Um artigo assustador que nos
revela quão longe andamos de nos apercebermos do que está a ser forjado no
nosso mundo, vulcão prestes a explodir, escórias bombásticas saídas das
entranhas incandescentes desta Terra tão igual nos homens como nas coisas. As coisas
que parece correrem banais, toscas, iguais na sucessão dos dias, no seu déjà vu
de similitudes, com, afinal, o imprevisível desviando repentinamente o ritmo,
causando a devastação ou a mudança. A história do «Homem de Londres» de
Simenon é exemplo destes acasos que desviam o ritmo da rotina, mas lembro
igualmente “l’Étranger”, de Camus e afinal qualquer outra história, todas as histórias,
com um começo para um fim dramático.
Em Dieppe, à chegada de um
barco de Londres, o faroleiro Maloin assiste, do seu farol, a um crime: Brown, o
homem de Londres, chegado no barco, com um companheiro de assalto a um ricaço,
reivindica a sua parte do dinheiro que o outro traz na mala, e, na luta, o homem
assassinado cai no mar arrastando a mala. Maloin consegue, secretamente,
recuperar a mala e a sua vida muda a partir daí. A embriaguez do dinheiro,
juntamente com a consciência de que Brown desconfia de si, transformam a sua maneira
de ser apagada, sem ambições até aí, porque apenas enfronhada nas dificuldades
da vida, numa figura fechada e rancorosa, de repente desejosa de sobressair, de
ser rica como os outros e exibir o poder que poderá demonstrar, utilizando o
dinheiro da mala. Ainda dá provas disso, comprando um rico cachimbo para si e
vestes para a família, especialmente a filha, que liberta de um emprego onde é
explorada, o que naturalmente provoca zanga na mulher. Mas a consciência não o
deixa tranquilo, a filha descobre um homem enfiado numa barraca que ele
construíra para guardar os seus apetrechos de pesca e ele calcula que o homem
seja Brown, fugido à polícia, que o dono do dinheiro mobilizara. Maloin sabe
que o homem que a filha fechara, poderá morrer de fome, leva-lhe comida e
chama-o, mas a insistência do homem em não responder retém-no no sítio, até que
é atacado por Brown. Ao defender-se, provoca-lhe a morte. Mais “une
tempête sous un crâne”, não, desta vez, no de Jean Valjean, mas no de Louis
Maloin. Maloin
decide entregar-se à polícia, o mundo de visões e de reflexões que dele se
apoderara, desde aquele dia em que, tendo assistido a um crime, nele participou
pescando a mala poderosa do dinheiro roubado, o que lhe modificara a rotina e o
comportamento, essas reflexões descambando numa decisão brutal de libertação do
pesadelo - agulha de lava furando a cratera vulcânica - sem atender a quaisquer
outros parâmetros de reflexão e atenuação do seu crime.
Tal estamos nós no nosso viver
de pequenez envolta em remedeios, com discussões de permeio, em representações
teatrais com Tinos de Rans pelo meio, sem nos darmos conta do que se passa à
nossa porta, prestes a explodir. Mas Vasco Pulido Valente adverte, com a
sabedoria de sempre, que deveríamos escutar:
À nossa porta
As fronteiras do Médio Oriente foram impostas, como
toda a gente sabe, pelo acordo Sykes-Picot no fim da I Guerra Mundial e
tentavam equilibrar as pretensões da Inglaterra e da França. As fronteiras da
África do Norte são a consequência de uma guerra de conquista, que começou em
meados do século XIX com o último rei de França, Luís Filipe, e em que pouco a
pouco se envolveram a Inglaterra, a Itália e mesmo a Alemanha de Guilherme II.
Nenhuma destas divisões e redivisões considerou a religião ou a afinidade
tribal da gente que ia dispersando pelo mundo a régua e a esquadro, como se ela
não valesse mais do que peças sem valor num jogo que não podia de toda a
evidência jogar. As coisas correram bem até à guerra contra Hitler e à
emergência do petróleo como a principal fonte de energia do
Ocidente.
Dali em diante as grandes potências tiveram de
evacuar, a bem ou mal, o Médio Oriente e a África do Norte e deixaram para trás
países sem qualquer espécie de viabilidade como o Iraque, ou a Líbia,
geralmente governados por velhos funcionários do colonialismo ou por indígenas
de confiança, que acabaram por ser submersos por uma civilização primitiva,
dirigida pelo fanatismo e pela violência. Hoje o Médio Oriente é o campo livre
para as guerras religiosas do islão e naturalmente as facções detestam a
interferência do Ocidente em querelas para que o dito Ocidente não é chamado,
que não percebe e que vem sempre perturbar com a sua superioridade económica e
militar. Os terroristas de Nova Iorque, de Londres, de Copenhaga ou de
Paris querem ficar sozinhos para se exterminarem em paz.
Hoje as duas maiores potências regionais deslizaram
para uma situação de guerra não declarada, mas que está em perigo de se tornar
uma catástrofe para o Médio Oriente, para o Norte de África e para o mundo. Ora
a Europa não tem meios para reagir a essa ameaça. Se o choque entre o Irão
(xiita) e a Arábia (sunita) não for evitado, acabará por se estender da Turquia
a Marrocos, e provavelmente à Índia e à Ásia central, e não existe força alguma
capaz de o sufocar ou reter. Em Portugal, a preocupação com o governo Costa e a
campanha presidencial não permitem a menor consciência dos riscos que hoje dia
a dia corremos. Mas, consciente ou inconscientemente, sofreremos como o resto
da Europa as consequências do conflito que vai crescendo à nossa porta.
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