Lembrei-me do livro «Três Homens num
bote”, a propósito da Quadratura do Círculo desta semana, não por analogia mas
por oposição. Naturalmente. São
totalmente diferentes os três homens que discutem na Quadratura para deslindar
os meandros das políticas nacionais e estrangeiras. Também o seu público é
diferente. O entrecho do livro de J. K. Jérôme, escritor inglês do século XIX,
é destinado a divertir, numa leitura que nos faça esquecer agruras por meio da
franca gargalhada de prazer. É certo que o tom sombrio de outras leituras já é
antigo, tão antigo como o da franca risada, mas cada vez menos surgem motivos
para esta, num mundo a desfazer-se em cenas apocalípticas de violência, dos
homens e dos elementos. Três homens com problemas de saúde, cujos sintomas os
próprios panfletos médicos sobre novos tratamentos ajudam ao avolumar da
preocupação hipocondríaca, decidem espairecer num bote ao longo do Tamisa, com
o fox-terrier Montmorency provocador de alguns distúrbios, leader nos
confrontos caninos, aquando dos desembarques pelas margens do belo rio. Um livro
revelador do prazer pessoal pelas paisagens inglesas que ao longo dele se
estendem, e das situações picarescas resultantes da própria falta de destreza
no remar ou da picardia na ronceirice com que o pequeno bote responde aos apelos
de afastamento dos barcos mais velozes a motor, ou nos preparativos iniciais atabalhoados
das próprias bagagens, desfeitas logo após terem sido fechadas, na busca atarantada
de tal escova de dentes ou outro objecto imprescindível, cuja colocação se
esqueceu se fora ou não realizada, ou nas desventuras sofridas nas partidas sem
cerimónia pregadas pela sã e risonha camaradagem. E a par disso, as incursões
jocosas pela História inglesa, no descritivo de sítios famosos
desmistificadores, embora com o orgulho nacional subentendido. Caso da assinatura
forçada da Magna Carta pelos barões ao Rei João (Sem Terra), fez este ano 800
anos (1215): «Lentamente sobem o rio e vão enfim tocar na pequena ilha que
terá daí por diante o nome de “Ilha da Magna Carta”. O rei João desembarcou.
Fica-se na expectativa, num silêncio absoluto. Depois eleva-se uma imensa aclamação
que nos assegura que foi enfim colocada a pedra angular do templo da liberdade
inglesa, e, sabemo-lo hoje, com inabalável solidez!» (É certo que, a leitura
de “Cartas de Inglaterra”, por exemplo, de Eça de Queirós, mostra que,
tal como acontecera com o templo da democracia grega, exclusivo dos cidadãos, o
templo da liberdade inglesa foi durante séculos muito centrado na aristocracia
do poder, embora as bases definidoras se tenham mantido no orgulho rácico
generalizado. Referências aos lugares onde desembarcavam e onde Montmorency tem
os seus desaguisados bélicos, lembram o costume actual de propagandear os
lugares pátrios, denunciando igual carinho na sobriedade descritiva, e no ritmo
da aventura, a que não falta o sentido humanitário, por vezes expresso através
da ironia.
Um simpático livro de férias. Três homens num
bote – Jack, Harry, o narrador e o seu cão – que os três homens do debate –
Pacheco Pereira, Jorge Coelho , Lobo
Xavier – me fizeram lembrar, sem considerar o orquestrador dele, excelente
moderador Carlos Andrade, na obscuridade
do seu posto de autoria, embora capital.
Uma vez mais dois homens sem alegria
e com arreganho acintoso, dispostos a tudo fazer para desancar no governo,
apesar de um deles se definir actualmente como adepto desse governo, mas de doutrinação
idêntica à dos tempos da mocidade intolerante, partidária, aparentemente, de um
igualitarismo humanitário, falso como já fora nos tempos do rei João. Outro, o
socialista bem posicionado na vida, no seu discurso de esperteza prosaica, de
um partidarismo sem leviandades nem travessuras. Finalmente, o homem que sabe
decifrar os valores do trabalho alheio ou próprio segundo a justa ponderação, e
avaliar os princípios de lisura nas boas contas do Governo, impondo naturais
sacrifícios de devolução do alheio.
Três homens num espectáculo favorecedor
não do riso mas indiscutivelmente de prazer, por este ou aquele motivo – o prazer
do saber, embora ofuscado pela discordância, o prazer pela linguagem chã, à Zé
Povinho finório, o prazer do discurso da hombridade e do bom senso, num
raciocínio claro e elegante, sem pretensiosismo, mas sem amadorismo também.
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