O livro foi-me emprestado pela
minha nora Paula. É de Patrick Modiano,
chama-se “Chien de Printemps”, galardoado com o prémio Nobel de
Literatura de 2014. Éditions du Seuil, texto integral de cerca de 120
páginas. A primeira reacção foi de espanto: livro tão minúsculo merecedor do Nobel!
O José Saramago daria pulos na tumba, embora outros “Nobel” se irmanariam em
comunhão de tamanhos. Um escritor nascido em 1945, autor já de várias obras e
vários prémios, um livrinho que corre mundo, transportando o seu Nobel, numa
escrita simples, num entrecho quase diria nulo, de vidas que se confundem na
distância do tempo, nos encontros do acaso, um livro de charada que nada
pretende esclarecer porque não é seguro de verdade alguma, a insignificância do
viver humano, como simples passagem, em divergências dos seres e simultaneamente
nas suas equivalências ou afectos, histórias de vidas subentendidas nos
próprios silêncios, a memória recuperando, a espaços, a maior ou menor
relevância dos encontros, ou das situações.
Francis Jansen, a personagem
central de quem se vão contar coisas, nos solavancos da vida, de quem pouco se
sabe mas que deixou marcas, talvez em mulheres que o amaram, talvez no amigo
que morrera, sem dúvida no narrador por ele retratado, quando tinha dezanove
anos – “au printemps de 1964, et je veux dire aujourd’hui le peu de choses
que je sais de lui.” – é parte do primeiro período e parágrafo. Outras
fotografias serão tiradas, com uma Rolleiflex, a este e à namorada, “deux adolescents
anonymes et perdus dans Paris”. A
visita ao atelier de Jansen, uma breve abordagem do seu mundo de três malas e
duas fotos – uma de Colette Laurent, outra dos dois amigos Jansen e Roberto Capa
na Alemanha de 1945, Capa que o narrador conhecia pela referência à sua morte
na Indochina. A sugestão de partida eminente que as malas denunciavam, o espaço
de trinta anos para o retomar das referências, sugeridas pelo repegar na foto
de 1964. A perseguição da lembrança, a busca de dados sobre Jansen, a lembrança
do seu dito ao saber que o rapaz da sua foto pretendia vir a ser escritor,
actividade que ele considerou a “quadratura do círculo”, visto que ele,
com a sua de fotógrafo pretendia apenas o silêncio. E pôs-lhe o desafio de
recriar o silêncio com as palavras, os sinais de pontuação mais expressivos
sendo para ele as reticências.
E foi assim que o jovem se
tornou uma espécie de arquivista das fotos das três malas, que testemunhavam “gentes
e coisas desaparecidas”. As gentes presentes,
“une certaine Nicole”, Jansen não desejava encontrar, talvez no acabrunhamento
da morte de Capra e de Colette Laurent, esta última conhecida do narrador, nos seus
dez anos, quando passeava com a mãe, desaparecida no espaço, retomada ainda no
tempo, alguns anos após.
E a narrativa vai rodando,
em descritivos e referências, nos desenhos das fotos de Jansen, avolumando o
mundo das coisas pequenas – plantas, uma teia de aranha, a concha de um
caracol, pequenas ervas onde corriam formigas, a bota do fotógrafo. Ou os
espaços amplos dos contrastes de cores, o branco da neve com o azul do céu, os
prédios desertos, em que Paris parece abandonada, a busca de uma felicidade
perdida para sempre… Mas os ruídos voltam de repente, casos são contados pela
multidão, de histórias da vida, as palavras tornam-se puras onomatopeias, do
narrador não restará senão “l’imperméable que je portais, roulé en boule,
sur le banc”, o nada, a náusea de tudo o que se é ou supõe ser. O próprio
Jansen poderia ser outro que, segundo os arquivos da sua terra natal já estava
morto e tinha outra história. « Et l’ombre de
ce double, conclui Jansen, “finit par se confondre avec nous”.
Uma história simples, um pensamento
de tragédia nela implícito, o macabro da condição humana. Chien de Printemps,
expressão de Jansen, o título do livro de Patrick Modiano, Nobel de Literatura
de 2014.
Um comentário:
Não é nova esta forma de premiar o mérito de quem escreve. Há uns poucos de anos li o Oran Pamuk que escreve sobre a realidade da Turquia e não consegui perceber o interesse de tal escrita. Se pegarmos no campeonato do mundo de futebol, neste último, e virmos que a Alemanha foi campeã,e depois, no jogo de desagravo, com a Argentina já de equipa completa, levou 3 secos e poderiam ter sido mais, temos muitas das respostas do que se passa no mundo atual. Os prémios de todas as entidades que premeiam são atribuídos por razões políticas e económicas para os decisores... e está-se a ver o que acontece na Europa, agrilhoada depois de a Alemanha ter sido campeã mundial de futebol... está na hora de nos dedicarmos todos à agricultura e à pesca e à poesia, esquecendo que existe água canalizada, eletricidade e, consequentemente, Internet, que existem automóveis, casas, enfim, que se faça um verdadeiro boicote às políticas que salvaguardam a paz podre que existe no mundo atual... para isso há que ter co-r-a-g-e-m...
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