Leio, no jornal
I que Álvaro Cunhal morreu no dia de
Santo António há dez anos, ou seja, em 13 de Junho de 2005, tal como o seu «compagnon
de route», poeta Eugénio de Andrade. O jornal I presta-lhe a devida
homenagem, através dos depoimentos de Margarida Botelho - «Transformar o
sonho em realidade» - Domingos Abrantes - «Passaram dez anos» -
Jerónimo de Sousa – «Um exemplo que se projecta na actualidade e no futuro».
Margarida Botelho considera Cunhal a figura mais
marcante do século XX. Mas o povo português – ou a sua maior parte –
desconfiado que é, não cai tão facilmente em esparrelas e votou mesmo, em
tempos - (recordo, na Internet a data: 2oo7) - em Salazar, como figura cimeira
do século XX, pai tutelar de uma nação há muito desencaminhada no desrespeito
pelo ser humano, substituído este pela subserviência tímida de uns e o
paternalismo superior de outros. Salazar não mudou essa condição, mas não lhe
faltou a orientação transmitida ao longo da história de respeito pela sua
pátria e esse factor suponho que foi marcante na escolha do seu nome, por
altura da tal sondagem, o povo mantendo idêntica noção de amor pátrio,
(sentimento que a doutora Isabel Moreira pôs em causa no programa final da
“Barca do Inferno”, explicando que a sua pátria é o mundo, conceito de uma
dimensão marcadamente universal e que muito abona o seu bem-estar económico e a
expansão do seu pensamento cultural, de um seguidismo naturalmente
progressista, e de uma sublimidade inultrapassável, a menos que se alcancem
outros mundos em vida da doutora, para ela poder abarcar pátrias de outros
espaços siderais.
Sei que Cunhal foi muito arrojado, que esteve preso e
se safou de Peniche e que, quando apareceu - não aos ombros, como o seu colega
da transacção pátria, Mário Soares, o qual para todos os efeitos teria bastas
ocasiões de se revelar adepto das passeatas aos lombos – ou até carapaças - dos
diferentes espécimes animais quando assumiu o controle do “baixel” que ambos
ajudaram a recompor nas novas praias, “narciso presumido” de “ondas” antigas. Cunhal, durante uns tempos, deu muita
animação, de facto, à nova pátria, nos seus discursos invariavelmente sobre as
desigualdades sociais e ele bem quis mudar isso, tal como fizera Mao Tsé Tung na
sua China nivelada, em que subvertera os conceitos de justiça impondo a
modéstia do pensamento igualitário que pôs os médicos e os professores a
trabalhar na charrua e o povo a reivindicar os seus direitos à igualdade sem
tanto sacrifício das pestanas, coisas que o nosso PREC também defendeu, com
Cunhal metido ao barulho, mas que Mário Soares e os outros defensores das
liberdades democráticas menos radicais atalharam a seu tempo. E Margarida
Botelho de concluir sobre o «sonho de uma sociedade liberta
de exploração
de um Portugal livre e soberano» que Cunhal
protagonizou há mais tempo do que ninguém e com mais dor, para sempre o nosso «herói»,
embora tenha perdido a favor de Salazar na disputa da representatividade secular.
Infelizmente a Internet não oferece os textos que leio
no I, daí que os não transcreva, com muita mágoa minha,
embora ciente de que o que eles informam é mais que previsto. Entretanto,
dedico à memória do retorcido Álvaro Cunhal o soneto barroco, «À fragilidade
da vida », bonito de se ler, embora um tanto retorcido também, como aquele,
com chave própria, após o discurso em suspense, mas, afinal, de uma pureza de
mensagem tão importante como as que Álvaro Cunhal desejou difundir – sem chave
nem suspense – neste seu povo de desigualdades sociais tão vincadas:
À fragilidade da vida
Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.
Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse Estio em Vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave, em doce agrado.
Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,
Olha, cego mortal, e considera
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.
Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.
Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse Estio em Vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave, em doce agrado.
Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,
Olha, cego mortal, e considera
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.
Francisco de Vasconcelos
(1665-1723), FÉNIX RENASCIDA III
E a homenagem ao extraordinário
poeta Eugénio de Andrade, cuja morte, no mesmo dia que a de Cunhal, informa o I que passou mais discretamente que a
do seu “compagnon de route”:
Rio de palavras, que eram as suas, “rio”
tout court, símbolo do não retorno. Mas Eugénio de Andrade fica,
naturalmente, nas palavras gastas dos sentimentos efémeros, nas palavras amplas
tradução daqueles:
Surdo, Subterrâneo Rio
Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.
Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
--- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
Eugénio de Andrade
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