segunda-feira, 22 de junho de 2009

Textos reaccionários

A reacção do Sr. Almeida Rato a um texto meu, de simples homenagem ao patrono do Jornal “PortugalClub”, sr. Casimiro Rodrigues, pela sua hombridade, coragem e sentimento pátrio nele demonstrado, além da autenticidade da sua democracia liberal, lembrou-me outras reacções doutros “Almeidas” e minhas dos tempos do início, e por isso transcrevo a sequência dos textos infra, mau grado o seu tamanho, abusando assim, uma vez mais, da liberalidade do Sr. Casimiro Rodrigues, e esperando que o Sr. Almeida Rato os leia com a precisa atenção.
Verificará que não me acobardo com pedradas, que também me foram lançadas em tempos ainda mais temíveis – os do início da sua revolução “democrática”, a que o senhor aderiu, se tinha idade para isso, para poder calar os que sempre se afirmaram responsavelmente livres, e que não viviam submersos no ódio - como tantos construtores de baladas unilateralmente generosas - embora soubessem igualmente criticar os desmandos sociais, que eram muitos, sem terem que subverter, forçosamente, os alicerces da sua nação, que só a ausência de sentimentos pátrios e a presença exclusiva de sentimentos de afirmação própria, pelo atropelo, fizeram destruir, como deve saber por experiência.
Fazem parte do livro “Pedras de Sal” (1974), contido, em 2ª edição, em “Cravos Roxos” (1981):

1º Texto: “Madalena e as Pedradas”, o último da minha colaboração na “Página da Mulher” do “Notícias” de Lourenço Marques, mas publicado noutra secção – “Tribuna Livre” - por algum arrojado orientador dessa Secção, provavelmente saneado a seguir:

«Sempre ouvi dizer que pertencíamos a um povo subdesenvolvido e pouca cotação tínhamos no mercado da desenvoltura internacional. Essa situação humilhante, conquanto verificada também nos outros séculos, atribuía-se exclusivamente à tal ditadura subjugante que não deixava libertar os espíritos num caminho próprio e amplo, apesar de o José Régio se atrever a gritar que ia por ali e jamais por onde o mandassem, mesmo que o mandassem com vontade. Ele tinha a dele e dali não arredava pé.
Afinal, desde que se impôs a todos nós um outro regime de liberalização de ideologias, tenho-me apercebido de profundas transformações, que se reflectem numa imprensa dinâmica e arejada, e nas próprias vozes dos locutores, mais viris e orgulhosas, explicando, timbrada e eloquentemente, os pontos de vista dos diversos sectores de opinião.
Com imenso prazer, observo que somos tão cultos como os outros povos, com ideias vastas de reformação da mentalidade burguesa. Fala-se já, naturalmente, nos assuntos que eram tabu há dias, como a homossexualidade masculina e feminina, o amor livre, suponho apenas que do sexo fraco, pois o forte já o praticava, devido a uma maior cultura, a referência irónica às faces maceradas dos peregrinos de Fátima, subentendendo uma crítica à crença devota do nosso povo resignado, pelo menos o que não habita na vila morena.
Também os anarquistas já se atrevem a bramir alto e bom som que não querem construir nada, pois na desordem residem os seus princípios, tão válidos como os dos adeptos da construção.
Creio que é geral este meu sentimento de orgulho por pertencer a uma nação que tão depressa se identificou com o progresso e a desenvoltura de ideias, e até mesmo ultrapassou eloquentemente muitos outros países, no arrojo delas, embora, é certo, neles as tivesse colhido subservientemente.
A única coisa que destoa, parece-me, nesta explosão toda marcada pela intelectualidade, é um idêntico espírito de interesse e emulação prevalecendo em ambos os regimes. E a consequente falta de humanidade e de liberdade, apesar da democratização actual, manifesta nas exigências para que se destituam ou castiguem os indivíduos que trabalharam em organizações do Estado, como a Pide e outras, constituídas por funcionários que talvez se tenham limitado a cumprir o seu ofício.
A Bíblia diz-nos que Cristo se opôs ao apedrejamento da Madalena, a pretexto de que ninguém era suficientemente puro ou isento, para lhe lançar calhaus.
Os nossos democratas recentes, que pretendem iniciar a reconstrução do seu Estado por meio da violência e do ódio deveriam rever o passo bíblico, antes de lançarem a primeira pedra.
Talvez isso obstasse ao lançamento das seguintes.»


2º Texto:” TEXTO EXTRAÍDO DA FOLHA INFORMATIVA Nº 10, DE 25/5/74, DOS DEMOCRATAS MOÇAMBICANOS, EM RESPOSTA AO ANTERIOR ARTIGO “MADALENA E AS PEDRADAS”:
«Despudoradamente, os Fascistas começam a erguer as suas vozes para implorar clemência para os carrascos da PIDE.
A última em data, que saibamos, foi a de um artigo publicado na “Tribuna Livre” do “Notícias” de 20 do corrente, com a hipócrita alegação de que aqueles carrascos estavam a cumprir ordens. Este tipo de repugnante e inconsistente tentativa de desculpa já foi utilizado para com os facínoras do Nazismo. E não vingou porque foi considerado uma afronta à consciência humana.
Exigimos em nome dos Direitos do Homem que essas vozes se calem e deixem que a justiça siga o seu curso: os carrascos não serão metidos em masmorras, não serão torturados, não serão julgados em tribunais especiais, serão tratados como homens, embora a justiça a fazer-lhes se mostre implacável a punir os monstros que trabalharam para a PIDE / DGS.»


3º Texto: “QUEM SÃO OS CARRASCOS?” (Resposta ao texto anterior, já não publicado pelo “Notícias”)

«A Folha Informativa nº 10 dos nossos Democratas ataca um artigo da “Tribuna Livre” de 20 do corrente o qual, por ser meu, me proponho defender dentro da independência de pensamento que sempre norteou os meus actos e cujo direito reivindico:

1º - Parece-me infantil o apodo de fascista a mim ou às pessoas que, como eu, apenas se sentem humanas e desejam uma paz construtiva e não perturbada por malquerenças ou ódios vingativos, pouco propícios a esse pretenso clima de realização.
2º - Quanto ao meu fascismo despudorado, posso garantir aos nossos democratas que, em escritos vários neste jornal, corajosamente impugnei os erros da nossa sociedade, quando esses erros atentavam precisamente contra os Direitos Fundamentais do Homem. Prova o facto, o corte sofrido por alguns deles pela ex-Comissão de Censura, conquanto, para meu espanto, muitos outros tivessem passado impunes – o que revela certa maleabilidade de concessões da ditadura fascista. Desafio os nossos Democratas, agora eufóricos numa exaltação de iluminados, a esclarecerem se alguma vez se atreveram, em tempo da tal ditadura, a manifestar idêntica independência de expressão. Se o fizeram e foram “censurados”, é tempo agora de lançarem à luz as suas obras de incompreendidos.
3º - Exigem os nossos Democratas que essas vozes se calem, em nome dos Direitos Fundamentais do Homem. Creio bem que entre estes se conta exactamente o da liberdade de expressão, antes reprimida – embora não totalmente – e agora permitida. Pergunto, pois, aos nossos Democratas, em nome de que princípio exigem o silêncio dessas vozes, apenas porque contrariam as suas. Será que a liberdade concedida não poderá manifestar-se senão dentro do seu programa democrático? Mas isso seria uma incompreensível adesão dos seus princípios aos princípios fascistas! Não me parece justo que eles assim se queiram identificar com o regime tão energicamente repudiado!
4º - Quanto ao castigo dos carrascos, apenas pergunto porque omitem então o castigo dos crimes – e tão bárbaros! - cometidos pela Frelimo contra os seus próprios irmãos – ou até, mais discretamente, os processos usados pelos Tribunais Civis nos interrogatórios das mães solteiras, desejosas de legitimar os seus filhos, interrogatórios cheios de minúcias vexatórias e atentatórias da dignidade humana, perante indivíduos alheios ao caso, o que os nossos advogados Democratas sempre consentiram, sem que isso lhes perturbasse a digestão.»


4º Texto: “A Propósito da Madalena”:
«Além da imposição de silenciar a minha voz discordante feita pelos democratas autoritários em 25/5, mais duas vozes ironizaram a respeito da minha “Madalena e as pedradas”, em 24/5. Uma foi a de Joaquim Fonseca no artigo da “Tribuna Livre” – “Respondendo” – outra “As Pedradas e a Pide” de Guilherme da Silva Pereira.
Ao primeiro, continuarei a lembrar, apoiada por exemplos que o sr. Joaquim Fonseca deverá conhecer, que desde o nosso início como nação independente, incluindo os sessenta anos de dependência dos Filipes, a nossa posição na vida intelectual sempre foi considerada de dois ou três séculos na rectaguarda de todos os outros povos, apesar das honrosas excepções de sempre e mesmo de agora, possivelmente até nelas se incluindo o sr. Joaquim Fonseca.
Por obra e graça de uma faceta do nosso temperamento comodista e leviano, gostamos de alijar sempre as culpas dos nossos desmandos para cima dos outros. Neste caso o cabeça de turco foi Salazar primeiro, Marcelo Caetano depois, quando, segundo parece, o primeiro morreu pobre – o que não sucedeu com muitos dos que viveram sob a sua ditadura e se mostram tão revoltados com ela, por ser muito achincalhante para os democratas. Quanto a Marcelo Caetano, eu sempre ouvi dizer que, se mais não fez a favor do povo, foi porque as peias que o limitavam – possivelmente por muitos dos tais democratas ditos achincalhados – superavam a sua boa vontade.
Povo amorfo, o nosso? Mas quantos se não foram erguendo desse estado de atonia? Com dificuldade e sacrifícios, sim. Na dificuldade e sacrifícios é que se criam os verdadeiros homens, não nas facilidades.
Porque a liberdade terá que ser forçosamente condicionada, caso contrário assistir-se-á ao espectáculo degradante de que a nossa nação tem sido palco desde 25 de Abril: uma besta-fera de instintos soltos, arreganhando a dentuça onde perpassa o ódio, a vileza, a traição, a cobardia, o egoísmo, o servilismo iníquos.
Bem triste é tal espectáculo de jovens e adultos ululando iniquidades, reivindicando direitos que não possuem, todos na pressa febril de atingirem uma cimeira que não pensam obter por forma mais serena e consciente, trabalhando com solidez e coragem, esforçando-se por a merecerem realmente.
Deu-se ao povo a liberdade e o povo apenas clamou vingança. A Pide subjugara o povo, dizem. Não contesto a validade das observações. Pergunto apenas se será caso único, se cada país não terá a sua organização policial mais ou menos severa e se é lícito que os cidadãos de um país tramem na sombra contra a sua pátria. A mim, pelo menos, que a amo, impressiona-me muito todo este desbragamento anti-patriótico dos apoiantes dos movimentos de libertação.
Ora, os que exigem o castigos dos Pides, pretendem, afinal, apenas cobardemente, lembrar aos africanos (num zelo receoso angariador das simpatias dos mesmos), quanto foram maltratados por nós, incitá-los desse modo contra nós, que até vamos vivendo – salvo as excepções da regra – todos com relativa bonomia.
Sou professora e tenho colegas africanas professoras. Meu pai não era professor, era guarda-fiscal, nunca teve carro nem mobília de sala de visitas e eu costumava brincar descalça nos meus tempos de criança, para poupar as sandálias. Peço muita desculpa ao sr. Joaquim Fonseca por esta curta evocação da minha infância, muito menos erudita do que a outra bíblica da Madalena, mas igualmente aliciante.
Eu não confundo valores, não senhor. Não confundo o conceito da justiça com o da vingança. O Dr. Raposo Pereira, já observei também que me poderá elucidar através de documentários sinistros sobre as actividades da Pide. De facto, não os tenho lido nem ouvido por ser muito impressionável a essas referências impressionantes. Limito-me a analisar com muita atenção os desenhos dos democratas de Quelimane, muito estilizados – os desenhos, não os democratas – sobre as diversas formas de tortura da Pide. É certo que a delicadeza do traço prende-me de tal forma o sentido estético que perco em breve a noção do objectivo desses desenhos. Claro que o “Massacre de 3 de Maio” de Goya, ou o “Suplício de Sisamnes” de Gérard David (para não citar as bocas abertas da fome dos nossos pintores locais), me fazem mais facilmente enquadrar nos ambientes satânicos, mas deve ser porque as cabeças destes desenhos democráticos estão reduzidas a bolas. A gente não lhes nota a expressão de sofrimento e é por isso que não vibra tanto. Mas tanto os desenhos dos democratas de Quelimane, como os documentários do dr. Raposo Pereira, democrata daqui, são muito elucidativos, realmente.
O que a mim me torna céptica por vezes, como já disse na minha “Madalena...” é o reconhecimento da fraca idoneidade de certos indivíduos para acusar outros. Até tenho observado que muitos desses com muita pressa de acusar os outros, a breve trecho saem da liça, vencidos igualmente por acusações vexatórias.
Já vai longa esta diatribe, de tal modo que já nem vale a pena alargar-me a respeito do comentário do sr. Guilherme da Silva Pereira, que no meio da sua objurgatória apaixonada, reveladora de uma refinada sensibilidade, só me parece ter falhado num ponto: o do notório servilismo em relação ao Dr. Raposo Pereira, contrabalançado pela deselegância com que se refere à “senhora Regina de Sousa” (meu ilustre pseudónimo). Em época de democracia, ou somos todos doutores ou todos senhores. Não é, sr. Pereira, por meio de atitudes puerilmente desprestigiantes, que um homem revelará a sua superioridade máscula nem a sua educação, embora, é certo, eu não tenha a veleidade de supor esta última como um objectivo da sua refinada sensibilidade. Entristeceu-me apenas a atitude servil em relação ao doutor, reveladora de fraqueza de carácter, apesar da exaltada indignação contra os Pides.
São muitos os criminosos ainda a monte, diz o senhor. Ai, pois são, acredito, sr. Pereira, não penso pôr em dúvida essa verdade dramática. Que Nosso Senhor deles nos preserve sempre.»


Aqui está pois, nesta sequência de textos já tão ancestral, o motivo por que desejei elucidar o sr. Almeida Rato sobre a estima que sinto pelo Sr. Casimiro Rodrigues, como proveniente de uma certeza: a de que este não me censura ou amputa os textos, como o fizeram aqueles que citei relativos aos textos antigos – os da Folha Informativa nº 10 de há 36 anos atrás - ou os jornais de agora, referentes aos textos recentes, ou mesmo como o próprio sr. Almeida Rato faria, fosse ele qualquer coisa como director de um jornal qualquer.
Posso concluir, pois, que “Mesas Censórias” são de todos os tempos e os “Censuradores” também, não houve realmente evolução. Salvo para o caso dos verdadeiros “Democratas”. Como o Sr. Casimiro Rodrigues. Com ele “Os Lusíadas” estaria a salvo. E Gil Vicente também.

Nenhum comentário: