terça-feira, 9 de junho de 2009

Teia antiga

Ontem o Dr. Victor Constâncio, em longas horas soturnas contou da sua competência, da sua inocência, da sua ciência, a par da sua ignorância - que justificou - sobre a malandrice alheia que ninguém consegue desmascarar, e da sua decisão de ficar. Como governador do Banco de Portugal, sem falhas na sua supervisão, mau grado todos esses desastres financeiros da Banca que ele não soube detectar, apesar da competência e da grandeza do ordenado que ganha.
Lembro outros casos que ultimamente têm vindo a lume, tantos e tão vergonhosos, que nem se podem contar, nem mesmo o bastonário da Ordem dos Advogados, que se limita a generalizar, sem se comprometer mais do que o necessário. Mas ainda bem que ele arrisca a cabeça, na tentativa de conquistar valores de honestidade, em imitação metafórica de um dos trabalhos de Hércules, pelo sagaz Hercule Poirot, de limpeza das estrebarias de Augias. Tarefa, contudo, demasiado hercúlea, no nosso espaço geográfico e temperamental, com tais valores cada vez mais desaparecidos, embora bem sugestiva da necessidade de uma mudança, na rede de cleptomania e megalomania, como instituições nacionais, que desde longa data particularizam a nossa têmpera.
Já o nosso Sá de Miranda disse em “Carta a el-rei Dom João (o III)”, definindo- nos o carácter:
Onde há homens há cobiça; / cá e lá tudo ela empeça, / se a santa, igual justiça / não corta ou não desempeça / o que a má malícia entiça”.
E mais adiante, em crítica acerba e amargo sarcasmo, aos déspotas que vivem à custa do suor dos miseráveis:
“Que eu vejo nos povoados / muitos dos salteadores, / com nome e rosto de honrados; / vão quentes, andam forrados / de peles de lavradores.”
“E, senhor, não me creiais, / se as não acham mais finas / que as dos lobos cervais, / que arminhos e zebelinas; / custam menos, cobrem mais
.”
Nesse tempo das naus e das caravelas, muitos naufrágios foram resultado da sofreguidão de construir navios, ainda que com madeiras mal secas, que abriam facilmente no mar, além de que carregados em excesso, para maior rendimento na pátria.
No tempo de Salazar, em Moçambique, também se fizeram estradas, como em outras partes da esfera. Mas às primeiras chuvadas, as largas estradas abriam em fundas fendas, autênticas valas, que, segundo me constou, provinham da falha nos materiais específicos para a estrada, desviados para a construção de casas dos encarregados dela. E o governo colaborava, julgo bem, pois as valas permaneciam longos meses, e nessa altura era-se mais discreto na referência aos casos de roubo e outros, em atenção à decência dos costumes.
Quando fui estudar para Coimbra, tive direito a uma bolsa de 500$00, porque se verificou que o meu pai ganhava, honradamente, uns escudos mais do que deveria, para eu merecer os 1000$00 a que as notas obtidas me davam direito. No entanto, em Coimbra, alojei-me na mesma casa de uma colega também de Moçambique que tivera direito à bolsa de 1000$00, para minha surpresa, pois era considerada menina rica, nos meus tempos do liceu. O pai, no Estado, ganhava menos do que o meu, é certo, mas não lhe fora contabilizada a fortuna que construíra em casas, com os desvios, que, como capataz, fizera, nas obras dos Caminhos de Ferro. O Estado fechara os olhos, discretamente pactuantes com a perfídia, com a grande perfídia pelo menos. Pois que as perfidiazinhas de menor monta, quando praticadas para matar a fome, sobretudo, não eram desculpabilizadas. Para correcção dos costumes.
Mas a teia do nosso crime continua no nosso tempo, sempre mais reforçada e cada vez mais apertada nas suas malhas e nos seus nós, alargada às próprias esferas do comando.
E a “santa, a igual justiça” já não pode “desempeçar” nem “cortar” os “enliçamentos” da “má malícia”, ela própria presa nos filamentos dessa teia monstruosa que definitivamente nos envolve, e nos sufoca na vergonha de assim sermos.

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