quinta-feira, 4 de junho de 2009

O “desolamento” como genérico nacional

Começou por se erguer num salto extremamente ágil subindo as escadas com elegância, antes de, airosamente, falar no “desolamento”.
Não, não estou a imitar o Eça das “Singularidades de uma rapariga loura” que inicia o seu conto da confissão de Macário com o mesmo verbo “começar”: “Começou por me dizer que o seu caso era simples e que se chamava Macário”.
Não se trata, também da “desolação” do Macário quando descobriu que a loura e angelical Luísa, por quem passara todas as passas do Algarve ao Minho para o consórcio de ambos, consórcio sempre adiado pelos imprevistos da má sorte aliada à má cabeça crédula do jovem sofredor, a doce Luísa não passava de uma “ladra”, que se fora às jóias de um ourives e lhe furtara um anel, após um longo historial de desvios de que Macário não se apercebera, no seu enlevo de enamorado ingénuo.
Trata-se, sim, do “desolamento” do Dr. Vital Moreira, ao que parece professor catedrático de reais competências, como o Eng. José Sócrates no-lo apresentou. Eu mal vi isso, ficando a mascar sobre o termo, tentando descortinar se fora isso o que o Dr. Vital Moreira pronunciara de facto, ou se eu entendera mal, em vez de isolamento, condimento, barlavento, tormento ou outro qualquer lamento próprio do seu posicionamento no “sufocamento” do nosso envolvimento diário.
Ainda tentei os noticiários seguintes para confirmar, mas não voltaram a mostrar o salto, nem a subida das escadas, nem a expressão do “desolamento” do Dr. Vital. Por isso julgo que não me enganei, e que ele disse mesmo isso que eu ouvi, pois que, se se retiraram essas imagens é porque se sentiu o efeito pernicioso do neologismo sobre estas, comprovativas de uma esbelteza a toda a prova, excepto na prova da língua. Por isso não atentei no resto do discurso, apenas centrada nas dúvidas da minha surpresa. Todavia, não julgo terem sido os motivos da eleição europeia os responsáveis do seu “desolamento”, pois nos seus diversos discursos tenho sobretudo detectado ataques e ironias aos demais partidos, coisa, aliás, do repertório andarilho de reciprocidade comum a todos.
Tudo isso eu atribuo aos efeitos corrosivos do Acordo Ortográfico, embora me digam que já enjoa essa referência inútil e desprezada pela maioria indiferente. Felizmente que o “Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa contra o Acordo Ortográfico” continua em marcha, já quase com 120 000 assinaturas, pese embora a inutilidade disso para os nossos pátrios governantes. Eles dão-se melhor com os dislates linguísticos que lhes servem de capa aos seus próprios, linguísticos ou outros.
Às vezes entristeço. “Tem dias”, em todo o caso, que me apetece ser como o “Trasilau” das “Oitavas ao Desconcerto do Mundo” do nosso Camões, que, enlouquecendo - refiro-me a Trasilau - julgava suas as naus do porto do Pireu. O pior foi que o desvelo fraterno do mano Crito o fez recuperar a sanidade e, assim, da megalomania, que o tornava um feliz Onassis. “Tem dias”, repito, que me apetece exclamar, como ele, contra “o inimigo irmão com cor de amigo” que o tirou “da mais quieta vida e livre em tudo que nunca pode ter nenhum sisudo” e lhe pediu que lhe devolvesse o seu primitivo estado “que eu te aviso que na doudice só consiste o siso”.
Mas o Engenheiro Sócrates não se importaria, adaptado como está a este nosso “desolamento”, e nada interessado em que sejam nossas as naus do Pireu. As naus são todas suas, o siso todo seu.

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