segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A pátria ditosa



O discurso cúmplice da esquerda, de total inversão de propostas e valores, cascando com ódio na direita, que acusa de responsável por todos os desmandos de lesa-pátria,  (e, nesse pretexto, desfazendo grotescamente no candidato Marcelo), não sendo acompanhado por quaisquer asserções de racionalidade, mas por débeis palrações de demagogia falsamente generosa, sem assumpção de responsabilidade na destruição económica do país trazida pelos sindicatos com as suas propostas de greves ruinosas e outros frequentes desmandos, polarizou-se ultimamente no espectáculo inominável das candidaturas presidenciais. São vários os comentadores que deles traçam retratos pertinentes, que gostarei de gravar, como exemplos de seriedade, ironia, saber, ou mesmo “austera, apagada e vil tristeza”:

A passeata de Marcelo
Público, 7/01/2016
Eu percebo a frustração dos adversários de Marcelo: pensavam que se tinham inscrito para uma corrida presidencial de primeiro mandato e estão a descobrir que entraram numa corrida de segundo. É como se os portugueses considerassem que Marcelo já exerceu o seu primeiro mandato e respectiva “magistratura de influência” aos domingos à noite na televisão, reservando-lhe o tratamento consensual que é próprio oferecer aos presidentes reeleitos. Não é uma má interpretação: entre Marcelo e Cavaco, há dúvidas legítimas sobre qual deles mais influenciou, nos últimos anos, o rumo do país. Resta-nos, portanto, aguardar pacientemente que seja entronizado em Belém, após uma passeata que só por hábito, fastio e simpatia podemos classificar como campanha eleitoral.
Por muito que lhe apontemos contradições, traições e avarias, não há volta a dar: Marcelo tem qualidades únicas e é difícil não gostar dele. Esteja de férias no iate de Ricardo Salgado ou a comer febras na Festa do Avante, é sempre o mesmo Marcelo, é sempre divertido, é sempre inteligente e é sempre genuinamente simpático. Se eu não quisesse votar em Marcelo, penso que a minha mão direita o faria por mim. A idade fez-lhe bem, a barba mefistofélica esfumou-se, ganhou ar de avô bonacheirão, e parece menos cínico e manobrista do que antigamente. Vamos ser optimistas e admitir que está mesmo menos cínico e manobrista do que antigamente – mais equilibrado, mais ponderado e menos dado à intriga. É certo que teve alguns comentários lamentáveis durante a queda do BES, mas Marcelo é como o Blob, uma massa gelatinosa que absorve tudo à sua volta.
A velha piada de Groucho Marx – “estes são os meus princípios, e se não gostarem… bom, eu tenho outros” – aplica-se na perfeição às opiniões de Marcelo: foi tão longa e tão marcante a sua carreira de comentador que sobre toda a gente ele já disse bem e mal, já elogiou e já criticou, e sobre cada assunto já disse tudo e o seu contrário. Foi curioso ouvir Marisa Matias afirmar no debate entre ambos: “Acho que é incompatível ter todas as posições.” Mas não se trata bem de ter todas as posições. Marcelo não tem todas as posições ao mesmo tempo – tem apenas uma de cada vez, e utiliza aquela que em cada momento lhe dá mais jeito.
E o que lhe deu mais jeito durante toda a campanha eleitoral foi uma postura que cruza o rigor mortis com a hiperactividade – o que só mostra o quanto consegue ser criativo. Marcelo anda há meses a fingir-se de morto, mas é um morto que fala muito, que não pára de aparecer, de debater. A forma que ele arranjou para não dizer nada é não se calar, é lutar pela igualdade das candidaturas, é disponibilizar-se para dezenas de debates, com todos os candidatos e, se necessário, com os seus animais domésticos. É uma deserção por excesso, até ao ponto de os debates se transformarem numa espécie de sarampo televisivo, que infecta todos os canais mas dos quais não temos qualquer interesse em nos aproximarmos.
A multiplicação de confrontos, conjugada com o prodígio de a sua candidatura ao centro ter, ainda assim, nove candidatos à esquerda, foi a estratégia perfeita. Eu ainda me dei ao trabalho de assistir ao debate a dez na Antena 1 e só faltou Marcelo levar um livro para se entreter entre intervenções. Mas está bem assim. Basta ver como PS, PSD e CDS desertaram destas eleições. Está toda a gente feliz por não se estar a passar nada, não é? Parabéns, senhor Presidente.

Segue a fantochada
Público, 09/01/2016
A coisa mais curiosa desta eleição presidencial é que nenhum economista ou responsável pela economia ou pelas finanças concorreu. E nem sequer concorreu nenhum membro do governo desde Durão Barroso e Santana Lopes. Tudo se passa como se a loucura política que nos trouxe à crise e à miséria não tivesse existido, apagada da história por um zeloso velador da ortodoxia. A gente que opinava autoritariamente sobre a “austeridade” e anunciava uma receita infalível para a nossa “recuperação” tantas vezes se enganou que resolveu desistir. Agora, anda aí, cosida às paredes, e nos debates não se fala do estado lastimável de Portugal e a asneira ferve livremente. Este espectáculo de cobardia intelectual entristece e envergonha; e abriu caminho a uma inominável campanha.
Dos candidatos que realmente se apresentaram não há muito a dizer, se em boa verdade se deve dizer seja o que for:
Todos são “independentes”, mesmo o padre do PC que se dá ao luxo de uma ou outra discordância venial;
Todos, excepto Marcelo, querem “virar a página”, por outras palavras estabelecer o domínio da “esquerda”, que eles próprios não fazem ideia do que é e para o que serve;
Todos, se por acaso ganharem, querem ir abraçar e conviver com o povo, ou levar a rainha de Inglaterra à sopa dos pobres, ou “abrir” o palácio de Belém ao cidadão comum;
Todos juram que os portugueses são a maravilha fatal da nossa idade, como se pode ver por alguns laboratórios científicos e principalmente pelos jovens que trabalham no estrangeiro;
Todos nos garantem um futuro de consenso, estabilidade e alegria e todos se preparam para ajudar o bom António Costa, que nos salvou.
Fora a palração sem nexo dos debates, o que se discute, se alguma coisa se discute, é a personalidade e a vida de Marcelo Rebelo de Sousa, uma criatura interessante, mas que não merece dezenas de horas de televisão. Se alguém por aí chama a isto democracia, pode ter a certeza absoluta que está enganado. Isto é a espécie de fantochada com que as democracias normalmente morrem.

Sampaio da Nóvoa é Portugal
Alberto Gonçalves
DN, 10/1/16
Apesar de ser apoiada por Eanes, Soares e o outro Sampaio, a candidatura do professor doutor Sampaio da Nóvoa possui inegáveis virtudes. O candidato presidencial médio exibe, no máximo, uma ou duas "causas". O professor doutor Sampaio da Nóvoa, que evidentemente não compreende o cargo a que concorre, avança com vinte - as quais "podiam ser cinquenta ou cem", diz ele. Ou oitocentas e sessenta e duas, digo eu. Há "causas" para todos os gostos, da "Cidadania Sénior" à "Cultura", da "Juventude" às "Alterações Climáticas", da "Língua" à "União Europeia", da "Diáspora" ao "Mar". Faltam, que me lembre, o "Humanismo", a "Solidariedade", o "Sol" e as "Bicicletas".
Não faltam dois mandatários para cada "causa", um de cada sexo porque o professor doutor Sampaio da Nóvoa preza a "igualdade, a igualdade de género, todas as igualdades". Aqui, temos figuras de peso como a actriz Maria do Céu Guerra, a filha de Adriano Moreira, o pai da medicina António Arnaut, a romancista Lídia Jorge, a viúva Pilar del Río e o especialista em aeronáutica António Hífen Pedro Vasconcelos. Acima de todos, ou ao lado por conta das igualdades, temos a grande pianista Gabriela Canavilhas e o grande sindicalista Carvalho da Silva no papel de "coordenadores de causas", não fosse alguma "causa" extraviar-se na confusão.
Que mais querem? Dado que no próximo dia 26 tenciono levantar-me tarde, assistir a dois jogos do campeonato turco e dar literalmente banho aos cães, em princípio não poderei votar. Porém, nada me impede de recomendar o voto no professor doutor Sampaio da Nóvoa. Será um bom chefe de Estado? Fora de brincadeiras: será uma anedota sem precedentes (e os precedentes já não eram desprovidos de piada), mas não é isso que deve desmotivar os cidadãos a fintar as sondagens e consagrar o homem. Se a Constituição atribui ao presidente a função de representar a República, julgo que, na infeliz ausência de Fernando Nobre, poucos a representariam com a competência do professor doutor Sampaio da Nóvoa.
Embora as campanhas de quase todos os restantes candidatos sejam realizadas em nome do bom povo, é o professor doutor Sampaio da Nóvoa quem, se calhar sem querer, melhor personifica parte dele. Ele é o vazio das "ideias". Ele é a jactância dos simples. Ele é a superioridade moral erguida sobre ar morno. Ele é a infantilidade do discurso. Ele é o fervor dos beatos. Ele é a crença primitiva na magia do lirismo. Ele é o sentimentalismo vulgar. Ele é a redução da liberdade a uma palavra que se mastiga. Ele é o suave apelo da loucura. Ele é a parlapatice do feirante. Ele é a irresponsabilidade dos inimputáveis. Ele é a prosápia transformada em prestígio pelos pares. Ele é o radical desprezo pela noção de ridículo. Ele, o professor doutor Sampaio da Nóvoa, é não só certa esquerda: é também certo Portugal.
Ninguém, nem sequer o Sr. Vitorino de Rans, conduziria tão cabalmente o país ao destino que o espera. Se, conforme tudo indica, vamos a caminho de nos esborracharmos no chão, merecemos um timoneiro à altura.
Terça-feira, 5 de Janeiro
Pontes
O regresso dos feriados confiscados pelo governo anterior confirma aquilo de que já se desconfiava: o governo actual é bonzinho. Mas a medida também desvenda uma novidade, leia-se a religiosidade da Frente Popular. Uma coisa é a "reposição" de feriados patrióticos como a implantação da República e a restauração da independência (que António Costa, com a erudição que o distingue, julgava alusivo à fundação da nacionalidade). Coisa muito diferente é o resgate de datas como o Corpo de Deus e o Dia de Todos-os-Santos. Não se percebe que a esquerda que estrebucha face aos crucifixos remanescentes nas salas de aula, ou a um ministro que invoca o Belzebu para justificar as cheias em Albufeira, seja a exacta esquerda que cuida do conforto espiritual do povo devoto. Se calhar não é para perceber.
Certo é que meio mundo andou meses a jurar que António Costa é um exímio construtor de pontes. E tinha razão: em 2016 serão no mínimo três.

Sexta-feira, 8 de Janeiro
O prato do dia
Quem ridiculariza a escassez de propostas dos candidatos presidenciais não está atento a Maria de Belém. Mal chegue ao palácio homónimo, a dona de um currículo que talvez impressione os que o não leram quer iniciar "práticas diferentes" e "inaugurar um tipo de políticas". Quais? Ora essa: mostrar a realidade do país a chefes de Estado estrangeiros, levando-os a almoçar a lares de terceira idade. Para já, o convite não explicita o cenário do lanche, jantar e ceia. Mas abre a porta a práticas de facto inéditas. Não ficarei surpreendido se, a benefício da imersão na realidade portuguesa, a "presidenta" Maria levar os colegas em visita a esperarem o metro em dia de greve, a patrocinarem a falência de bancos, a pagarem os impostos e as taxas dos ricos que auferem dois mil euros, a suportarem uma tarde num Parlamento possuído pelo fantasma de Chávez ou, para conhecerem num ápice os abismos do nosso infortúnio, a passarem dez minutos na sua própria companhia.
O que me surpreenderia um bocadinho era que, ameaçado com a sopa dos pobres, qualquer estadista, civilizado ou não, aterrasse por aí. E o que me surpreenderia imenso era que, depois disto e de mais uma ou duas coisinhas, alguém votasse na senhora.

Comentário de Miguel Bastos, extraído da internet, seguido de comentário (6/1):

Entre os debates de ontem, vi uma entrevista. Foi ao candidato Vitorino Silva. Ninguém sabe quem é. É o Tino de Rans. Não deve faltar gente que tenha achado a entrevista divertida. Eu achei triste.
Pois é, não achei graça. Como não acho graça aos apanhados, às gafes em direto, a pessoas a cair na rua. O entrevistador, José Rodrigues dos Santos, esteve numa posição muito difícil. Tentou entrevistar Tino de Rans, como um candidato “normal”. Fez as perguntas que achou pertinentes, mas não obteve respostas. A dada altura Tino deixa escapar “Se me fizer perguntas sobre calcetaria, eu terei todo o gosto em responder.” Acontece que Tino não é candidato a calceteiro. É candidato a Presidente. E convinha dizer alguma coisa.
No rescaldo, José Manuel Fernandes questionava se fazia sentido haver candidatos que nem sequer têm a noção do que é ser Presidente da República. Tino pode ser candidato? Claro que pode. Não quer dizer que deva.

De Francisco Carita Mata

Concordo inteiramente. É, de facto, triste! E mais triste ainda que tenha havido vários milhares de cidadãos que assinaram para que este cidadão se pudesse candidatar a Presidente da República!

Eis alguns dos textos que marcam, e felizmente nos libertam, pela lucidez, um pouco desta nossa indecência espiritual, que descambou numa paleta obscena de figuras caricaturais que só me fazem evocar, como alegoria, o soneto «Manias» de Cesário Verde, embora a pátria, velha deia esquálida e chagada, não devesse merecer o apodo  aviltante, que o  magote de concorrentes ao seu osso sugere:
Manias
O mundo é velha cena ensanguentada.
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, - hoje uma ossada -,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância, quixotesca.

Aos domingos a deia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!

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