sexta-feira, 24 de julho de 2015

Familiar



A minha prima Amarílis é uma alma bondosa que trata de tudo e de todos, numa roda viva de entendimento com o seu Deus e de amor pelo seu próximo. Fomos de volta a Pinheiro de Lafões, a minha irmã e eu, onde vivemos na infância, no tempo da guerra, em romagem de amizade familiar e de confirmação regozijada da extraordinária recuperação de saúde da nossa prima Celeste, que momentaneamente a perdera, e cujo motor da saúde foram os cuidados constantes da Amarílis – (Lilita) - sua irmã mais nova, (diria antes sua filha), e do Zé  e muitas vezes os filhos de ambos – sobretudo a Ana e o João.
A Celeste! Nossa prima do Carregal, que por falta de escola em Reigoso, começou a estudar tarde, na escola de Pinheiro, a aldeia onde ficámos cinco anos, durante a guerra, o meu pai em África, providenciando a sobrevivência e o auxílio na educação, com os livros infantis e as cartas maravilhosas, das quais tantas em verso, com que estimulava a nossa criatividade infantil: «Não há panelas nem pratos, A terrina está quebrada, Os copos feitos em cacos, Não há nada, nada, nada. Preciso de uma assadeira Para corar as galinhas, Manda-me uma frigideira Se queres que eu mande adivinhas. Desta vez mando só uma Que a carta já vai comprida...» Dormíamos as três primas na cama grande, a minha mãe na cama pequena, ao lado. A Celeste ficava no meio, e contava-nos histórias que vinham dos confins dos tempos: «-Branca Flor!» – «Minha mãe durma e descanse!» – respondia o cuspo deixado na travesseira, enquanto a donzela se pisgava, montada no cavalo, agarrada ao seu cavaleiro, esquecida de que o cuspo seca e deixa de actuar em termos de loquacidade, o que despertava definitivamente a mãe para as suas malvadezas de oposição perseguidora das ligações amorosas e perigosas arrebatadoras, felizmente anuladas com o sal atirado para trás, com  que a donzela forjava as suas próprias defesas, criando florestas densas ou lagos intransponíveis para a bruxa malvada da mãe inconformada.
Era, pois, a ouvir o eco sonolento da voz da Celeste, mais alta entre nós as duas, que adormecíamos, no encantamento das aventuras mágicas: «-Branca Flor!» – «Minha mãe durma e descanse!», mal cuidando que a viagem no tempo nos traria tantas vezes o retrato da velha história medieval, com apelos e barreiras, e respostas semelhantes às do cuspo da menina, para que chegassem longe os “cavaleiros monges” nos seus “cavalos de sombra”, «Do vale à montanha, Da montanha ao monte», já Fernando Pessoa também o sentira, embora com motivação menos ambiciosa e fraudulenta do que a dos cavaleiros de agora.
Foram dias de descanso no meio da beleza  dos campos e montes,  do lado de lá do rio Vouga, que fomos espreitar em Sejães, já alagado, bem diferente do de outrora que tinha rochedos no leito do rio, agora só com barquinhos vermelhos passeando-se nas águas serenas, o tudo ladeado de novas estradas que conduziam a toda a parte, fazendo-nos passar para a margem de lá, para Valadares, vista da casa da Celeste, de dia, cintilante de  colorido, tal como os outros povoados engastados  nos montes,  de noite com os pontinhos luminosos  das luzes das estradas e do casario.  Coisas simples, nada que se equipare a tantas outras belezas da criatividade humana ou natural, por esse mundo inteiro, mas decididamente  um espaço de verdura sã, desde o alto dos cabeços aos campos trabalhados, que ainda há poucos anos estavam desmantelados, graças às imposições da nossa integração europeia.  Depressa percorremos todos aqueles espaços, com algumas esculturas de fraco engenho, a assinalar devoções, quer pelo frango no churrasco, quer pela devoção à Virgem ou à própria terra de Oliveira de Frades.  Mas o que mais estranhei foi a quantidade de zonas industriais, entre as quais a Martifer, complexo enorme, que já foi rico e agora é imagem decadente do país, segundo a Celeste:
- Querem abarcar o mundo, dar o passo maior que a perna, uma política de cambalachos…
Desisto. Prefiro as filosofias da Amarílis, quando vínhamos a descer os degraus da casa, no dia da nossa partida: “A vida é feita de nadas”, sempre de conceito em punho, no seu viver já bem experimentado de provação, o que me fez  atirar-lhe com a primeira estrofe do poema “Bucólica” de Miguel Torga: A vida é feita de nadas; De grandes serras paradas À espera de movimento; De searas onduladas Pelo vento;”  - “Que bonito!” lançou a Lilita.
Por isso, aqui vão, para ela os versos todos do poema de um poeta maior, como resposta ao seu mote:

Bucólica

A vida é feita de nadas;
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma Mãe que faz a trança à filha.
Miguel Torga «Diário», 1941.

Nenhum comentário: