sexta-feira, 26 de junho de 2009

Um Homem


Tenho à minha frente o último retrato do meu Pai. Uma foto bonita do dia em que soubemos – não ele – do seu cancro. Vem a caminhar, pela calçada da casa, agarrado à sua bengala, com o seu chapéu, o sobretudo, os verdes do jardim em seu redor, a sua figura serena que pouco mais duraria. Um Homem. Foi na antevéspera de Santo António que morreu, há já trinta anos. Também se chamou António. António José de baptismo, António de crisma, por modéstia, apagando o nome supérfluo, como rasgaria os versos a marcas de cigarros em concursos lourençomarquinos, que lhe valeram inúmeros prémios, entre os quais, o primeiro rádio que tivemos na nossa casa. Já várias vezes semeei textos sobre ele e, na saudade de hoje, reforçada pelo receio do futuro para os meus filhos e netos, volto a lembrá-lo na sua firmeza e inteligência, tantas vezes manifestadas no seu trajecto pela vida, na prontidão com que compunha os seus discursos para a família, nas nossas festas de harmonia envolvendo familiares e amigos, no seu amor pelos seus, no seu autodidactismo, no profissionalismo do seu trabalho, na não integração no espírito do salazarismo, obediente mas não subserviente, homem de pensamento livre, mas que jamais traiu os valores a que, como cidadão da sua pátria, prometera obedecer.
Um Homem como gostaria de encontrar ainda hoje. Mas, como a "flor" do “Petit Prince”, por este cultivada com amor, e que ele distinguia entre todas as outras, as figuras dos pais não se repetem, únicas nos corações dos filhos, para todo o sempre.
E é com quase idolatria que o invoco tantas vezes, pedindo à sua hombridade, à sua força moral que interceda para que ainda possamos ter salvação, neste vazadoiro em que nos tornámos como nação.
Ao transcrever um texto que o evoca, é, simultaneamente, a evocação de um passado em “outras partes da esfera, em outros céus diferentes”, como diria Sá de Miranda na "Carta a D. João III", no seu tempo, ainda orgulhoso das proezas praticadas pelos Portugueses, que traduz um pouco do entusiasmo vivido pelo punhado de cidadãos tentando a todo o custo impedir a concretização do trucidar de um país, efectuado à revelia e na surpresa desses que trabalhavam em prol da sua terra.

“EXPERIÊNCIA”
in “Cravos Roxos- Croniquetas verde-rubras”, 1980

«Domingo de sol em Lourenço Marques, 28 de Abril de 1974, três dias já do regime democrático implantado em 25. Em Portugal gritava-se com euforia, nas colónias vivia-se com o pavor do amanhã que chegou rapidamente. Também se gritava muito, é certo, e escrevia-se. E faziam-se discursos inflamados. E punha-se a nu anteriores fraquezas, como por exemplo a do sujeito que anteriormente explorava pretos e posteriormente, cheio de solicitude, alardeou ter estado num congresso como representante de Moçambique perante a bandeira da Frelimo hasteada.
Logo o facto provocou indignado movimento de protesto contra a traição e desse movimento nasceu a FICO (Frente Independente da Civilização Ocidental), que organizou uma manifestação em frente da Câmara Municipal, nesse Domingo de sol de 28 de Abril de 1974.
Eu também fui à manifestação – a essa e à do Rádio Clube, em Setembro – para garantir a minha firme decisão de continuar a defender a civilização ocidental na África, coisa que já fazia há muitos anos. Tinham-me dito que aquilo era Portugal, o que eu sempre cri, tratando de colaborar na manutenção de um Portugal dilatado e rico.
Por isso concordei com a designação de “traidor” atribuída ao tal sujeito anteriormente explorador e posteriormente desejando redimir-se. De facto o 25 de Abril fora todo ele um movimento de traição aos princípios que aprendíamos todos dantes – alunos, soldados, funcionários, burgueses e parasitas – e que passámos a ignorar depois, até mesmo os parasitas.
Entretanto, na manifestação da FICO, falou-se muito, falou-se bem, ainda dentro do velhos esquemas que se provou mais tarde serem abjectos e despidos de valor significativo. Também se cantou a Portuguesa, que largamente se demonstraria ser despida do mesmo valor. Mas eu não cantei. Chorei, pela primeira vez, ao ouvir o hino nacional, sentindo a desagregação em processo na pátria dos navegadores ousados que Camões glorificara.
Voltei para casa mais firme, mais crente de que as forças ordeiras conseguiriam segurar ainda o império em vias de dissolução. O general Costa Gomes falara, de resto, em Angola, pouco antes, e prometera um processo elegante de autodeterminação antes da independência a longo prazo. O general Costa Gomes também aprendera como eu os vastos limites antigos da sua pátria, não vinha a Angola gastar tanto dinheiro na viagem para fazer promessas vãs. Por isso eu estava alegre e confiante e disposta a continuar a colaborar na construção do país.
Além disso sabia por ouvir dizer – que a exploração por mim exercida sobre os pretos não chegou para vir cá verificar isso – que desde a guerra das colónias Portugal enriquecera muito, fizera muitos prédios e desenvolvera muitas indústrias. Não me passava pela cabeça que o exército não quisesse mais fazer casas aqui. Nós lá é que vivíamos com muitas falhas, por falta dos boletins de importação. Mas quando se está em guerra – sobretudo se essa guerra é ajudada a manter pelos povos defensores da paz – vive-se com sacrifícios na esperança dessa paz oferecida pelos povos seus defensores.
Grande foi, pois, a minha surpresa quando, ao chegar a casa com a família, cheios de contentamento por colaborarmos num movimento generoso – e que se provou mais tarde ser traidor e de bandoleiros – recebi um telefonema da família em Lisboa. Nós tínhamos que vir e já, não havia tempo a perder, fala a irmã e o cunhado, chora a mãe, suplica o pai. Eles previam a desagregação, conheciam da política e dos seus fautores, não iam em poesias nem em credulidades ingénuas.
- Oh papá! Mas não ouviste o general Costa Gomes?
E o meu experiente pai, com o seu jeito repentista tão característico:
“- Pois ouvi, minha filha, pois ouvi! Se eu até já ouvi o general Gomes da Costa!”»

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