quinta-feira, 18 de junho de 2009

As lousas

Inês Pereira: “Marido, cuco me levades / E mais duas lousas.”
Pêro Marques: “Pois assim se fazem as cousas”.

É a Inês Pereira que, casada em primeira mão com o escudeiro Brás da Mata, o qual, depois do enlace se revela excessivamente machão, quando antes era maviosamente doce, embora interesseiro, por ser pelintra, como era o costume dos escudeiros, teve a sorte de o marido ter sido despachado para os anjinhos, no norte de África, não a lutar mas a fugir dum mouro pastor, que por sinal não devia ser da raça berbere.
Digo isto por ter visto recentemente no canal Discovery, no programa “Sobrevivência”, um jovem percorrendo o deserto inóspito, comendo, à maneira dos ascetas da Tebaida, e quem sabe se o próprio Cristo nos quarenta dias das tentações do Satanás, carochas cruas, cobras venenosas assadas, depois de cortada a cabeça, e extraída a pele, alimentos para repor as proteínas, como ele vai explicando, os interiores dum camelo morto que repõem a hidratação com a água de uma bolsa junto ao estômago, além da pele daquele para se cobrir na noite gélida do deserto, um tórrido percurso de dia, por contraste, até atingir as escarpas do Atlas, para aí procurar água pura e um sapo que mastiga, depois de descer e trepar todos aqueles picos com que Hércules carregou momentaneamente aos ombros o céu, em substituição do gigante Atlas, mas por mero interesse, enganando-o, o que foi acto pouco honrado, conquanto de actualidade conhecida.
O oásis surgirá por fim, além de outros contactos com os simpáticos berberes, que forneceram ao viandante o camelo morto que ele abriu, água suja para beber, leite de camela, tudo reconstituintes orgânicos, uma porcaria.
Claro que, se não tivesse os acompanhantes da televisão para gravar a odisseia e dar uma mãozinha, julgo eu, nem teria sobrevivido mesmo com os gafanhotos das proteínas, mas mantêm-se invisíveis e a gente julga o rapaz completamente desprotegido, embora marchando rapidamente, tal qual o nosso engenheiro Sócrates nas corridas das pontes.
Nem sei mesmo se o programa do Discovery vem expressamente para nós, que também tentamos sobreviver, conquanto ainda sem as carochas, e sem televisão a testar a nossa luta.
Tudo isto para explicar que o próprio engenheiro Sócrates também deve estar numa de travessia do deserto, mas penso que ele vai encontrar muitos berberes para lhe acudir com o leite necessário, contagiados pelo novo facial de modéstia e simpatia, com que nunca responde às questões mesmo de uma moção de censura, mas em jeito tenaz de revisão das suas obras. Concedeu, mais tarde, que tinha investido pouco na cultura, do que se arrependeu, mas não reconheceu que fora responsável pela incultura, com que lesou toda a Educação Portuguesa, fazendo finca-pé nos resultados positivos, obtidos pelo recurso às cruzinhas da resposta múltipla dos testes. Um exemplo apenas, este que cito. O resto... é silêncio, um manto de silêncio, dos que se curvam e salvam a pele, dos que reconhecem a inutilidade de tanta revolta sentida. E criam depressões graves até por estarem longe ainda da reforma.
Mas, retomando a minha Inês Pereira, isto é, a de Gil Vicente, esta, que inicialmente pretendia um marido bem-falante e de maneiras cortesãs, que, como vimos, foi morto por um mouro pastor, quando fugia, o que a fez desprezá-lo, em atitude de grande precocidade feminista: “Para mim era valente / E matou-o um mouro só”, Inês Pereira resolveu casar em segundas núpcias com o pacóvio do Pêro Marques, indo às cavalitas dele, que ainda por cima carregava duas lousas, encontrar-se na ermida com o ermitão, seu namorado de ocasião e dizendo, entretanto:
Marido, cuco me levades / e mais duas lousas
E Pêro Marques, de concluir com generoso garbo:
Pois assim se fazem as cousas”.

E assim, também por cá se fazem as cousas. O Engenheiro Sócrates pode sossegar, sem precisar de mudar a sua personalidade, como o Brás da Mata, embora de forma oposta: Brás da Mata mavioso dantes, torna-se em déspota depois. Sócrates déspota antes, manifestando-se modestamente ameno e solidário agora.
Não precisa disso. Temos por cá muitos berberes generosos, e muitos Pêros Marques amistosos habituados a carregar com as lousas. De longa data.
Sempre as cousas se fizeram assim, neste país de mansidão. E assim continuarão, que há sempre os que não gostam de mudanças, quando estão de bem com os Sócrates que os souberam acorrentar às lousas do seu domínio.

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