terça-feira, 12 de janeiro de 2016

«La tête en friche»





 Nas nossas conversas “en friche” deste domingo, falou a minha irmã com muito entusiasmo de um filme que vira no 1º canal – “As minhas tardes com Margueritte”- tradução, que achou descabida, do título “La tête en friche”, que nos aconselhou a ver, agora que já manejamos o replay com mestria. Não sei o que fez a nossa amiga, que diz ter perdido a paciência para filmes, mais propensa aos do nosso quotidiano, ela que, repete, em Lourenço Marques não perdia nenhuma das matinées de sábado, com as amigas e os amigos, e mais tarde em Quelimane com o marido e as amigas das muitas diversões zambezianas. Já eu, docilmente, passei uma tarde de domingo entre os filmes do Maigret, o cochilar de permeio, os DDT que falhara na véspera, e, finalmente, o filme de 2010, realizado por Jean Becker, leio na Internet, adaptado da obra de Marie-Sabine Roger. A minha irmã falara no excelente papel de Gérard Depardieu e eu resolvi libertar-me, não dos «grandes ruídos modernos das rodas e engrenagens da fábrica», da expressão do Álvaro de Campos na sua Ode Triunfal, tanto mais que era domingo, Dia do Senhor, e por isso de descanso, mas da vozearia ou sequer cicio  das espécies de diálogos presidenciais que, afinal me põem igualmente “em fúria fora e dentro de mim, por todos os meus nervos dissecados fora, por todas as papilas fora de tudo o que eu sinto” e que aspirei a ignorar nessa tarde de santo ripanço. E o que vou no próximo domingo dizer à minha irmã é que concordo inteiramente com o seu repúdio a respeito da tradução da “tête en friche” para a insonsa “Minhas tardes com Margueritte”, além de outros desvios na tradução brasileira, mais uma vez exemplificativos da máxima “traduttore traditore” não só desvirtuadora do sentido mas eliminadora, neste caso,  de um tropo afinal simbólico de todo o enredo: uma cabeça en friche, deixada ao abandono, sem cultura, como o matagal bravio: história de um rapaz simples mas bonacheirão, vítima de troça na escola, como do azedume frustrado da mãe, num ambiente de aldeia, em que a taberna e os homens que a frequentam são o ponto central para o convívio e o ruído das disputas e das entreajudas. Margueritte é uma velhinha simpática sentada num banco de jardim junto das pombas, todas com nome e especificidades anotadas pelo homem da “tête en friche” que com ela travou conhecimento, escutando-lhe as leituras da “Peste” de Camus que ele mal acompanhava mas de que fixava conceitos. A amizade pela velhinha que assim lhe vai desbravando o espírito, terá o seu clímax quando ele a vai buscar a um lar do Estado, onde a família a enfiara por não poder continuar a pagar-lhe o particular onde estivera, e a leva para a casa que herdou da mãe, que afinal sempre vivera a pensar no filho, deixando-lhe uma pequena fortuna. Uma história cor de rosa, simpática e bem desempenhada, uma história de vida como gostaríamos que fosse a vida, sem camicases nem jihadistas, nem gente em fuga morrendo afogada, nem cenas tristes de gente sem vergonha, querendo sair do anonimato, em balbucios verbais de absoluta irrisão, como os de tantos desses candidatos presidenciais da nossa farsa política. Uma tarde de domingo em cheio, no esquecimento.

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