quarta-feira, 3 de junho de 2009

“How do you feel?”

Eu já tinha respondido a esta pergunta. Num genérico não sei se muito correcto na sua abrangência, no último texto do meu livro “Pedras de Sal”, que transpus como 2ª edição para “Cravos Roxos”, para este poder constituir um todo cronístico com mais relevante sequência informativa em relação ao que se costuma apelidar de “Revolução dos Cravos”.
Transcrevo-o, não para reproduzir façanhas, mas para mostrar que o jornalismo, em termos de perguntas inanes, não evoluiu nada, e eu tenho pena. Não como o Alberto Caeiro que desejava ser o “pó da estrada”, ou “os rios”, ou “os choupos”, ou “o burro do moleiro” em vez de “ser o que atravessa a vida olhando atrás de si e tendo pena”.
Não sou passadista como ele foi, entre tantos outros seus atributos extraordinários. Sou contra o imobilismo acéfalo, e na questão das perguntas tremendamente idiotas a pessoas que vibram em êxtases de alegria, ou sucumbem nos desvarios das dores, toda eu me revolvo de asco e de vergonha, com a pergunta: “Como se sente”? dos jornalistas. Por isso reproduzo aqui o texto “Os Colonos”, escrito há trinta e cinco anos, com uma das respostas, pertinentes ou não, à tal pergunta:

A Metrópole chamava às suas colónias, colónias. Mais tarde disseram-lhe que isso parecia mal perante os estrangeiros que se iam desfazendo das deles e a Metrópole, em zelo dedicado, passou a chamar-lhes províncias, conquanto aos seus habitantes não apelidasse, de modo algum, de provincianos. Pelo contrário, toda aquela gente das cidades ou das províncias metropolitanas vinda para estas terras adquiria ares muito mais arejados, apesar do seu afastamento da Europa civilizada. Quando regressava à terra-mãe, o ultramarino conduzia na sua bagagem um certo aspecto desenxovalhado, bem distante do aspecto provinciano com que de lá partira anos atrás.
Alguns – tantos! – por cá ficavam e ganhavam amor a estas paragens e aqui iam contribuindo para o progresso da terra que – aprenderam na instrução primária – pertencia a um povo outrora corajoso e forte, de heróis do mar, como lhes transmitia o hino nacional da sua pátria.
Mas recentemente a designação de “províncias” foi ainda modificado para a de “estados”, a perspectivar, sem dúvida, o estado de perturbação que, já se sabia, havia de surgir.
E surgiu, finalmente. Parece que havia muitas pressões externas de outros povos também colonialistas, mas desejosos de se redimirem desses defeitos mostrando boa vontade para com os negros mal explorados por nós, para depois os poderem explorar eles melhor.
Os metropolitanos aceitaram incondicionalmente o estado de perturbação, que aliás se perpetrava há muito no seio deles, cansados de enviarem os seus filhos para uma guerra inútil, pois de antemão perdida, por falta de convicção, mau grado o proveito económico dela advindo para grande parte.
As colónias, ou províncias, ou estados, passaram a ser um estorvo, e com grande alarido e profusão de flores românticas, entregaram os estados a quem os queria, voltando imediatamente a chamar-lhes colónias, sem sequer passarem pelo estado intermédio de províncias.
E os habitantes das províncias ultramarinas regressaram à base como colonos vexados, e disseram-lhes que eles foram muito cruéis e exploradores - colonos, em suma.
Os colonos encolheram-se humilhados, e lá se foram amanhando à procura de um cantinho no solo pátrio de onde haviam partido – eles ou os seus antepassados.
E os metropolitanos, cheios de vontade de disfarçar, por meio dessa designação pejorativa, a verdadeira razão de todos estes tristes acontecimentos – o seu egoísmo, cobardia e decadência moral - recebem os colonos com alarde, na rádio e na imprensa, interrogando-os sobre o que eles pensam e sobre o que eles sentem.
E os colonos sentem-se muito honrados com a distinção de que são alvo por parte dos seus irmãos metropolitanos não colonos, e pensam que valeu a pena o seu retorno à pátria e o desfazer das suas vidas e ilusões, só para aparecerem na televisão.”

Eis um exemplo de resposta possível à pergunta “Como se sente?” que, monocordicamente, se continua a fazer, para mostrarmos a nossa sensibilidade ou conivência para com o entrevistado, quer este tenha recebido um troféu de ouro ou prata ou bronze, quer tenha escapado de uma qualquer tragédia. Aconteceu ontem. Um jovem que esteve para embarcar no avião vindo do Brasil que se despenhou no Atlântico foi entrevistado com a pergunta sacramental: “Como se sente?” Claro que teve que contornar a sua alegria, para não ferir as susceptibilidades das famílias dos que não tiveram a mesma sorte. Respondeu cautelosamente que, muito triste, embora, pelos outros que morreram, se sentia muito feliz por ele, que continuava vivo.
Estamos na época do divã, de imitação programática televisiva, com o psicólogo a desentranhar do seu paciente memórias dos seus complexos. Duvido que uma pergunta dessas faça parte do repertório do psicólogo analista. Mas duvido também que a pergunta do repórter pretenda obter qualquer efeito catártico sobre o entrevistado.
Trinta e cinco anos depois, a mesma pergunta: “How do you feel”? Como é possível que não se sintam tristes e mesmo frustradas as pessoas que a fazem, como quem pergunta, mecanicamente, desinteressado da resposta, o “como está” do chavão das boas maneiras? A isto só me apetece retorquir, não com o também mecânico chavão “Bem, muito obrigado”, mas com uma graça que me fez rir muito, de surpresa, quando a ouvi da boca de alguém, de alegre e inconveniente desfaçatez, agradecendo o bom repasto, na minha casa acolhedora dos tempos passados: “Òbrigadinho é o que eu lhe desejo!”

Nenhum comentário: