para além do seu efeito corrosivo sobre a formação dos nossos jovens, quase diríamos de tão grave consequência como a que é ocasionada pelos efeitos da droga, porque tão propícia, como esta, à puerilidade. (1990).”


Mas a maioria da massa estudantil, cada vez mais desmotivada e debilitada para o “espectro” dos exames, que há muito se eliminou das suas competências, dificilmente seria reconduzida a essas ancestralidades educativas.
Nem compreendo mesmo como o programa da Sic se atreveu a trazer à luz, tão atrevidamente, o tema sobre a necessidade dos exames!
Foi um risco deliberado. Cautela é coisa sempre indispensável. Tal como a canja.
Mas o risco maior, quanto a mim, é ainda o de poder vir a ser apodada de fascista.

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