quinta-feira, 25 de junho de 2009

“Ela não fala na crise”

Mais uma vez a minha amiga se exaltou quando coscuvilhávamos sobre as notícias diárias, tão pungentes na sua maioria, e contou de uma amiga sua, senhora de vastas alcavalas da vida, a quem ela, já há alguns anos, alertava para os gastos incomensuráveis neste país, as falcatruas, os acidentes de percurso nas obras, que se prolongavam interminavelmente, tal como as da igreja de Santa Engrácia do passado, e com as consequentes derrapagens financeiras de agora e de todo o sempre, por sina velha. Mas em vão a alertara, pois a amiga da minha amiga até se espantara, já que crise não tinha e não reparara na do país.
Mas a douta referência da minha amiga às obras de Santa Engrácia, tornada chavão na língua, da figura de retórica forjada pela lenda, provocou uma certa derrapagem na nossa conversa, pois me apressei a replicar não se tratar, agora, da maldição, como lera na Internet, lançada outrora pelo cristão novo Simão Pires, por pura vingança por ter sido injustamente condenado à morte, acusado de ter roubado as relíquias da igreja, quando ele apenas se entretivera a namoriscar uma tal de Violante, encerrada contra vontade no convento de Santa Clara ali perto. As obras da Igreja de Santa Engrácia, então em começo, jamais teriam fim, segundo o anátema por ele lançado. E assim ficou na lenda, como termo de comparação.
Logo ela, admitindo o seu chavão, como esconjuro banalizado, sublimou-o, arriscando que poderia ter sido só uma vingança sobre os carrascos eclesiásticos a do dito cristão novo, mas o que é certo é que tivera pronto reflexo sobre o país inteiro, muito dado a protelar, a preguiçar, a derrapar, a falsear e a falsificar, a não concluir, pelo menos segundo os cálculos pré-estabelecidos para qualquer obra, de dinheiros sempre dispersos ao longo das morosas obras em curso, geralmente por fraudes ignoradas por conveniência vária, ou só descobertas anos depois.
Nisso concordei e voltámos à sua amiga desconhecedora destas realidades, ou de tal modo assente nelas que preferira ignorá-las, aquando da dita conversa, desviando o assunto, bem situada no seu palacete esplendoroso, como vemos em alguns filmes dos tempos áureos da América. “Ela não fala na crise”, foi o compungido remate da minha amiga.
Ainda referimos como tudo se tem vindo a decompor, de tal maneira que vivemos assentes em puro lamaçal de degradação e escândalo, mas como nos está no sangue, até apoiamos o PM que é um jovem cheio de garra para se auto-elogiar e não responder às questões que o põem em causa, vestindo sempre bem, sempre amado pelos seus e suas fãs, que são muitos, aliás, também como os do nosso cantor de voz frágil, Tony Carreira, protegido e venerado pelo nosso povo amante de festival, mesmo sob sol escaldante, em comezainas para o Guiness.
Rematámos as nossas coscuvilhices com o comentário bisonho de que há muito merecemos o Guiness. E não só pelas comezainas, como a nossa conversa muito bem exemplificou.

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