sábado, 11 de julho de 2015

Sem bote



Lembrei-me do livro «Três Homens num bote”, a propósito da Quadratura do Círculo desta semana, não por analogia mas por oposição. Naturalmente.  São totalmente diferentes os três homens que discutem na Quadratura para deslindar os meandros das políticas nacionais e estrangeiras. Também o seu público é diferente. O entrecho do livro de J. K. Jérôme, escritor inglês do século XIX, é destinado a divertir, numa leitura que nos faça esquecer agruras por meio da franca gargalhada de prazer. É certo que o tom sombrio de outras leituras já é antigo, tão antigo como o da franca risada, mas cada vez menos surgem motivos para esta, num mundo a desfazer-se em cenas apocalípticas de violência, dos homens e dos elementos. Três homens com problemas de saúde, cujos sintomas os próprios panfletos médicos sobre novos tratamentos ajudam ao avolumar da preocupação hipocondríaca, decidem espairecer num bote ao longo do Tamisa, com o fox-terrier Montmorency provocador de alguns distúrbios, leader nos confrontos caninos, aquando dos desembarques pelas margens do belo rio. Um livro revelador do prazer pessoal pelas paisagens inglesas que ao longo dele se estendem, e das situações picarescas resultantes da própria falta de destreza no remar ou da picardia na ronceirice com que o pequeno bote responde aos apelos de afastamento dos barcos mais velozes a motor, ou nos preparativos iniciais atabalhoados das próprias bagagens, desfeitas logo após terem sido fechadas, na busca atarantada de tal escova de dentes ou outro objecto imprescindível, cuja colocação se esqueceu se fora ou não realizada, ou nas desventuras sofridas nas partidas sem cerimónia pregadas pela sã e risonha camaradagem. E a par disso, as incursões jocosas pela História inglesa, no descritivo de sítios famosos desmistificadores, embora com o orgulho nacional subentendido. Caso da assinatura forçada da Magna Carta pelos barões ao Rei João (Sem Terra), fez este ano 800 anos (1215): «Lentamente sobem o rio e vão enfim tocar na pequena ilha que terá daí por diante o nome de “Ilha da Magna Carta”. O rei João desembarcou. Fica-se na expectativa, num silêncio absoluto. Depois eleva-se uma imensa aclamação que nos assegura que foi enfim colocada a pedra angular do templo da liberdade inglesa, e, sabemo-lo hoje, com inabalável solidez!» (É certo que, a leitura de “Cartas de Inglaterra”, por exemplo, de Eça de Queirós, mostra que, tal como acontecera com o templo da democracia grega, exclusivo dos cidadãos, o templo da liberdade inglesa foi durante séculos muito centrado na aristocracia do poder, embora as bases definidoras se tenham mantido no orgulho rácico generalizado. Referências aos lugares onde desembarcavam e onde Montmorency tem os seus desaguisados bélicos, lembram o costume actual de propagandear os lugares pátrios, denunciando igual carinho na sobriedade descritiva, e no ritmo da aventura, a que não falta o sentido humanitário, por vezes expresso através da ironia.
 Um simpático livro de férias. Três homens num bote – Jack, Harry, o narrador e o seu cão – que os três homens do debate – Pacheco Pereira,  Jorge Coelho , Lobo Xavier – me fizeram lembrar, sem considerar o orquestrador dele, excelente moderador Carlos  Andrade, na obscuridade do seu posto de autoria, embora capital.
Uma vez mais dois homens sem alegria e com arreganho acintoso, dispostos a tudo fazer para desancar no governo, apesar de um deles se definir actualmente como  adepto desse governo, mas de doutrinação idêntica à dos tempos da mocidade intolerante, partidária, aparentemente, de um igualitarismo humanitário, falso como já fora nos tempos do rei João. Outro, o socialista bem posicionado na vida, no seu discurso de esperteza prosaica, de um partidarismo sem leviandades nem travessuras. Finalmente, o homem que sabe decifrar os valores do trabalho alheio ou próprio segundo a justa ponderação, e avaliar os princípios de lisura nas boas contas do Governo, impondo naturais sacrifícios de devolução do alheio.
Três homens num espectáculo favorecedor não do riso mas indiscutivelmente de prazer, por este ou aquele motivo – o prazer do saber, embora ofuscado pela discordância, o prazer pela linguagem chã, à Zé Povinho finório, o prazer do discurso da hombridade e do bom senso, num raciocínio claro e elegante, sem pretensiosismo, mas sem amadorismo também.

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