terça-feira, 16 de junho de 2009

“Tenho que me calar”

É a minha amiga que diz, acrescentando seguidamente: “Nosso Senhor castiga”. Eu respondo beatificamente que Nosso Senhor é bom, mas ela tem larga experiência de desastres vividos e também dos lidos, para se intimidar logo com as consequências, assim que protesta ou se indigna.
Acho que o seu complexo não passa de superstição, coisa que eu condeno, atida que sou a uma real devoção, dissipadora de outros mitos. Ou então são resquícios dos conceitos da justiça de Talião, e isso ainda é mais condenável desde que Cristo pregou sobre a fraternidade, com os homens todos filhos de Deus, embora não declarasse a igualdade entre os irmãos, essa só apregoada pelos Franceses e suponho que nunca seriamente generalizada.
Logo a minha amiga exemplifica o seu conceito contando daquela vez, Dia da Mulher, já nem sei quando – menos, talvez do que os vinte ou trinta anos que recorda o Guerra Junqueiro, quando partiu e deixou a velha ama chorando... E daí, até talvez sejam mais, nem sei ... Mas agora choramos nós o passado terrivelmente distante. Não tivemos, é certo, ama para nos chorar, por no nosso tempo existirem os biberons e os leites substitutos dos maternos, embora sem a qualidade dos de agora, além de que as nossas mães cumpriam escrupulosamente os cuidados da sua esfera de trabalho, tal como nós cumprimos, até com mais sobrecarga e variedade de deveres, não nos pesa na consciência o termo-nos jamais eximido ao desempenho das nossas responsabilidades.
Como ia informando, decidimos festejar o Dia da Mulher, nesse dia distante, apanhando o combóio para Belém para visitar os Jerónimos. Quando chegámos a Belém já chovia, mas arrostámos intrepidamente a borrasca, à chuva sem guarda-chuva, por imprevidência, pois não contámos com a mudança climática, os Boletins Meteorológicos da época, muito falíveis nas informações sobre o tempo.
Tive que ouvir a minha amiga, encharcada e com a consciência pesada por se ter desviado do seu recto dever de tratar do almoço da família, partindo para Belém de comboio, embora comigo, que sou isenta, embora também me encharcasse: “Nosso Senhor castiga sempre”.
Mas visitámos o monumento, e ainda tivemos tempo de comprar os pastéis de cerveja na casinha perto da dos de Belém, e retomámos o caminho do redil, para cumprir a nossa obrigação diária.
Contudo, ficou à minha amiga o jeito, de cada vez que se indigna com os pecados alheios: “Tenho que me calar. Nosso Senhor castiga sempre.” Por isso, eu própria de repente assustada, lhe chamo profeta Elias, e até mesmo evoco as descrições apocalípticas de S. João, com receio do fim próximo. Mas acho que é mais da nossa idade.
Vê-se que anda atemorizada com as consequências do excesso de protestação sobre o excesso de desaires subitamente desabando sobre si. Eu refiro os que desabam sobre mim, mas solidária como sou, lembro-lhe os que desabam por aí aos molhos, e não é por culpa do Nosso Senhor, que felizmente tem as costas largas. É então que cai em si. Mas logo se levanta, fogosa, criticando, para a seguir fazer a contrição chantagista: “Tenho que me calar. Nosso Senhor castiga sempre”.
Geralmente é a causa pública que a faz roer nos políticos. Mas hoje tive o prazer de também eu apresentar um exemplo do meu protesto. Foi no lugar do pão, num centro comercial que até apresenta um pão razoável embora com o rabo de cavalo a varrer as prateleiras sem touca.
Gosto de analisar a farsa do saco de plástico ora enfiado na mão para tirar o pão, ora tirado da mão para os trocos da caixa registadora. Mas hoje, quando cheguei, a menina do rabo de cavalo sem touca estava a atirar para as caixas dos pães, com as duas mãos, os pães que o padeiro tinha acabado de trazer nos cestos. Mãos sujas do trabalho, diria a nossa Hermínia democrata. E sem sacos de plástico a proteger o pão e os futuros comensais. Mais ninguém estava lá e só eu vi. Para o próximo cliente, o saco seria enfiado. Eu saí sem pão.
A ASAE sabe destes casos, mas só foi eficiente no início, e mesmo irracionalmente severa, bem ao nosso modo, por ter a vara na mão. Agora terá recebido outros meios, também ao nosso modo, para se portar com menos profissionalismo. Os rabos de cavalo e os sacos de plástico em aparência irão permanecer, no jogo da sua farsa democrática, para todos os gostos.
Mas já me sinto com complexos de culpa . A minha amiga pegou-me a mania: Deus castiga. Tenho que me calar, que o mal só recai sobre os bons como nós, já o dizia Camões:
Os bons vi sempre passar / no mundo graves tormentos; / e para mais me espantar / os maus vi sempre nadar / em mar de contentamentos...”
É melhor não ligar ao rabo de cavalo bamboleante nem à farsa dos sacos da apanha do pão ou da apanha dos trocos. Vou ser superior às contingências da nossa ASAE.
Não posso passar sem pão.

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